Apelação Criminal Nº 0000472-96.2006.4.03.6005/ms

Apelação criminal - tráfico internacional de armas de fogo e munições - quadrilha ou bando - preliminares rejeitadas - inexistência de inépcia da denúncia - clara tipicidade dos fatos narrados na denúncia - inocorrência de vício por suposto embasamento da sentença em depoimentos anulados pelo stj - validade de interceptação telefônica deferida com base em relatório policial circunstanciado, precedido de intensa investigação preliminar - renovações devidamente fundamentadas na persistência dos pressupostos que conduziram à decretação da interceptação telefônica - desnecessidade de degravação do conteúdo integral das comunicações telefônicas, sendo suficiente que se confira às partes o acesso aos diálogos interceptados - não configuração de irregular mutatio libelli - efetiva correlação entre acusação e sentença - rejeição de pedido formulado em sede de contrarrazões para não conhecimento do apelo ministerial que busca aumento da pena (a regra ne reformatio in pejus inibe apenas o juízo que proferiu a decisão anulada) - autoria comprovada - perfeita adequação típica ao artigo 18 da lei 10.826/03 - impossibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva - majoração das penas-base impostas pela incursão no crime previsto no artigo 18 da lei 10.826/03, em observância das circunstâncias judiciais do artigo 59 do código penal (atendimento do apelo ministerial) - apelações dos réus desprovidas - ratificação da custódia cautelar. 1. A denúncia preenche todos os requisitos descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal, contendo de forma clara e circunstancializada, com redação perfeitamente compreensível, a descrição das condutas atribuídas aos apelantes, não se vislumbrando qualquer irregularidade que tenha impedido o pleno exercício do direito de defesa. 2. Da simples leitura da denúncia verifica-se com clareza solar que os fatos foram perpetrados na fronteira Brasil/Paraguai, iniciando-se em território estrangeiro e estendendo-se a prática e a consumação para dentro do território brasileiro, sendo inquestionável, portanto, a aplicação do princípio da territorialidade, devendo os acusados se sujeitarem às leis do Brasil, nos termos dos artigos 5º e 6º do Código Penal e do art. 18 da Lei nº 10.826/2003. E mesmo sob a ótica da extraterritorialidade, ainda assim seria aplicável a lei brasileira em virtude do disposto no art. 7º, inciso II, alínea “a“, do Código Penal, por força do contido na Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Outros Materiais Correlatos, adotada pela OEA, em novembro de 1997, encontrando-se preenchidas todas as condições previstas no § 2º do artigo 7º do Código Penal, inclusive a constante da alínea “b“, à vista do disposto na Lei de Armas de Fogo, Munições e Explosivos - Lei nº 1.190/02 - sancionada pelo Congresso paraguaio, e no Decreto paraguaio nº 3625/2004. 3. A sentença não está calcada em depoimentos que foram anulados pelo Superior Tribunal de Justiça, tendo em vista decisão proferida pela magistrada sentenciante quanto à não renovação das oitivas do sumário acusatório realizadas nos termos do artigo 222 do estatuto processual penal, sendo que as partes não se insurgiram em primeiro grau de jurisdição a respeito da necessidade de reinquirição de testemunhas, tampouco houve a indicação em alegações finais de qualquer prejuízo suportado pelas partes como consequência da citada decisão. A pretensão de nulidade em face de suposta invalidade de provas não vai um milímetro além de simples “estratégia“ de defesa, claramente inconsistente à luz da realidade processual, despida que é do menor resquício de juridicidade. 4. Relatório circunstanciado lavrado por agente de Polícia Federal, como resultado final de intensa atividade policial de investigação e mapeamento de pessoas e grupos envolvidos com a prática do crime de tráfico de armas, e que apontou veementes indícios da participação dos réus, dentre outros, constitui fundamento idôneo e suficiente para o deferimento de representação policial atinente a interceptações telefônicas e telemáticas. Precedente do STJ: HC 131.441/MT, 6ª Turma. 5. As decisões que decretaram a indispensável prorrogação das escutas foram devidamente fundamentadas na persistência dos pressupostos que conduziram à ordem judicial de interceptação telefônica, sendo explicitada a necessidade de se apurar da forma mais cabal e completa possível os fatos, e ensejar a intervenção fundada das autoridades a fim de coarctar eficazmente os ilícitos perpetrados. “O tempo das escutas telefônicas autorizadas e o número de terminais alcançados subordinam-se à necessidade da atividade investigatória e ao princípio da razoabilidade, não havendo limitações legais predeterminadas. Precedentes“ (STF - HC 106244, Relatora: Minª. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 17/05/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-159 DIVULG 18-08-2011 PUBLIC 19-08-2011). 6. São vários os argumentos em favor da dispensabilidade das transcrições de interceptações telefônicas. Defende-se que o fornecimento do conteúdo magnético, por exemplo, pode ser muito mais eficaz que uma mera transcrição, uma vez que a gravação em áudio permite até reconhecer o tom de uma conversa. Na imensa maioria dos casos tem-se que os diálogos se referem a conversas normais do cotidiano, que envolvem a intimidade da família, de tal forma que a transcrição caracterizaria uma invasão de privacidade indesejável e desnecessária. Também não se pode perder de vista o princípio da instrumentalidade das formas. Ademais, o princípio da eficiência estampado no artigo 37, caput, da Constituição Federal busca evitar o dispêndio de tempo e dinheiro público com medidas desnecessárias - o que acontece com a transcrição de material volumoso e cujo conteúdo não interessa aos autos. 7. In casu, era desnecessária de degravação total dos áudios. O apenso I, volume único, traz a transcrição dos principais trechos das conversas captadas, sendo que os 2 (dois) CD“s contendo a integralidade das gravações foram juntados aos autos e disponibilizados às partes para acesso fácil e direto, inexistindo qualquer vício que tenha o condão de anular a instrução processual por cerceamento de defesa ou afronta ao princípio do contraditório. STF: “desnecessária a juntada do conteúdo integral das degravações das escutas telefônicas realizadas nos autos do inquérito no qual são investigados os ora Pacientes, pois basta que se tenham degravados os excertos necessários ao embasamento da denúncia oferecida, não configurando, essa restrição, ofensa ao princípio do devido processo legal. Precedentes“ (HC 105527, Relatora: Minª. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 29/03/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-089 DIVULG 12-05-2011 PUBLIC 13-05-2011). 8. As condutas enquadradas na denúncia como crime de contrabando, na verdade, indicavam a participação de ALBERTO e AMAURI no crime de importação de acessórios utilizados no fabrico de munição, sendo que a magistrada, considerando de forma escorreita os mesmos fatos narrados na denúncia, procedeu corretamente a emendatio libelli ao conferir a correta capitulação jurídica dos fatos, não havendo que se falar em mutatio libelli. Precedentes do STJ e STF. 9. Ao favorecer dolosamente a entrada em território nacional de material bélico sem autorização da autoridade competente, o réu concorreu, como partícipe, para as referidas importações ilegais de armamento para o Brasil, sendo de rigor a incidência da norma de extensão do artigo 29 do Código Penal. Além disso, tratando-se o artigo 18 da Lei nº 10.826/03 de tipo misto alternativo, é perfeitamente possível que o agente promova, no mesmo cenário, mais de uma conduta prevista no preceito primário do tipo penal, respondendo por um único delito, exatamente a hipótese dos autos. STJ: “...nos tipos mistos alternativos, excluídos os casos de atipicidade absoluta, as ações que o integram não devem ser interpretadas isoladamente...“ (EDcl no RHC 17.561/DF, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 21/02/2006, DJ 08/05/2006, p. 296). 10. A proibição da reformatio in pejus, quando a sentença condenatória é anulada em Instância Superior, é regra destinada apenas ao Magistrado de primeiro grau, que não pode proferir nova sentença condenatória impondo pena maior do que a que restou invalidada. Entretanto, uma vez proferida a segunda sentença, é perfeitamente possível que o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL se insurja em face das penas impostas, conduzindo a Instância Superior à rediscussão sobre a pena imposta, já que neste caso o Tribunal não está inibido de alterar a dosimetria. Particularidade do caso: o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL já havia ofertado razões recursais buscando aumentar a reprimenda dosada na primeira sentença, antes que tal sentença fosse anulada pelo Superior Tribunal de Justiça por razão totalmente diversa da dosimetria das penas. 11. Autoria dos réus comprovada pelo relatório das investigações policiais, pela prova testemunhal coligida aos autos, pelos elementos obtidos através das interceptações telefônicas devidamente autorizadas pelo Juízo (degravadas no Apenso I - Inquérito Policial 081/2006-SR/DPF/MS), aliados a todas as demais circunstâncias dos fatos e provas contidas nos autos, que demonstram que ALBERTO, AMAURI e NADIM internavam e favoreciam a entrada de grande quantidade de munições e armas em território nacional em desconformidade com a legislação brasileira, legislação paraguaia e Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Outros Materiais Correlatos, bem como da associação criminosa estável e permanente existente entre ALBERTO, AMAURI, Waldeck Duarte Júnior e Jorge Luiz da Silva especificamente para o fim de introduzir produtos mortíferos em solo brasileiro. 12. Diante da perfeita adequação típica das condutas perpetradas pelos réus ao artigo 18 c.c artigo 19 da Lei nº 10.826/03, não há que se cogitar da pretendida desclassificação para o artigo 17 do mesmo diploma legal. 13. A hipótese dos autos revela reiteração criminosa indicativa de delinqüência habitual ou profissional, suficiente para descaracterizar o crime continuado. 14. Majoração das penas-base dos réus no que concerne ao delito tipificado no artigo 18 da Lei nº 10.826/03: circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal (culpabilidade - consequências do crime - juízo sobre a personalidade dos réus) recomendando o aumento da pena-base em desfavor dos três acusados. Apelação do Ministério Público Federal provida para esse fim. 15. Penas: ALBERTO e AMAURI, 21 (vinte e um) anos de reclusão, em regime inicial fechado, e pagamento de 48 (quarenta e oito) dias-multa, no valor unitário de 1 (um) salário mínimo vigente à época dos fatos para ALBERTO e 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente ao tempo do crime para AMAURI; NADIM, 15 (quinze) anos de reclusão, em regime inicial fechado, e pagamento de 36 (trinta e seis) dias-multa, no valor unitário de 1 (um) salário mínimo vigente ao tempo do crime. Regime inicial fechado. 16. Justifica-se seja mantida em Segundo Grau de jurisdição a custódia cautelar dos réus, anotando-se que AMAURI e ALBERTO estão presos e NADIM mantém-se foragido. Bem procedeu a MMª Juíza a qua em ratificar a prisão preventiva dos três acusados. De fato, esta Primeira Turma em sede de apreciação de habeas corpus (ns. 2006.03.00.095436-6 e 2007.03.00.102651-7) sempre chancelou a preventiva decretada contra o trio em face da necessidade de resguardar a ordem pública e a aplicação da lei penal. Realmente, não tem sentido que, depois de serem os réus condenados em duas instâncias e com elevação de pena na Segunda Instância, sejam agraciados com a soltura; nesse sentido segue a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (HC 100587, Relator: Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 09/08/2011, DJe-172 DIVULG 06-09-2011 PUBLIC 08-09-2011 EMENT VOL-02582-02 PP-00212); realmente, como já asseverado na Suprema Corte, “...não há ilegalidade em manter presos, para apelar, réus que responderam a ação penal nessa condição“ (HC 92612, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 11/03/2008, DJe-065 DIVULG 10-04-2008 PUBLIC 11-04-2008 EMENT VOL-02314-05 PP-00904 RCJ v. 22, n. 140, 2008, p. 144). A demonstração da necessidade de prender (artigo 282, I, do Código de Processo Penal) é clara nos presentes autos, diante da severa condenação dos réus como autores de crimes que claramente atentam contra a ordem pública - como acentuado no exame das circunstâncias do artigo 59 do Código Penal - e da imperiosidade da providência para assegurar que efetivamente comecem a cumprir suas reprimendas, lembrando sempre que um deles já é foragido. Ratifica-se, pois, os comandos prisionais de fl. 3120/verso 17. Apelações dos réus desprovidas. 18. Oficia-se a Corregedoria Regional para enaltecer o trabalho da MMª Juíza a qua, nos termos regimentais.

Rel. Des. Johonsom Di Salvo

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