AÇÃO PENAL 2004.02.01.002001-0

REL. DES. GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA -  

Direito penal e processo penal. Ação penal. Parlamentares. Servidora e juiz federal. Competência. Plenário do tribunal. Perpetuação. Órgão jurisdicional pré-existente. Sigilo fiscal. Quebra. Legalidade. Interceptação telefônica. Transcrição integral. Desnecessidade. Ausência de prejuízo. Encontro fortuito de provas. Compartilhamento. Admissibilidade. Competência. Foro por prerrogativa de função. Temperamentos. Fontes probatórias independentes. Autorização judicial. Data de comunicação às operadoras. Irrelevância. Prevenção de desembargador relator. Afastamento. Ratificação dos atos processuais. Possibilidade. Documentos. Assinatura. Incidente de falsidade. Necessidade. Corréus sem prerrogativa de foro. Desmembramento. Não obrigatoriedade. Conveniência e oportunidade. Denúncia. Aptidão. Bis in idem não caracterizado. Peculato e corrupção. Consunção. Inocorrência. Peculato-desvio, lavagem de ativos e corrupção passiva. Magistrado. Insuficiência da prova. Princípio da não-culpabilidade. Renda declarada e patrimônio. Desequilíbrio. Inadequação aos tipos penais. Quadrilha. Associação estável. Ausência de prova. Diárias. Viagens. Peculato-desvio. Condenação.  1. Ação penal ajuizada em 17/8/2005 contra um Juiz Federal, um ex-presidente e um ex-diretor da ALES, um ex-deputado estadual e uma escrivã do TJES, acusados de crimes de quadrilha, corrupção passiva e ativa, peculato e lavagem de dinheiro, envolvendo troca de decisões judiciais por vantagens pecuniárias ou pessoais, inclusive nomeação e exoneração de pessoas em cargos comissionados no Legislativo do Estado do Espírito Santo. O Regimento Interno do TRF2, art. 301, manteve a competência do Plenário para apreciar processos distribuídos até a instalação do Órgão Especial, em abril/2014, e o direito dos réus de serem julgados por órgão judiciário pré-existente, observando o art. 8º, I, do Pacto de San José da Costa Rica – Convenção Interamericana de Direitos Humanos. O Órgão Especial, criado para otimizar a prestação jurisdicional, não suprimiu órgão judiciário, nem alterou a competência em razão da matéria, obediente ao art. 87 do CPC/1973, que consagra o princípio da perpetuatio jurisdictionis.  2. A quebra do sigilo fiscal, autorizada pelo Tribunal em medida cautelar específica, não foi infirmada pelo STJ, que a vedou no caso LINEART, mas na origem prevaleceu como prova independente.  3. Jurisprudência do STF reputa desnecessária a transcrição integral de conversas telefônicas interceptadas, embora garantindo aos acusados amplo acesso ao teor completo das gravações, dizendo, porém, ser eficazes, no contexto do processo penal, a parte da mídia não danificada e recuperada, nos termos das degravações, salvo descarte intencional, a prejuízo da defesa, o que não foi demonstrado, além da circunstância de que as provas que subsidiam a acusação têm fontes independentes.  4. É amplamente admitido o compartilhamento da prova emprestada, bastando que se assegure o contraditório (EREsp 617428), cabendo destacar, no caso em exame, que o encontro fortuito (HC 315318) ocorreu nas investigações do “Esquema LINEART”, dirigido a outros personagens, no juízo estadual competente, que autorizou as interceptações telefônicas; sendo incontrolável, por óbvio, saber antecipadamente o alcance e abrangência das relações envolvidas, donde a impossibilidade prática de delimitação prévia rigorosa dos fatos e pessoas ao fim revelados. Precedentes do STJ.  5. O Plenário do TJES, em incidente no HC 0003720-06.2005.8.08.0000, declarou a inconstitucionalidade do art. 122, § 7º, da Constituição capixaba, afastando a prerrogativa de foro de procuradores do Estado; e ainda que interpartes e pendente de exame na ADI 2820, os sujeitos passivos na escuta são os interlocutores – a pessoa investigada e aquela com quem estiver falando –, e não os donos das linhas telefônicas – sendo desinfluente a titularidade do então Procurador-Geral do Estado, irmão de um dos réus, de um dos terminais interceptados.  6. A interceptação telefônica é necessária sobretudo para apurar eventual crime de quadrilha, que exige todos os instrumentos investigativos disponíveis no ordenamento jurídico para coletar elementos de prova de sua existência. São lícitas as interceptações autorizadas e realizadas a partir de 2/12/2002, data das primeiras escutas, sendo irrelevante a data de comunicação da decisão judicial às operadoras de telefonia, já que o requisito temporal inicial de validade é a própria autorização judicial e não a comunicação formal da decisão permissiva da quebra do sigilo telefônico.  7. Afastada a conexão entre uma Exceção da Verdade e o inquérito desta ação penal, sem juízo de valor sobre a prestabilidade das provas, pode o Plenário do TRF ratificar os atos anteriores, nos termos da Súmula 706/STF e arts. 563 e 564 do CPP, que afastam a declaração de nulidade quando inexistir prejuízo. Inteligência do acórdão do STJ, no HC nº 56.128, em 6/8/2007.  8. As assinaturas impugnadas em documentos dos autos exigem instauração de incidente de falsidade, art. 145 e ss. do CPP, pedido não formulado. Precedentes.  9. A competência da Justiça Federal, ratione personae, para julgar juiz federal, estende-se aos diversos corréus, por decisão do Plenário no recebimento da denúncia e, concluída a instrução, só se justifica o desmembramento do processo por questões de conveniência e oportunidade, como, a exemplo, se a pluralidade de réus e complexidade dos fatos causassem embaraços à tramitação processual, no caso inocorrentes. Precedente do STF, Inq. 3412, Rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, public. 8/10/2014; e aplicação da Súmula 704 do STF, ainda em vigor.  10. É idônea e incensurável a denúncia que permite a precisa compreensão dos fatos acoimados de criminosos, com individualização dos atos atribuídos a cada réu, havendo assim justa causa para a deflagração da persecução penal.  11. Os réus acusados na justiça estadual de crime de peculato pelo pagamento/recebimento de dois cheques descritos na denúncia devem buscar, se for o caso, o trancamento da outra ação penal, por bis in idem, porque a denúncia do MPF é anterior à do MP estadual.  12. O peculato e corrupção, condutas típicas independentes, não são meio necessário ou fase normal de preparação ou execução uma da outra, afastando-se a tese da consunção ou absorção.  13. As provas produzidas pela acusação – interrogatório, escutas telefônicas e quebra de sigilo bancário; oitiva de Delegado e de membros do Ministério Público, Federal e Estadual, que atuaram em processos conduzidos pelo réu, servidores públicos, auditores fiscais, administrador e dois empresários – sobraram soltas ou inconclusas, frustrando o rigor penal quanto à materialidade dos crimes de quadrilha, peculato-desvio, corrupção ativa e lavagem de dinheiro – impondo-se a absolvição do Juiz Federal, efeito lógico da insuficiência probatória. Mesmo os diálogos extraídos da escuta telefônica, embora sugerindo relacionamento próximo com corréu, não se fizeram acompanhar de outros elementos imprescindíveis à tipicidade da conduta reprovável.  14. O proveito é irrelevante à consumação do peculato-desvio – quando o servidor público efetivamente desvia o dinheiro, valor ou outro bem móvel –, mas era essencial para evidenciar a co-autoria do juiz, eis que o órgão ministerial não descreveu outra forma de sua atuação nos desvios de verbas dos cofres da ALES, e nenhuma das testemunhas colaborou para elucidação desses fatos.  15. Foi provado o recebimento do valor de dois cheques nominativos, R$ 4.000,00 e R$ 5.000,00, emitidos por corréus, conquanto destinados a duas associações comunitárias; e diárias, R$ 28.907,20, para 19 viagens não realizadas a Belo Horizonte, São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro, entre 12/1/2001 e 15/10/2002, por meio de empenho, conforme planilha de diárias e processos administrativos. Nada indica, porém, o seu repasse pela ex-servidora favorecida ao juiz réu. O sujeito ativo do peculato é o servidor que desvia o dinheiro, e/ou a pessoa, servidora ou não, que recebe indevidamente esse bem específico, pois o tipo envolve “proveito próprio ou alheio”.  16. Ainda que se verifique desequilíbrio entre renda declarada e patrimônio amealhado pelo juiz federal entre 1999 e 2004, não se encontra nos autos o liame objetivo, extreme de dúvida razoável, para convencer da co-autoria do peculato-desvio, cumprindo respeitar-se o princípio constitucional da não culpabilidade.  17. Não apresentada prova suficiente da corrupção passiva do juiz, nem da ativa, atribuída aos dirigentes da ALES pela venda de decisões e tentativa de manipular resultado do TRE, não se pode presumir que pagamentos em cheques e diárias à ex-servidora destinaram-se ao Juiz seu namorado, nem que “tais valores, somados a outros certamente obtidos pelo Juiz [...] por outras formas não identificadas”, o levaram a presenteá-la com um apartamento de valor superior ao das diárias e cheques: sequer se rastreou, com a quebra de sigilo, o percurso do dinheiro da Assembleia Legislativa, passando pelas contas da ex-servidora.  18. Não se identifica no conjunto probatório a aceitação de vantagem indevida, ou mesmo a origem ilícita e repasse de valor específico ou aproximado ao magistrado, embora a denúncia insista na comprovação da materialidade da corrupção passiva em alguns episódios relacionados à ré, exonerada em 9/12/2002 junto com duas servidoras da ALES. Mesmo que tenha sido a nomeação a pedido do juiz, tal ato não foi objeto da denúncia; e as exonerações não se amoldam facilmente às condutas tipificadas no art. 317 do CP, por ser o cargo comissionado de “livre nomeação e exoneração”, não caracterizando “vantagem indevida”, em princípio, a indicação de determinada pessoa para ocupá-lo. No plano da corrupção passiva, tampouco ficou demonstrado que a suposta indicação da servidora foi aceita “em razão” do cargo de Juiz Federal, nem se apontou, especificamente, o correspondente ato de ofício dolosamente praticado ou omitido.  19. A variação patrimonial a descoberto sugestiva da prática de crime contra a ordem tributária, por omissão ou falsidade de informações, foi aparentemente afastada pela Receita Federal, que deixou de constituir débito por lançamento tributário, não se podendo judicializar o fato, à luz da Súmula Vinculante nº 24; sendo inócua eventual adequação típica no art. 2º, I, da Lei nº 8.137/1990, em face da prescrição, visto a pena máxima de dois anos de detenção.  20. Sem prova de contraprestação específica, restariam indícios de amizade entre o juiz e os corréus nas interceptações telefônicas, mas a mutatio libelli por prevaricação, art. 319 do CP, ou corrupção passiva privilegiada, art. 317, § 2º, em nova adequação típica do fato, esbarraria na prescrição, visto a cominação da pena máxima de apenas um ano de detenção.  21. A instrução criminal não logrou provar, sem o peso da dúvida razoável, os núcleos dos tipos penais indicados na denúncia contra o juiz federal. Não se tem uma única prova documental ou testemunhal, clara e idônea, convincente da prática dos crimes imputados. Na variação patrimonial em 2004, não se excluiu a possibilidade de aquisição de apartamento na Praia do Canto, Vitória/ES, R$ 670.000,00, com empréstimo de R$ 270.000,00 do tio, somado à renda de procuradora ex-mulher, e de professor e dono de curso preparatório para concursos, atividades do juiz, à falta de laudo contábil ou auditoria financeira do conjunto de documentos carreados. A compra de apartamento por R$ 180.000,00, em nome da ex-servidora amante, foi negada pelo vendedor que, em acareação, acusou auditores fiscais pela inserção, em termo assinado sem leitura, da afirmação de recebimento de oferta de dólares, ou vultosa quantia em dinheiro do juiz, como parte do seu pagamento.  22. O corréu acusado de ser dono da Casa do Bingo do Canto e beneficiário de decisão judicial, negou o fato, e o MPF não se desincumbiu do mister impostergável de provar que o estabelecimento operava na conta de interpostas pessoas, testas de ferro ou laranjas.  23. São insuficientes para configurar o crime de lavagem, à ausência de todas as elementares do tipo, a posse de dinheiro em espécie e o desequilíbrio entre os rendimentos pagos pela JFES ao juiz federal em 2004 e os rendimentos isentos/não-tributáveis informados na DIRPF. De regra, o agente público ativo não recebe mais rendimentos isentos do que tributáveis ao longo do ano, contudo não restou provada a vinculação disso a crimes anteriores, nem mesmo de outrem, o que exclui a subsunção do fato à norma do art. 1º da Lei nº 9.613/1998; e a situação que poderia caracterizar afronta ao art. 9º, VII, da Lei nº 8.429/1992 refoge ao âmbito deste processo.  24. O compromisso de compra e venda do apartamento da Rua Joaquim Lyrio, apreendido na residência do magistrado, indicando determinado valor, não foi lavrado ou registrado em cartório e mais parece um rascunho assinado pelos vendedores e comprador, à falta de assinatura da testemunha indicada, não autorizando a conclusão de que a venda se fez por preço superior ao declarado ao imposto de renda e confirmado pela vendedora.  25. A colaboração na compra do imóvel da ex-namorada corré – até certo ponto comum em relações extraconjugais mais duradouras, ou com perspectiva de o ser – não caracteriza lavagem, à ausência de prova do crime antecedente eventualmente cometido pelo próprio juiz ou por outrem, de modo a viabilizar o branqueamento.  26. São elementares do art. 288 do Código Penal, na redação vigente até setembro/2013, o concurso permanente de mais de três agentes, ligados subjetivamente pela vontade consciente de cometer delitos, impondo-se a absolvição de todos os acusados, à falta de prova conclusiva da associação estável para delinquir, em torno da atuação do juiz, cerne das imputações.  27. Afora os laços de amizade, concubinato e de subordinação hierárquica, não há evidência de vínculo associativo criminoso entre os cinco réus “para o fim de cometerem crimes de peculato, corrupção ativa e passiva e lavagem de dinheiro”. Os elementos disponíveis, quando muito, permitem entrever associações episódicas e conjunturais para prática de determinadas condutas sem, contudo, provar uma entidade autônoma e estável, imaginável apenas entre dois dos réus, sem repercussão, porém, para os fins do art. 288 do CP, que exige número maior de agentes.  28. A amizade construída com os dirigentes da ALES recomendava ao juiz afastar-se do processo, por imposição da ética vinculativa dos magistrados, para prevenir suspeição de favorecimento ilícito. No plano disciplinar, sob os rigores da LOMAN, Código de Ética da Magistratura e Princípios de Bangalore, tal proximidade é claramente perniciosa, mas, sob o enfoque criminal, a prova não foi incisiva: as decisões favoráveis aos corréus, das mais variadas espécies – proibição de apreender maquinário de vídeo-bingo a trancamento de ação penal –, não provam, isento de dúvida, o crime de corrupção ativa atribuído a eles.  29. Na imputação de corrupção ativa ou passiva, não se esclareceu o oferecimento ou entrega da vantagem indevida: qual ou de quanto seria a vantagem, quando e em que circunstâncias o juiz a teria recebido, nos moldes dos arts. 317 (juiz federal) e 333, parágrafo único, do CP ( presidente e diretor da ALES).  30. Comprovado o recebimento de diárias por viagens jamais realizadas, justifica-se a condenação da ré e dos ex-presidente e ex-diretor-geral da ALES por peculato-desvio, Código Penal, art. 312, caput, segunda figura, pois “o dolo é representado pela consciência e vontade de empregar a coisa para fim diverso daquele determinado, aliado ao elemento subjetivo do injusto, consistente no especial fim de agir, que é a obtenção do proveito próprio ou alheio” (STJ, REsp 1257003, Rel. p/ acórdão Min. Nefi Cordeiro, DJe 12/12/2014). Como bacharel em direito, agiu com dolo específico: mesmo sem ter a posse, pediu e aceitou o desvio do dinheiro da ALES. Pelo Ato nº 968/1995, o ex-Diretor-Geral autorizava despesas de até R$ 3 mil, isoladamente, e em conjunto com o Presidente da Assembleia assinava cheques, permitindo débitos de valores superiores. Dois cheques, emitidos no “esquema das Associações”, foram depositados, não a favor de Associações carentes, mas da ex-servidora, em procedimento simplório, caracterizando a prática do peculato-desvio. Precedentes.  31. Não se desincumbindo o órgão ministerial do ônus de provar o crime de lavagem ou ocultação de dinheiro pela ex- servidora, que em momento algum escondeu os valores recebidos da ALES; ao contrário, confessou seu recebimento, como “complementação de salário”, sem nada ocultar ou “lavar”, é de rigor a sua absolvição.  32. Ação penal julgada parcialmente procedente para: (i) absolver, por insuficiência de prova, (a) o juiz federal e o ex-deputado, de todas as imputações (CPP, art. 386, VII); (b) o ex-presidente e o ex-diretor da ALES da prática dos crimes dos arts. 288 e 333 do CP (CPP, art. 386, VII); e condenar, por peculato-desvio, art. 312, caput, 2ª parte (21 vezes), na forma do art. 71, ambos do CP, os dois últimos e a ex-servidora, combinando-se, para ela, os mesmos artigos com os arts. 29 e 30, do mesmo código; absolvendo esta ré dos crimes dos arts. 288 do CP e 1º, V e VII, da Lei nº 9.613/1998.   

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