A Reforma do Judiciário resultante da Emenda Constitucional nº 45/2004 não foi a profunda reforma estrutural da Justiça Brasileira. Não atendeu a todas as expectativas. Desalentou aqueles que nutriam enorme esperança de que a Justiça seria completamente outra a partir de sua promulgação.
Nada obstante, ela tem um inegável mérito. Sinaliza as exigências do constituinte em relação ao juiz do futuro. Qual seria o juiz do futuro?
Segundo o constituinte, aquele capaz de assegurar a todos a razoável duração do processo e de implementar os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Essa é uma ponderável transformação das expectativas da nação a respeito de seus juízes. Mas não é a única. O constituinte também se deteve a traçar atributos do juiz do futuro. Eles seriam, dentre outros, o desempenho, a produtividade, a presteza no exercício da jurisdição, além de assiduidade e aproveitamento em cursos de aperfeiçoamento.
São qualidades nem sempre contempladas pela sistemática vigente de recrutamento. Não é praxe preocupar-se o Tribunal com o futuro desempenho do profissional a ser selecionado. Menos ainda com sua produtividade. A partir de agora, tais requisitos, apesar de seu subjetivismo semântico, passam a reclamar interpretação consistente, pois residem no texto constitucional reservado à magistratura. Quem é que deverá recrutar o juiz do futuro ?
Na visão do constituinte não será a Universidade. Esta se preordena a outra missão: estimular a formação de pesquisadores, de docentes, de intelectuais atualizados com o pensamento universal contemporâneo. Mas não é missão da Universidade entregar juízes prontos e acabados ao Judiciário. É missão da própria Justiça formar os seus juízes.
É preciso estar atento ao preceito constitucional que se preocupa com a formação de juizes. O que significa formar juízes ? O constituinte adotou o paradigma da formação continuada. Esta consiste em preparar, até semanticamente, a preparação é prévia ao concurso, formar durante a carreira e aperfeiçoar enquanto o juiz estiver em exercício.
A grande missão da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados é a de encarar o desafio dessa nova concepção de formação de juízes. Os passos iniciais da nova Escola serão: 1) estabelecer critérios para o ingresso na carreira; 2) estabelecer critérios para a promoção na carreira. Mas a sua missão integral é ser, verdadeiramente, uma Escola.
Desde logo, uma distinção. O constituinte estabeleceu uma diferença entre cursos oficiais e cursos reconhecidos. A Constituição não contém palavras inúteis. O constituinte derivado exigiu cursos oficiais de preparação para ingresso e de preparação para promoção, mas admitiu cursos oficiais ou reconhecidos para aperfeiçoamento.
A manutenção dos cursos preparatórios não poderá ser delegada, nem poderá ser objeto de credenciamento. Já os cursos de aprimoramento podem resultar de parcerias com a Universidade, com outras instituições e entidades encarregadas da educação e do ensino.
A Emenda nº 45/2004 representa uma profunda alteração no sistema de preparação do juiz. Até seu advento, o juiz era recrutado a partir da produção das Faculdades de Direito. Desse universo é que são recrutados os novos profissionais das áreas jurídicas. E a formação jurídica ainda é bastante arcaica e conservadora. Atende a um modelo dogmático-positivista, a pressupor uma sociedade estável, para a qual a codificação é suficiente. O jurista gerado pela escola coimbrã trabalha com o paradigma da subsunção e do silogismo. Daí as dificuldades encontradas para enfrentar o mundo novo. O que mudou no mundo do Direito ?
O paradigma pós-moderno é também pós-positivista. As fórmulas abstratas da lei já não trazem todas as respostas. O pós-positivismo caracteriza-se por normatizar os princípios. A lei já não constitui resposta adequada para solucionar todas as questões.
Duas observações se impõem. O Parlamento moderno afeiçoou-se à função de julgar e, além de investir na fiscalização do Executivo, atua na proliferação das CPIs. O Executivo, para poder administrar, vê-se obrigado a legislar e abusa na edição das Medidas Provisórias. Resta ao Judiciário administrar e o faz mediante as medidas liminares e a antecipação de tutelas. Para isso contribuem a imperfeição e a ambigüidade do fruto do Parlamento. A lei moderna já não é a expressão da vontade geral. Não é mais a relação necessária que se extrai da natureza das coisas. È uma resposta pontual, tópica e possível para uma questão concreta. É o fruto do compromisso entre setores de interesses antagônicos, nem sempre íntimos com a intenção de atender o interesse coletivo.
Tudo isso gera perplexidades na função tradicional reservada a cada Poder. Mas não é só. A constituição do Brasil de 1988 é prenhe de princípios e adota o modelo dirigente. É mais uma promessa do que um documento jurídico. Enquanto as leis se submetem ao modelo do tudo ou nada, ou valem ou não valem, os princípios se subordinam ao esquema da ponderação. As lei são rígidas, os princípios são plásticos. Um princípio não exclui o outro, mas ambos podem ser contemporizados e prepondera aquele cuja incidência se mostrar mais adequada ao caso concreto.
Daí a importância do constitucionalismo contemporâneo, a promover o retorno dos valores e a reaproximar, de maneira eficiente, o Direito da ética.
O desafio da Escola da Magistratura é transformar o produto dogmático positivista da educação jurídica, à luz da velha feição das Faculdades de Direito, em um profissional atualizado, pronto a enfrentar os desafios contemporâneos. Um solucionador de conflitos, polivalente e intérprete da vontade da Constituição. Um operador do Direito capaz de fazer escolhas fundamentadas quando se defrontar com antagonismos cada vez mais freqüentes.
Antagonismos tais como a liberdade de expressão versus o direito à privacidade. Livre iniciativa versus intervenção estatal. Propriedade versos função social. A contemporaneidade só oferece ao intérprete uma certeza: a incerteza.
É para atuar nesse mundo que se recruta um juiz. Um juiz que estudou na Faculdade em que tudo se resolve à luz do silogismo e da subsunção. Mas esta se mostra insuficiente para resolver os conflitos. A lógica de hoje não é mais a do tudo ou nada. Em lugar da rigidez da lei, a ponderação dos princípios.
Sobre ponderação dos princípios, cabe lembrar, como o faz Luis Roberto Barroso, a contribuição de Robert Alexy na sua “Teoria de los derechos fundamentales”. As regras veiculam mandados de definição, enquanto os princípios são mandados de otimização. As regras têm natureza biunívoca: só admitem duas espécies de situação. Regras são válidas ou inválidas. Já os princípios, pretendem ser realizados da forma mais ampla possível. Nada obstante, admitem aplicação de maior ou menor intensidade, consoante as possibilidades jurídicas existentes, sem que isso comprometa a sua validade.
Os princípios convivem e se interpenetram. Em relação ao princípio não se poderia utilizar da praxe do revogam-se as disposições em contrário. Elas se complementam, se suprem, incidem simultaneamente sobre as várias exteriorizações da realidade.
Disso deflui que a Escola da Magistratura não pode ser uma Faculdade de Direito revisitada, nem uma revisão, concentrada, das disciplinas jurídicas ministradas nas Escolas de Direito. A perspectiva pós-positivista principiológica do Direito reclama intensificação do estudo da hermeneutica constitucional, pois o Direito contemporâneo é um sistema aberto de valores.
Mais do que o domínio das técnicas jurídicas, o juiz de hoje e de amanhã precisa ter consciência de que ele concretiza ou sepulta valores. Antoine Garapon afirmou que o juiz é o guardião das promessas do constituinte. Cabe hoje asseverar que o juiz não é só o guardião mas o concretizador das promessas do constituinte. Ele é o garante, é o avalista e é o implementador de tudo aquilo que o povo, mediante seus representantes, quis que a Juistiça propiciasse à nação.
Para isso, é preciso desenvolver uma consciência sensível. E como fazê-lo ? Não é mediante a reprodução dos cursos destinados ao aprimoramento jurídico. Não é a reiteração de estudos em torno à prolífica edição normativa. A cada nova lei, um novo curso. Como se o ensino da técnica e a ênfase no processo pudesse propiciar nova consciência ao operador do Direito.
A alternativa a essa prioridade exagerada sobre o culto à lei é intensificar a reflexão ética. Essa é a chave capaz de abrir a porta da busca incessante, da busca pelo crescimento da consciência e da sensibilidade.
A receita é priorizar o estudo da Filosofia, da Hermenêutica, da Teoria da Argumentação, da Lógica, da Sociologia, da Psicologia, da Economia, da História, da Política. O desafio é treinar o raciocínio abstrato para a solução de questões concretas. Acima de tudo, formar o juiz para a postura conseqüencial.
O conseqüencialismo deve merecer ênfase na formação dos novos juízes. O juiz precisa ter consciência da repercusão de sua decisão no âmbito da sociedade em que atuar. Não vale mais o faça-se o direito e pereça o mundo. O contraditório haverá de ser exercido concretamente, mais do que um postulado dogmático de índole constitucional, como fórmula de se imaginar, simultaneamente, na posição de cada um dos envolvidos no drama judicial.
Uma perspectiva prática suplanta o velho esquema de transmitir modelos de despachos e decisões. Há de se compenetrar o formador de juízes de que prática é categoria gnoseológica na construção da crítica e uma questão fundamental na formação do julgador. Prática não é mera pragmática, mas eixo fundamental de unidade da experiência, que lança pontes sobre o abismo que separa os discursos do conhecimento, o da ética e o da política, na visão de Lyotard.
O ensino, para os futuros juízes, haverá de ser voltado para o futuro. Vive-se a era da velocidade de surgimento e de renovação dos saberes. Haverá de se alimentar a consciência de que a maioria das competências adquiridas por uma pessoa no início de seu percurso profissional estarão obsoletas no fim de sua carreira. Trabalhar, daqui para o futuro, quer dizer, cada vez mais, aprender, transmitir saberes e produzir conhecimentos.
Não se poderá desconhecer a influência da cibercultura. A informática é muito mais do que se utilizar do computador como substituto da máquina de escrever. O ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que amplificam, exteriorizam e modificam numerosas funções cognitivas humanas. Não há porque temer a exploração em plenitude de todas elas. A memória, com os bancos de dados, os hiperdocumentos, os arquivos digitais de todos os tipos. Manter viva a imaginação, com as simulações, estimular a percepção, com os sensores digitais, a telepresença, as realidades virtuais. E intensificar o uso eficaz do raciocínio, mediante a inteligência artificial e a modelização de fenômenos complexos. Seria mera utopia ou esse novo mundo é real ?
Para responder, basta lembrar que o processo virtual já é rotina nos Juizados Especiais Federais da 3ª Região. A videoconferência já é realidade em São Paulo, pese embora a resistência de setores bem articulados e portadores de ponderáveis argumentos. O habeas corpus por e-mail foi realidade desde o ano 2000 no extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, que viu interrompida a sua caminhada cibernética diante da unificação que preferiu manter outras estruturas. Mercê do esforço individual de alguns magistrados idealistas, já se troca votos pela rede executiva, já se otimiza a produtividade e o acompanhamento eletrônico de processos é coisa antiga.
É tempo de recuperar o prejuízo. A Justiça brasileira teve por única dimensão temporal o passado. É preciso hoje preparar o juiz para resgatar o tempo perdido com formalismos estéreis. O que é preciso aprender hoje não pode mais ser planejado nem precisamente definido com antecedência. Os percursos e perfis de competência são todos singulares e podem cada vez menos ser canalizados em programas ou cursos válidos para todos. É preciso investir nas vocações particulares, premiar os talentos individuais, respeitar as autonomias. Tudo em atenção ao pluralismo, valor presente na Carta de 1988.
Chegou o tempo de construir novos modelos do espaço dos conhecimentos. Em lugar de representação em escalas lineares e paralelas, em pirâmides estruturadas em níveis, organizadas pela noção de pré-requisitos e convergindo para saberes superiores, é preferível a imagem de espaços de conhecimentos emergentes, abertos, contínuos, em fluxo, não lineares. O conhecimento a se reorganizar de acordo com os objetivos ou os contextos, nos quais cada um ocupa uma posição singular e evolutiva.
Cabe agora estimular a criatividade, tão presente no discurso, tão combatida na prática. As metáforas centrais da relação com o saber são hoje a navegação e o surfe, que implicam a capacidade de enfrentar as ondas, os redemoinhos, as correntes e os ventos contrários em uma extensão plana, sem fronteiras e em constante mudança. Há melhor definição para os tempos hoje vivenciados por todo ser pensante ?
Em contrapartida, as velhas metáforas da pirâmide, a figura desbotada da escalada do saber, da ascensão ou do cursus, já total e previamente traçado, trazem o cheiro das hierarquias anacrônicas de antigamente. Cheiro que os novos tempos não pretendem mais sentir, se houver adequada leitura do recado que o constituinte da Emenda 45/2004 mandou à cidadania mas, principalmente, ao próprio Judiciário.
Para isso é preciso formar formadores. Os padrões arcaicos não se prestarão ao desafio. A mudança não é apenas do conteúdo do ensino, mas a transformação qualitativa nos processos de aprendizagem. Não é suficiente transferir cursos clássicos e tradicionais para formatos hipermídia interativos. É preciso estabelecer novos paradigmas de aquisição de conhecimentos e de constituição dos saberes.
Aqui entra a noção de aprendizagem cooperativa. É a direção que os educadores antenados e pioneiros consideram a mais promissora. Traduz a perspectiva da inteligência coletiva no domínio educativo. É o compartilhamento de diversos bancos de dados e o uso de conferências e correio eletrônico, mas não apenas isso. É atender às necessidades surgidas de inesperado. É reciclar. É debater, é discutir, é abrir espaço para a participação de todos. O ensino não pode ser mais uma concessão do poder, uma relação hierárquica. Precisa ser uma parceria prazerosa.
Nesse paradigma novo, os professores aprendem ao mesmo tempo que os estudantes e atualizam, continuamente, tanto seus saberes disciplinares como suas competências pedagógicas. E assim, o professor da Escola Judicial não será o velho rançoso do magister dixit, mas o companheiro de jornada. O animador da inteligência coletiva.
O professor da Escola Judicial não tem como função difundir conhecimentos, pois estes são mais eficazmente acessíveis por outros meios. A sabedoria nunca esteve tão disponível e tão ao alcance dos interessados. Basta um computador pessoal e o acesso à infovia para ingressar nas maiores bibliotecas e nas mais respeitadas universidades do planeta.
A competência desse novo educador deve deslocar-se no sentido de incentivar a aprendizagem e ampliar a capacidade de pensar. É um instigador, um estimulador da reflexão, sua atividade será centrada no acompanhamento e na gestão das aprendizagens. O incitamento à troca dos saberes, a meditação relacional e simbólica, a pilotagem personalizada dos percursos de aprendizagem, na visão pioneira de Pierre Lévy.
Para isso é preciso uma vocação especial. “Para que o coração todo do ser humano possa estar voltado a ensinar, ele deve estar totalmente imbuído da importância vital e da verdade absoluta daquilo que deve ensinar; a fim de que, no entanto, alguém tenha algum sucesso em aprender, deve estar penetrado com um sentimento da insatisfação de sua presente condição de conhecimento” (Charles S.Peirce).
Enfim, é necessário idealismo e humildade. Pois “...não é o homem que pensa tudo saber que pode levar outros homens a sentir a necessidade de aprender, e é somente um profundo senso de que é miseravelmente ignorante que pode estimular alguém a avançar no estafante caminho do aprender”.
O recado foi dado. O constituinte derivado quis dotar o Judiciário brasileiro de uma verdadeira Escola. A função de regulamentar é apenas uma e não é a mais importante das Escolas Nacionais de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. A relevância da Justiça para a preservação e para o aperfeiçoamento da Democracia não seria amesquinhada com a vocação de mero agente regulamentador.
A Escola de Juízes da Emenda nº 45/2004 não mais é a decantada ficção jurídica da pregação apostólica do ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Predestina-se, muito mais do que se imaginou, a desempenhar a missão de usina de criação de uma teoria de formação de magistrados e de laboratório permanente de aprimoramento da Justiça.
Isso é perfeitamente possível. O mundo tem modelos exitosos: o Centro de Estudos Judiciários de Portugal, a Escola Nacional da Magistratura Francesa, The Legal Training and Research Institute of Japan e tantos outros. O Brasil mesmo já possui um modelo bem-sucedido : o Instituto Rio Branco, o Itamaraty, formador da melhor diplomacia da América. Essa Escola é possível.
Propiciar aprendizagens permanentes e personalizadas através de navegação e de pesquisa convencional. Orientar estudantes/juízes ou candidatos à carreira em um espaço de saber flutuante e destotalizado. Promover aprendizagens cooperativas, fortalecer a inteligência coletiva no centro de comunidades virtuais, desregulamentar parcialmente os modos de reconhecimento dos saberes, gerenciar dinamicamente as competências em tempo real. Tudo isso é missão de uma Escola voltada a promover reflexão, debates e estímulo à criatividade, em lugar de repetir os velhos chavões da formação coimbrã.
O momento é agora. O Brasil precisa, como nunca precisou, de juízes conscientes. Cresce a demanda por Justiça, ante o desamparo da política. O Direito converte-se na última moral comum, em uma sociedade que parece não mais possuir moral alguma. A democracia desnorteada espera encontrar seu norte no Judiciário.
Esta é a função da Escola de Juízes: preparar, formar, educar e aprimorar o juiz do futuro. Aliás, uma reação de defesa em face de um quádruplo desabamento: político, simbólico, psíquico e normativo. O juiz é o remédio contra a implosão das sociedades democráticas que não conseguem administrar satisfatoriamente a complexidade e a diversificação que elas mesmas geraram. O indivíduo, numa sociedade heterogênea e iníqua como o Brasil, busca no contato com a Justiça o refúgio contra o desabamento interior.
Quem tiver consciência assumirá o desafio de ser digno dessa missão salvífica.