Trancamento de ação penal. Liberação fraudulenta do FGTS. Peculato. Exame de corpo de delito. Ausência. Nulidade. Inocorrência. Liminar indeferida.
Rel. Des. Élcio Pinheiro De Castro
- Cuida-se de habeas corpus (fls. 03/13) impetrado por Maria Dolores de Fátima Rodrigues da Cunha, em favor de Mário Cézar Furtado, buscando o trancamento da Ação Penal nº 2004.72.00.015536-6, que tramita perante o Juízo Substituto da Vara Federal Criminal de Florianópolis/SC. Consoante se depreende, o Ministério Público ofereceu denúncia contra o paciente, ao lado de João Manoel da Silva, dando-os como incursos na sanções dos artigos 298, 304, 312, c/c os arts. 29, 30 e 70, todos do Estatuto Repressivo. A peça acusatória narra os fatos nas seguintes letras (fls. 34/35): “Quando o acusado Mário Cézar Furtado foi preso em flagrante no dia 15.04.2004, no inquérito que seguiu ficou apurado que ele vinha se dedicando há mais de seis meses à liberação fraudulenta de valores de contas do FGTS, aproveitando-se de sua condição de empregado da Caixa Econômica Federal. Por tais fatos responde Mário Cezar a processo penal nesta Vara, sob o nº 2004.72.00.006162-1. Segundo a denúncia, Mário Cezar se associara a Jorge Robinson Júnior, que aliciava clientes para a liberação fraudulenta, e por volta de seis meses antes do flagrante, em 15 de abril de 2004, a eles se juntou Tiffany Monique Marques. Orientado por Mário Cezar, Jorge forjava os documentos dos beneficiários de contas que não preenchiam os requisitos legais para o saque, dentre os quais rescisões contratuais e alvarás judiciais. De posse dos documentos entregues por Jorge, diretamente ou por meio de Tiffany, Mário Cézar encaminhava o processo para liberação dos valores. Obtido sucesso na fraude, o dinheiro era dividido entre os participantes do esquema e os beneficiários das contas de FGTS. No caso destes autos, apurou-se fato criminoso ocorrido no dia 28 de agosto de 2003, na Agência Mauro Ramos da CEF. Mário Cézar Furtado, naquela época, trabalhava nessa Agência e liberou fraudulentamente o FGTS do co-denunciado João Manoel da Silva, no valor de R$ 31.347,49. Para consumação da fraude, João Manoel da Silva dirigiu-se à Agência Mauro Ramos da Caixa Econômica Federal no dia 27 de agosto de 2003 e requereu saque de sua conta de FGTS. Como não preenchia os requisitos legais para a liberação, João Manoel forjou situação de doença grave que o habilitaria legalmente ao saque. Para tanto, fez uso de documento particular materialmente falso, consistente na adulteração de atestado médico montado a partir de papel com timbre onde se lê “Oncologia Clínica“, no qual foi aposto carimbo e assinatura do médico Luiz Alberto Silveira. Segundo esse atestado forjado, João Manoel da Silva, ora denunciado, seria portador de doença CID 72, com estágio clínico IV, no dia 25.08.2003. Previamente concertado com o acusado João Manoel da Silva, Mário Cézar Furtado, valendo-se de sua condição funcional de escriturário da Caixa Econômica Federal, recepcionou dolosamente o documento falso e apôs em cópia que instruiu o requerimento sua assinatura em carimbo com os dizeres 'confere com o original'. Como funcionário responsável pela conferência da documentação para liberação do saque do FGTS, Mário Cézar Furtado, violando dever funcional, falsamente declarou que 'a presente solicitação atende às exigências do saque', e designou a data de 28 de agosto de 2003 para o pagamento, quando sabia que os documentos atestando a doença grave de João Manoel da Silva eram contrafeitos. No dia 28 de agosto de 2003, João Manoel da Silva compareceu à Agência da CEF e consumou o saque, conforme se vê no documento da fl. 95 (comprovante de pagamento do FGTS). Do total do valor a que teve acesso indevidamente, o acusado João Manoel da Silva afirma ter pago pelo 'serviço' aproximadamente R$ 5.600,00 (cinco mil, seiscentos reais ).“ Contra o seguimento da ação penal foi ajuizado o presente mandamus. Aduz a Impetrante, em síntese, ausência de justa causa, por faltarem indícios suficientes da autoria e conduta dolosa de MÁRIO CÉZAR, eis que o mesmo 'tão-somente seguiu as normas estatuídas pela Lei e determinações dispostas no manual da CEF'. Sustenta que o Parquet 'não se ateve à apreciação dos fatos relatados no inquérito policial', bem como deixou de individualizar a conduta do paciente. Por fim, afirma ser necessária, no peculato doloso, a perícia documental, não realizada no caso sub judice. Diante disso, requer a concessão liminar da ordem - suspendendo-se o interrogatório aprazado para 12.07.2007 - e sua posterior confirmação pela Turma, para que seja trancada a referida ação penal. Em que pesem as doutas razões de fls. 03/13, não se verifica a presença dos requisitos legais para o deferimento da medida de urgência. Ab initio, cabe registrar que, segundo o entendimento consolidado nos Tribunais Superiores, a utilização do writ com o fim de obter exclusivamente o trancamento de ação penal, somente é admissível quando o fato narrado na denúncia não configura, nem mesmo em tese, conduta delitiva, ou seja, o comportamento do réu é atípico ou não há certeza sobre a materialidade do crime; quando resta evidenciada a ilegitimidade ativa ou passiva das partes (podendo ser representada pela própria inocência do acusado ou pela falta de indícios suficientes de autoria do delito) e, finalmente, se incidir qualquer causa extintiva da punibilidade do agente. Apenas a presença inequívoca de uma dessas conjecturas traduz carência de suporte para a ação penal. Ao menos em primeira análise, o caso sub judice não se enquadra em nenhuma dessas hipóteses, não havendo falar em ausência de justa causa para o prosseguimento da persecutio criminis. Com efeito, as alegações relativas à insuficiência de provas de autoria refogem ao âmbito estrito de exame desta via mandamental. Ora, para apreciar tal questão é necessário estudo mais acurado dos elementos probatórios, a ser procedido na sentença, após a regular instrução do processo penal. Leitura perfunctória da denúncia permite depreender que o Parquet narrou elementos suficientes para enquadrar MÁRIO CÉSAR como co-partícipe nas práticas delitivas que ensejaram o saque irregular do FGTS pertencente ao outro réu. A par disso, mostra-se inviável proferir juízo sumário sobre a presença ou não do elemento subjetivo do tipo, por meio de habeas corpus. Por fim, quanto à alegada necessidade de laudo técnico para demonstrar o cometimento do ilícito tipificado no art. 312 do Estatuto Repressivo, leciona JÚLIO FABBRINI MIRABETE que 'não se exige, salvo casos excepcionais, exame pericial, máxime quando está o peculato demonstrado por documentos; a materialidade também pode ser comprovada por testemunhos' (in Código Penal Interpretado, Atlas, 2ª ed., 2001, p. 1911). A propósito, consulte-se a seguinte jurisprudência dos Tribunais Superiores: “HABEAS CORPUS. CRIME DE PECULATO. ART. 312 DO CÓDIGO PENAL (...). 3. 'omissis'. 4. Improcedência da alegação de nulidade do processo pela falta do exame de corpo de delito. Art. 158 do Código de Processo Penal. 5. Existentes outros elementos de prova, o exame pericial não é imprescindível. Precedentes. 6. Não configura falta de fundamentação da decisão o fato de ela reportar-se à sentença e ao parecer ministerial. 7. Habeas corpus indeferido.“ (STF, HC 85744/RJ, Segunda Turma, Rel. Gilmar Mendes, public. no DJ de 02.09.2005, p. 47). “CRIMINAL. HC. PECULATO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DO CO-RÉU PELA PRESCRIÇÃO. PARCIAL PROVIMENTO DE RECURSO MINISTERIAL PARA ALTERAR O CRIME PELO QUAL O PACIENTE FOI CONDENADO. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. INOCORRÊNCIA. EXAME DE CORPO DE DELITO. AUSÊNCIA. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA. I e II. 'omissis'. III. A prova técnica não é exclusiva para poder atestar a materialidade das condutas. IV. Havendo nos autos outros meios de provas capazes de levar ao convencimento do julgador, como a prova testemunhal referida pela sentença e a cópia do extrato emitido por instituição financeira dando conta do efetivo depósito de quantia indevidamente recebida em prejuízo do INSS na conta pessoal do paciente, não há falar em nulidade processual por ausência do exame de corpo de delito. Precedentes. V. Ordem denegada.“ (STJ, HC nº 37945/RJ, Quinta Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, public. no DJ de 23.05.2005, p. 315). Ante o exposto, ausente os requisitos legais, indefiro a liminar. Solicitem-se informações à digna autoridade impetrada, que as prestará no prazo de 10 (dez) dias. Após, abra-se vista dos autos à douta Procuradoria Regional da República. Intimem-se. Publique-se. Porto Alegre, 12 de julho de 2007.
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