RELATOR : Desembargador Federal VALDECI DOS SANTOS -
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. "OPERAÇÃO DESFALQUE". EXTORSÃO. CONCURSO DE AGENTES. QUADRILHA OU BANDO. APROPRIAÇÃO INDÉBITA. FAVORECIMENTO REAL. PRELIMINARES DE ILEGALIDADE NAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS. NULIDADE DO FEITO PELA NÃO OBTENÇÃO DE PROVAS POR OUTROS MEIOS. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INDEFERIMENTO DE DILIGÊNCIAS NA FASE DO 402 DO CPP QUE TERIA CAUSADO PREJUÍZO À DEFESA. QUESTÕES PRELIMINARES REJEITADAS. MATERIALIDADE E AUTORIA. DOLO. DOSIMETRIA. 1. O monitoramento telefônico, embora imprescindível para a elucidação do presente caso concreto, não foi o único meio de prova produzido nos autos, tendo sido deferido outros meios de prova, com o depoimento de várias testemunhas, ouvidas ao longo da instrução criminal. Questão preliminar rejeitada.2. Não há que se falar em nulidade processual por ilegalidade na decisão judicial que deferiu a interceptação telefônica e telemática, posto que foi devidamente fundamentada, tendo por base os relatórios detalhados elaborados na fase inquisitiva e que trouxeram elementos suficientes que justificaram a necessidade e a conveniência, tanto da interceptação telefônica, como das sucessivas prorrogações. Questão preliminar rejeitada. 3. Não prospera a alegação de inépcia da denúncia, porquanto a peça acusatória, bem como o seu aditamento, atenderam aos requisitos descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal, contendo a exposição clara e objetiva dos fatos delituosos, com narração de todos os elementos essenciais e circunstanciais que lhes são inerentes, permitindo ao réu o exercício pleno do direito de defesa assegurado pela Constituição Federal. Por seu turno, tendo em vista que não restou comprovado qualquer vício na quebra do sigilo telefônico, não há que se falar em contaminação das provas dela derivadas (teoria dos frutos da árvore envenenada), e que poderiam acarretar inépcia da denúncia e de seu aditamento. Questão preliminar rejeitada. 4. A decisão de indeferimento dos pleitos da defesa não caracteriza cerceamento de defesa, nem revela qualquer prejuízo à defesa, pois, se por um lado o direito do réu de produzir todas as provas requeridas em sua defesa não é absoluto, de outro lado, ao Juiz é outorgada a faculdade de indeferir provas que considere protelatórias, impertinentes ou irrelevantes à instrução do processo, conforme preceitua o artigo 400, §1º, do Código de Processo Penal. Questão preliminar rejeitada. 5. Do conjunto probatório carreado nos autos, restou devidamente comprovada a prática do delito de extorsão pelo acusado J. R. J., que exigiu vantagem econômica indevida dos representantes da ETH Bioenergia, mediante o emprego de ameaça de causar prejuízo material. Por sua vez, o dolo restou evidenciado na busca para si ou para outrem de uma vantagem indevida, no caso, econômica. 6. Pelo fato de o acusado J. R. J. ter contado com o auxílio de seu comparsa A. C. S. para a prática do delito de extorsão, pois este coordenava as invasões de terras, materializando as ameaças desferidas por seu líder, incide a causa de aumento de pena do concurso de agentes, prevista no §1º do artigo 158 do Código Penal. 7. Suficientemente comprovada a materialidade e a autoria do crime de extorsão, majorada pelo concurso de agentes, contra a empresa ETH Bioenergia, deve ser mantida a condenação do acusado J. R. J. pela prática desse crime (artigo 158, §1º, do CP). 8. A conduta do acusado J. R. J., em relação à empresa COSAN S/A, foi semelhante àquela praticada contra a empresa ETH Bioenergia, ou seja, exigir vantagem econômica de empresas produtoras de açúcar e álcool, mediante a ocupação de suas propriedades. 9. Restou comprovado que a exigência da vantagem econômica partiu do acusado J. R. J., que, pessoalmente, assumiu as negociações com os representantes da COSAN S/A, tendo sido muitas delas temperadas por ameaças deferidas pelo acusado. Por sua vez, o subterfúgio utilizado para validar a transferência do dinheiro (Nota Fiscal fria) foi meticulosamente delineado pelo acusado J. R. J., que delegou atribuições e deu instruções aos seus colaboradores, integrantes do "grupo de frente", bem com as suas vítimas sobre como deveriam agir. 10. Não há dúvidas sobre o constrangimento sofrido pelas vítimas com a situação criada pelo grupo criminoso, restando comprovada a autoria do delito de extorsão praticado pelo acusado J. R. J.. Por sua vez, o dolo restou evidenciado pelas provas coligidas nos autos, consubstanciado na busca para si ou para outrem de uma vantagem indevida, no caso, econômica. 11. Tem-se demonstrada, de forma robusta, a materialidade e a autoria do delito de extorsão praticado pelo acusado J. R. J., por meio dos diálogos interceptados, corroborados por depoimentos de testemunhas, sobre a efetiva ocupação das terras da COSAN S/A e da emissão de uma Nota Fiscal falsa, que foi utilizada para mascarar a transferência do dinheiro exigido da empresa COSAN S/A para a conta bancária de R. A. S. J., integrante do "grupo de frente". 12. Mantida a condenação do acusado J. R. J. pela prática do delito de extorsão contra a empresa COSAN S/A, insculpido no artigo 158, caput, do Código Penal. 13. Robustamente comprovadas a materialidade e a autoria do delito de extorsão contra a concessionária CART, consubstanciada na solicitação de dinheiro, mediante constrangimento das vítimas, visando obter vantagem econômica indevida. Por sua vez, o dolo restou evidenciado pelas provas coligidas nos autos, consubstanciado na busca para si ou para outrem de uma vantagem indevida, no caso, econômica. 14. No que tange à causa de aumento prevista no §1º do artigo 158 do Código Penal, referente ao concurso de agentes, entendeu o magistrado a quo pela sua não incidência, posto que "não restou clara a participação de outros componentes do grupo criminoso no ato de constrangimento das vítimas" (fl. 4481). Com efeito, de forma acertada o magistrado a quo promoveu a emendatio libelli, a fim de afastar a causa de aumento de pena, referente ao concurso de agentes, uma vez que apenas a figura do acusado J. R. J. se mostra ativa na solicitação do dinheiro e no constrangimento causado às vítimas. 15. Mantida a condenação do acusado J. R. J. pela prática do delito de extorsão contra a CART - Concessionária Auto Raposo Tavares S/A, insculpido no artigo 158, caput, do Código Penal. 16. Dos fatos narrados na denúncia, depreende-se que receber, transportar e distribuir as cestas básicas para as famílias cadastradas, constituem atribuições dos coordenadores dos acampamentos, de modo que os acusados, uma vez que estavam atuando em nome do INCRA, já tinham a detenção das cestas básicas, quando resolveram se apropriar destas, incorporando-as em seu patrimônio. Desta feita, a inversão da posse das cestas básicas se deu quando os acusados, agindo como se proprietários fossem, passaram a efetuar as cobranças indevidas, seja pelo seu transporte, seja pela venda de seus componentes, exaurindo-se, nesse momento, o crime. Decerto, o dolo dos acusados, consistente na vontade livre e consciente de agirem como proprietários das cestas básicas, se mostra posterior a detenção ou posse destas. 17. Frise-se que não se vislumbra a utilização de meio fraudulento para que os acusados se apropriassem das cestas básicas, bem como o dolo dos acusados se apresenta em momento posterior à posse destas, não se aplicando ao caso, portanto, o tipo penal do crime de estelionato. Assim, por essas razões, a conduta dos acusados, J. R. J. e C. S. N., melhor se amolda a classificação jurídica do delito de apropriação indébita, insculpido no artigo 168, caput, do Código Penal, e não a do crime de estelionato, previsto no artigo 171, caput, do Código Penal, conforme entendeu o magistrado a quo. 18. Resta claro, do conjunto probatório coligido nos autos, que o acusado C. S. N., na qualidade de coordenador do acampamento, após assenhorear-se das cestas básicas, passou a se comportar como se dono fosse, estipulando valores, a maior, para o transporte das cestas, vendendo itens destas, individualmente, inclusive, para quem não pertencia ao acampamento, com a finalidade de obter vantagem econômica em proveito próprio e do grupo criminoso. Por sua vez, liderando e articulando toda a trama, se encontra o acusado J. R. J., que com desprendimento habitual promovia a distribuição e a venda das cestas básicas, ditando todas as regras a serem seguidas fielmente por seu assecla C. S. N. e por outros integrantes do grupo criminoso. 19. Comprovadas a materialidade e a autoria delitivas, deve ser imputada aos réus C. S. N. e J. R. J. a prática do crime de apropriação indébita de cestas básicas, insculpido no artigo 168, caput, do Código Penal, nos termos da denúncia. 20. A materialidade e a autoria do crime de quadrilha ou bando restaram sobejamente demonstradas pelos diálogos travados entre J. R. J., C. S. N., A. C. S. e os demais integrantes do grupo criminoso, frisando-se que as referidas conversas foram monitoradas por meio de interceptações telefônicas e telemáticas, autorizadas judicialmente. As condutas delitivas perpetradas pelo grupo criminoso tinham como objetivo primordial a obtenção de vantagem econômica, em detrimento do INCRA, da União, dos proprietários de terras e dos trabalhadores rurais sem-terra. 21. Demonstrada a associação de mais de três pessoas, de forma estável, com a finalidade voltada ao cometimento de crimes, deve ser mantida, portanto, a condenação dos acusados J. R. J. e C. S. N. pela prática desse crime, disposto no artigo 288, caput, do Código Penal. 22. Em síntese, o acusado J. R. J. foi condenado pela prática dos crimes de extorsão contra a ETH Bioenergia, majorada pelo concurso de agentes (artigo 158, §1º, do Código Penal), de extorsão contra a COSAN S/A (artigo 158, caput, do Código Penal), de extorsão contra a CART (artigo 158, caput, do Código Penal), de apropriação indébita de cestas básicas (artigo 168, caput, do Código Penal) e de quadrilha ou bando (artigo 288, caput, do Código Penal). 23. Com relação ao acusado C. S. N., este foi condenado pela prática dos crimes apropriação indébita de cestas básicas (artigo 168, caput, do Código Penal) e de quadrilha ou bando (artigo 288, caput, do Código Penal). 24. No que tange ao crime de favorecimento real, a turma, por maioria, decidiu dar parcial provimento ao recurso do acusado C. S. N. para anular a condenação, sem prejuízo de oferecimento de aditamento à denúncia, aplicando-se o disposto no artigo 384 do CPP, nos termos do voto do Des. Fed. Hélio Nogueira, acompanhado pelo Des. Fed. Wilson Zauhy. 25. Da dosimetria do acusado J. R. J.. Não é possível agravar a pena com alusão ao desajuste na personalidade e na conduta social do acusado se tal avaliação se funda no registro de processos em andamento, como é o caso dos autos, visto que tal juízo choca-se com o princípio da presunção de inocência. Nessa linha, a Súmula 444 do STJ: "É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base". A avaliação da personalidade do acusado e também da sua conduta social devem estar assentadas em elementos idôneos e devidamente demonstrados nos autos, não servindo para tal fim os registros mencionados. Esse entendimento é pacífico no STJ: "A existência de inquéritos e ações em andamento não pode constituir fundamento para a valoração negativa dos antecedentes, da conduta social ou da personalidade do agente, em respeito ao princípio constitucional da presunção de não culpabilidade." (HC 130.235/RJ, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ de 29/06/2009). 26. Das penas do acusado J. R. J.. Pelo voto médio do Des. Fed. Wilson Zauhy, fixou o total das penas em 29 (vinte e nove) anos, 09 (nove) meses e 03 (três) dias de reclusão pela prática dos delitos de extorsão, apropriação indébita e de quadrilha ou bando, além de 88 (oitenta e oito) dias-multa, em regime fechado para o cumprimento da pena, sendo incabível a substituição. 27. Das penas do acusado C. S. N.. Em relação ao réu C. S. N. a Turma, por maioria, decidiu condenar o réu à pena de 02 (dois) anos, 10 (dez) meses e 15 (quinze) dias de reclusão, além de 228 (duzentos e vinte oito) dias multa, pela prática do delito de apropriação indébita, nos termos do voto do Relator, acompanhado pelo Des. Fed. Hélio Nogueira, e, por unanimidade, condenar C. S. N. à pena de 02 (dois) anos de reclusão, pela prática do delito de quadrilha ou bando, em regime semiaberto para início do cumprimento das penas, sendo incabível a substituição. 28. Mantida a condenação do acusado J. R. J. a reparar os danos causados as suas vítimas, nos mesmos moldes em que foram fixados pelo magistrado a quo, em observância ao artigo 387, IV, do Código de Processo Penal, tendo em vista que o bem jurídico foi violado em larga extensão. Frise-se que os fatos delitivos ocorreram em meados de 2010/2011, portanto, posteriormente ao advento da Lei n° 11.719/2008, que alterou o artigo 387, IV, do Código de Processo Penal, não havendo óbice em se condenar o acusado J. R. J. ao pagamento dos referidos valores indenizatórios. 29. Rejeitadas as matérias preliminares e, no mérito, parcial provimento à apelação defensiva. Apelação ministerial parcialmente provida.
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