Habeas Corpus Nº 2007.04.00.040021-5/rs

Exercício ilegal da advocacia tendo em conta decisão administrativa. Infração ao Art. 205 do CP. Reiteração de atos praticados em Comarcas distintas. Competência. Crime classificado como habitual. Necessidade de várias condutas para se consumar. Competência que se firma pela prevenção. Processos administrativos diversos. Continuidade delitiva.

Rel. Des. Élcio Pinheiro De Castro


Cuida-se de habeas corpus, com pretensão liminar, impetrado por Fernando Negreiros Lagranha, em favor de Marcelo Domingues de Freitas e Castro, objetivando, em síntese, o trancamento da ação penal número 2007.71.10.004941-1, em trâmite na 2ª Vara Federal de Pelotas/RS. Segundo se depreende, nos autos do aludido feito, o paciente foi denunciado pela prática, em tese, do delito previsto no artigo 205 do Código Penal, nos seguintes termos: “Nas datas de 20/11/2003 (fl. 82) 09/01/2004 (fl. 83) e de 20/04/2004 (fl. 103) o denunciado desempenhou atividade de advocacia, nos autos do processo nº 2003.71.10.011595-5, na Justiça Federal da Subseção de Pelotas, em período em que estava impedido administrativamente de exercer suas atividades profissionais pela Ordem dos Advogados do Brasil, conforme fl. 17. Em outra oportunidade, no dia 17/03/2006, nos autos do processo nº 2006.71.10.001513-5, o denunciado também praticou atividade de advocacia quando estava impedido administrativamente pela Ordem dos Advogados do Brasil, conforme fl. 17. Os fatos foram constatados a partir do procedimento administrativo nº 273/2006, instaurado pelo Ministério Público Federal de Caxias do Sul/RS, para apurar a prática do crime previsto no artigo 205 do Código Penal, tendo sido encontrados indícios de que o denunciado havia exercido atividade de advocacia na Subseção Judiciária de Pelotas enquanto impedido administrativamente. O denunciado encontrava-se suspenso pela OAB/RS em razão das condutas apuradas nos processos disciplinares nºs 96.173/1998 e 96.141/1998, mas continuou a exercer suas atividades profissionais no período compreendido entre 04.11.2003 e 04.07.2003 bem como entre 03.02.2004 e 03.03.2004, conforme cópia das peças das fls. 61/103, em que aparece como procurador. Ainda, no período compreendido entre 19.04.2006 e 19.10.2006, quando impedido em razão de outro processo disciplinar da Ordem dos Advogados do Brasil (nº 102137/1999 - fl. 17) o denunciado novamente exerceu atividade de advocacia, conforme cópia das peças das fls. 104/136, onde aparece mais uma vez como procurador de uma das partes. A materialidade do delito está demonstrada pela certidão da OAB/RS (fl. 17) da Representação Fiscal para Fins Penais (fls. 4/14) e das cópias das fls. 61/136.“ A defesa do réu peticionou nos autos postulando a reunião do feito com o processo nº 2006.71.05.008246-8/RS, em tramitação na Vara Federal de Santo Ângelo, onde foi denunciado pelo mesmo delito. O MM. Juiz a quo indeferiu o pleito. No seu decisum assim se manifestou: Trata-se de analisar petição em que o denunciado Marcelo Domingues de Freitas e Castro requer a extinção da presente ação penal, com imediata suspensão da audiência de interrogatório marcada para o dia 29 de outubro vindouro (fls. 185/187), bem como o pedido posteriormente efetuado de cancelamento da referida audiência, em virtude da impossibilidade de comparecimento do réu (fls. 198/201). Alega que o ilícito capitulado no art. 205 do CP é classificado como habitual, razão pela qual a atuação em diversos processos, ainda que em diferentes localidades, caracteriza a existência de um único crime. No caso concreto, como inclusive já reconheceu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, há um único delito que deverá ser objeto de processamento e julgamento na Justiça Federal da Subseção de Santo Ângelo. Ouvido, o MPF opinou pelo indeferimento do pedido, afirmando que após o recebimento da denúncia não pode haver juízo de retratação por parte do juiz que instaurou o processo. O remédio adequado a ser manejado pelo réu seria a impetração de novo habeas corpus perante o Tribunal Regional Federal, ou obter a extensão dos efeitos da primeira decisão. Disse também não haver elementos que permitam, no atual estágio do processo, analisar-se a existência de prevenção em relação aos processos que tramitam nas outras subseções. Passo a decidir. Não há empecilho de que o juiz que recebeu a denúncia, averiguando posteriormente a existência de fatos que apontem para a inexistência do crime, profira decisão que põe fim ao processo. Pelo contrário, ao constatar que a ação penal não mais se justifica, tem o dever de fazê-lo, não sendo admissível que a ação penal prossiga sem justa causa por força de aspectos meramente formais do processo. De qualquer modo, no caso concreto, não se trataria propriamente de juízo de retratação, uma vez que a existência de processos em trâmite nas Subseções de Caxias e Santo Ângelo por fatos da mesma natureza, embora fosse presumível em face dos documentos que acompanharam a denúncia, só teve sua existência afirmada agora, por ocasião da formulação do pedido em análise. A doutrina e a jurisprudência, como bem ilustra a decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região apontada pela defesa, entendem que o delito previsto no art. 205 do Código Penal se classifica como crime habitual. Com efeito, 'exercer atividade' pressupõe habitualidade, não se configurando como tal a prática de atos isolados. Assim, a conduta é punida pelo todo, pelo conjunto de atos necessários à caracterização dessa habitualidade, com o que, independentemente de quantas vezes a conduta foi reiterada, o crime é único. Pertinente ao caso concreto, especialmente com base no teor da decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal, pode-se inferir que a ação penal que tramitava em Caxias referia-se a fatos ocorridos entre 19.04.2006 e 19.10.2006, vinculando-se, portanto, à decisão proferida no processo administrativo disciplinar nº 102137/1999, publicada em 19.04.2006. Já os fatos que são objeto específico da denúncia oferecida no presente processo referem-se ao exercício da advocacia pelo réu, em processos que tramitaram nesta Subseção de Pelotas, de novembro/2003 a abril/2004, ou seja, em período no qual estava suspenso por decisão diversa, qual seja, aquela proferida no processo administrativo nº 96173/1998, publicada em 04.11.2003. Assim, embora correta, a princípio, a premissa de que o exercício da advocacia pelo réu em diversos processos judiciais caracterizaria, em tese, a prática de um único delito, tenho que a situação ganha outros contornos quando a atuação supostamente ilegal se deu em violação à penalidade oriunda de processo administrativo diverso, que foi aplicada em período também distinto. Com efeito, em juízo preliminar, parece razoável o entendimento de que há tantos delitos quantas forem as decisões administrativas descumpridas, o que significa dizer que o réu, havendo descumprido duas decisões, praticou, em tese, ao menos duas vezes o delito descrito no art. 205 do CP. Em conclusão, estando até o momento indicado pela prova dos autos que o exercício da atividade de advogado na Subseção de Pelotas se deu em desrespeito à decisão administrativa diversa daquela que foi violada pelo exercício da mesma atividade nas Subseções de Caxias e Santo Ângelo, concluo, ao menos por ora, pela existência de delitos distintos.“ Em razão disso, foi ajuizado o presente writ. Sustenta o Impetrante, em síntese, que o ilícito imputado ao paciente é classificado como habitual, necessitando de várias condutas para se consumar. Aduz, assim, que “não poderia ter sido denunciado pelo mesmo crime em comarcas diferentes, uma vez que ele teria cometido apenas um delito, através de vários atos.“ Defende, ainda, que “mesmo que se afirme haver mais de um delito, em virtude do denunciado ter sido suspenso por mais de um período, como afirmado pelo juízo a quo, estariam os mesmos em continuidade delitiva, devendo ser reunidos na comarca de Santo Ângelo, por ser esta preventa.“ Nesse contexto, requer a concessão liminar da ordem e sua posterior confirmação pela Turma para que seja extinta a ação penal nº 2007.71.10.004941-1, com posterior reunião do feito aos autos do processo em trâmite na Vara Federal de Santo Ângelo. Ao menos neste juízo provisório, tenho que assiste razão ao Impetrante. Com efeito, questão semelhante à vertida no presente writ foi objeto de análise por ocasião do julgamento do HC nº 2007.04.00.029755-6/RS (também impetrado em favor do paciente, postulando a remessa da ação penal de Caxias do Sul para Santo Ângelo) cuja ementa foi lavrada nas seguintes letras: HABEAS CORPUS. ARTIGO 205 DO CP. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE QUANDO IMPEDIDO POR DECISÃO ADMINISTRATIVA. CRIME HABITUAL. 1. O delito previsto no artigo 205 do Código Penal é classificado como habitual. Assim, a reiteração de atos constitui crime único, circunstância incompatível com o instituto da continuidade delitiva. Pela mesma razão, não se justifica a instauração de diversas ações penais contra o réu, uma vez que os vários atos praticados - independentemente do local - consubstanciam o mesmo delito, e não 'concurso de crimes'. 2. Diante desse quadro, a competência firma-se pela prevenção, devendo todas as ações praticadas pelo acusado serem analisadas pelo Juízo que primeiro tomou conhecimento da matéria.“ (Oitava Turma, public. no D.E. em 04.10.2007). Do voto-condutor, consta os seguintes fundamentos:A natureza jurídica do crime previsto no artigo 205 do Código Penal já foi objeto de análise pela Oitava Turma desta Corte no julgamento da ACR nº 2004.71.05.008201-0/RS (Rel. Des. Luiz Fernando Wowk Penteado, public. no D.E. em 10.01.2007) cuja ementa foi lavrada nestas letras: PENAL. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE COM INFRAÇÃO DE DECISÃO ADMINISTRATIVA. ARTIGO 205 DO CÓDIGO PENAL. TIPICIDADE. HABITUALIDADE. A expressão típica “exercer atividade“, constante no artigo 205 do Caderno Criminal, requer a habitualidade do agente na realização de atos inerentes à sua atividade durante o período no qual o exercício dos mesmos se encontre obstado por decisão administrativa. No voto do Relator, consta exauriente lição doutrinária sobre as características do aludido tipo penal, verbis: '(...) Atividade deve ser entendida como trabalho, profissão. O seu exercício implica repetição de atos próprios de determinada profissão, exigindo-se habitualidade (...)' (Damásio Evangelista de Jesus, in Código Penal Anotado, Editora Saraiva, 13ª Edição, 2002, p. 706). '(...) O núcleo exercer tem a significação de praticar, exercitar, desempenhar. Requer que o agente aja com habitualidade, porquanto o exercício de atividade implica reiteração, repetição, constância. O exercício é de atividade (trabalho desempenhado por uma pessoa), que traz, também, a mesma idéia de habitualidade, a qual é, assim, imprescindível à tipificação do delito. (...)' (Celso Delmanto e outros, in Código Penal Comentado, Editora RENOVAR, 5ª Edição, 2000, p. 404). '(...) Exercer (praticar, desempenhar ou cumprir, com certa habitualidade) atividade, de que está impedido por decisão administrativa. Não se costuma dizer que alguém exerce determinada atividade se o fez uma só vez. O exercício fornece a nítida idéia de regularidade.(...)' (Guilherme de Souza Nucci, in Manual de Direito Penal, Editora Revista dos Tribunais, 2ª Edição, 2006, p. 743). '(...) Trata-se de crime habitual que se configura no exercer, desempenhar, praticar, exercitar atividade de que está proibido por suspensão, cancelamento e cessação de licenças e faculdades do Ministério do Trabalho ou de qualquer outro órgão da administração pública que regula ofício, arte ou profissão, inclusive os de organização profissional.(...)' (Júlio Fabbrini Mirabete, in Código Penal Interpretado, Editora Atlas Jurídico, 3ª Edição, 2002, p. 1504). Verifica-se, portanto, que a reiteração de atos constitui crime único, circunstância incompatível com o instituto da continuidade delitiva. Pela mesma razão, não se justifica a instauração de diversas ações penais contra o réu, uma vez que os vários atos praticados - independentemente do local - consubstanciam o mesmo delito, e não 'concurso de crimes', conforme considerado no decisum. Diante desse quadro, a priori, a competência firma-se pela prevenção, devendo todas as ações praticadas pelo acusado serem analisadas pelo Juízo que primeiro tomou conhecimento da matéria. No caso dos autos, a competência é da Vara Federal Criminal de Santo Ângelo/RS, uma vez que a ação penal nº 2006.71.05.008246-8 foi distribuída em 06.11.2006, anteriormente, portanto, ao feito de Caxias do Sul (proc. nº 2007.71.07.000974-0) que ocorreu na data de 05.03.2007.“ Solução semelhante, a priori, deve ser adotada na hipótese em tela, tendo em conta que a ação foi distribuída em 17.07.2007. Inobstante isso, aduz o ilustre julgador singular que os demais processos movidos contra o réu se referem a fatos ocorridos entre 19.04.2006 e 19.10.2006, vinculando-se, portanto, à decisão proferida no processo administrativo disciplinar nº 102137/1999, cuja decisão foi publicada em 19.04.2006, e que os atos objeto da ação penal ora atacada dizem respeito a período anterior, ou seja, de novembro/2003 a abril/2004, em que se encontrava suspenso por decisão administrativa diversa, qual seja, aquela proferida no processo administrativo nº 96173/1998, publicada em 04.11.2003.“ Entretanto, compulsando os autos, constata-se que a denúncia relativa à ação penal em trâmite na Vara Federal de Santo Ângelo/RS (fls. 26-7) que inicialmente se restringia às datas de 09/06/2006, 14/06/2006 e 17/08/2006, cuja atuação do paciente se deu mesmo estando com sua atuação suspensa desde 19/04/2006 (sendo, portanto, referente ao processo administrativo nº 102137/1999 - cuja penalidade é relativa ao período de 19.04.2006 a 19.10.2006) na data de 30.01.2007 (anteriormente, portanto, à distribuição da ação penal na Vara de Pelotas) foi objeto de aditamento (fls. 28-9) tendo o Ministério Público incluído fatos praticados nos dias “10/03/04, 30/03/04 e 14/04/04“, antes, portanto, de 19.04.2006. Conclui-se, assim, que tais condutas se referem a processo administrativo diverso, muito provavelmente ao mencionado na decisão hostilizada (nº 96173/1998) estando a Vara Federal de Santo Ângelo/RS, em princípio, também preventa para tais fatos. Ante o exposto, presentes os requisitos legais, defiro a liminar para suspender a ação penal nº 2007.71.10.004941-1/RS, até o julgamento do presente mandamus pelo Colegiado. Solicitem-se informações à digna autoridade impetrada, que as prestará em 05 (cinco) dias. Oficie-se ao Juízo da 1ª Vara Federal de Santo Ângelo/RS para que, em igual prazo, esclareça quais processos administrativos disciplinares da OAB (número e período de suspensão) consubstanciam a ação penal número 2006.71.05.008246-8/RS. Abra-se vista à douta Procuradoria Regional da República. Intimem-se. Publique-se. Porto Alegre, 22 de novembro de 2007.

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