Angélica Teodoro, dezoito anos, mãe de um filho de dois anos, desempregada, primária e de bons antecedentes ficou presa 128 dias (na comarca de São Paulo) porque teria tentado “roubar” um pote de 200 gramas de manteiga, avaliado em R$ 3.10 (O Estado de São Paulo de 16.03.06, p. C6 e de 25.03.06 p. C4). Não houve ameaça com arma de fogo ou mesmo com arma branca. Cinco pedidos de liberdade provisória foram denegados (pelo Juízo e pelo Tribunal de Justiça). Coube ao Ministro Paulo Gallotti do STJ conceder para ela a liberdade provisória.
Partindo-se da premissa de que teria (efetivamente) havido ameaça, o caso que acaba de ser narrado não está regido pelo princípio da insignificância, sim, constitui uma típica infração bagatelar imprópria, que está norteada pelo princípio da irrelevância penal do fato.
Infração bagatelar imprópria é a que nasce relevante para o Direito Penal (porque há desvalor da conduta bem como desvalor do resultado) mas depois se verifica que a incidência de qualquer pena no caso concreto apresenta-se totalmente desnecessária (princípio da desnecessidade da pena conjugado com o princípio da irrelevância penal do fato).
Não se pode confundir, desse modo, o princípio da insignificância com o princípio da irrelevância penal do fato: aquele está para a infração bagatelar própria assim como este está para a infração bagatelar imprópria. Cada princípio tem seu específico âmbito de incidência. O da irrelevância penal do fato está estreitamente coligado com o princípio da desnecessidade da pena. Ao “furto” de um pote de manteiga deve ser aplicado o princípio da insignificância (porque o fato nasce irrelevante). Tratando-se de “roubo”, que envolve bens jurídicos sumamente importantes (integridade física, liberdade individual etc.), pode ter incidência o princípio da irrelevância penal do fato (se presentes todos os seus requisitos).
Não é acertado utilizar um critério típico do princípio da irrelevância penal do fato (coligado à teoria da pena) na esfera de incidência do princípio da insignificância (que reside na teoria do delito). Essa é a confusão que precisa ser desfeita o mais pronto possível, para que o Direito Penal não seja aplicado incorretamente ou arbitrariamente.
Os princípio da insignificância e da irrelevância penal do fato, a propósito, não ocupam a mesma posição topográfica dentro do Direito Penal: o primeiro é causa de exclusão da tipicidade material do fato (ou porque não há resultado jurídico grave ou relevante ou porque não há imputação objetiva da conduta); o princípio da irrelevância penal do fato é causa excludente da punição concreta do fato, ou seja, de dispensa da pena (em razão da sua desnecessidade no caso conreto).
Um afeta a tipicidade penal (mais precisamente, a tipicidade material); o outro diz respeito à (desnecessidade de) punição concreta do fato. O princípio da insignificância tem incidência na teoria do delito (aliás, afasta a tipicidade material e, em conseqüência, o próprio crime). O outro pertence à teoria da pena (tem importância no momento da aplicação concreta da pena).
O primeiro tem como critério fundante o desvalor do resultado ou da conduta (ou seja: circunstâncias do próprio fato); o segundo exige sobretudo desvalor ínfimo da culpabilidade (da reprovação: primário, bons antecedentes etc.), assim como o concurso de uma série de requisitos post factum que conduzem ao reconhecimento da desnecessidade da pena no caso concreto (pouco ou nenhum prejuízo, eventual prisão do autor, permanência na prisão por um fato sem grande relevância etc.)
Para que se reconheça esse último princípio (assim como a desnecessidade ou dispensa da pena), múltiplos fatores, portanto, devem concorrer: ínfimo desvalor da culpabilidade, ausência de antecedentes criminais, reparação dos danos ou devolução do objeto, reconhecimento da culpa, colaboração com a justiça, o fato de o agente ter sido processado, o fato de ter sido preso ou ter ficado preso por um período etc.
Tudo deve ser analisado pelo juiz em cada caso concreto. Lógico que todos esses fatores não precisam concorrer (todos) conjugadamente. Cada caso é um caso. Fundamental é o juiz analisar detidamente as circunstâncias do fato concreto (concomitantes e posteriores) assim como seu autor.
O fundamento jurídico para o reconhecimento do princípio da irrelevância penal do fato reside no artigo 59 do CP (visto que o juiz, no momento da aplicação da pena, deve aferir sua suficiência, antes de tudo, sua necessidade).
Mas quando o juiz reconhece o princípio da irrelevância penal do fato não está concedendo um perdão judicial extra-legal. Não é o caso. Referido princípio não é extra-legal, ao contrário, tem amparo legal expresso (no art. 59 do CP). O juiz reconhece a dispensa da pena (ele deixa de aplicar a pena) no caso concreto e isso é feito com base no art. 59 do CP (que diz que o juiz só aplica a pena quando for necessária para a reprovação e prevenção do delito). A sentença do juiz, nesse caso, tem a mesma natureza jurídica da sentença que concede perdão judicial: é declaratória de extinção da punibilidade (Súmula 18 do STJ).