Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS -
APELAÇÃO CRIMINAL. IMPUTAÇÃO DOS CRIMES DE REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO E DE ALICIAMENTO DE TRABALHADORES (ARTS. 149 E 207, AMBOS DO CP).01. Trata-se de Apelação Criminal interposta pelo Ministério Público Federal, originada de ação penal movida pela suposta prática dos crimes de redução à condição análoga à de escravo (art. 149 do CP) e aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional (art. 207 do CP), insistindo, o Parquet federal, na responsabilização penal dos acusados.02. No tocante ao crime do art. 149 do Código Penal, compreende-se que a escravidão contemporânea é mais sutil, porém com consequências nefastas, cabendo registrar que as condutas estampadas no tipo penal não exigem o modelo escravagista concebido outrora para sua caracterização, não sendo imprescindível a restrição à liberdade de locomoção do trabalhador e tampouco há a necessidade da ocorrência de violência física para a caracterização do delito, consistindo o crime em reduzir alguém à condição similar à de escravo.03. Reduzir aqui significa subjugar, compelir, impor alguém a determinadas circunstâncias análogas à de um escravo. É delito de forma vinculada, cuja caracterização dependerá da demonstração de uma das condutas taxativamente estatuídas no tipo penal, as quais consistem em (a) submeter o ofendido a trabalhos forçados ou a jornadas excessiva; (b) sujeitá-lo a condições degradantes de trabalho; ou (c) restringir a liberdade de locomoção da vítima, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. São situações alternativas e não cumulativas.04. No caso dos autos, a imputação delitiva repousa sobre as condições laborais de cinco trabalhadores da construção civil arregimentados para trabalho nos canteiros das obras de residenciais em Bauru/SP a cargo dos ora acusados, que teriam sujeitado as vítimas a condições degradantes e restringido a sua locomoção pelo não pagamento de remuneração, duas condutas nucleares, portanto, que alternativamente em tese consubstanciariam a prática delitiva de reduzir alguém à condição análoga à de escravo.05. No entanto, a situação laboral narrada pelo órgão ministerial, na parte em que concernente ao cerceamento de liberdade por inadimplemento contratual, não se afigura sequer penalmente relevante, e, quanto ao quadro de condições degradantes de trabalho, o conjunto probatório mostra-se insuficiente, não permitindo amoldar o caso à hipótese de escravidão.06. Em relação à atipicidade do inadimplemento contratual, a enumeração taxativa das condutas que perfazem o crime em destaque impede que a hipótese legal de servidão por dívida englobe situação diversa da conduta específica de obrigar o trabalhador a fornecer mão-de-obra para custear despesas ou dívidas por ele contraídas em face do empregador, sendo Considerado, inclusive, o caráter fragmentário do Direito Penal, deve-se rechaçar a proposta de alargar a incidência repressiva tendente a abarcar contendas meramente patrimoniais, que se resolvem eficazmente no campo do Direito do Trabalho, tal como se verificou no caso em tela mediante a celebração de acordo perante o Ministério do Trabalho e Emprego, não se equiparando à situação protegida pela norma penal.07. No que tange à caracterização do que seriam condições degradantes de trabalho, não basta para considerar delituoso o empregador, atribuir-lhe a pecha de um comportamento severo, mesquinho ou insensível. É preciso demonstrar a imposição de aflição intolerável à dignidade da pessoa humana, assim entendida a conflagração aviltante do núcleo essencial dos direitos fundamentais dos trabalhadores, os quais admitem temperamentos conforme o contexto histórico, geográfico, econômico, social e ambiental no qual se insere a prestação de trabalho a ser analisada. O Supremo Tribunal Federal empresta auxílio, nesse sentido, ao consignar o elevado grau ínsito ao tipo de violação que ora se pretende balizar: (...) Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno (Inq. 3412/AL, Rel. Ministro Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão: Ministra Rosa Weber, Tribunal Pleno, DJ 12.11.2012).08. Apesar de o Auto de Infração lavrado pelo Ministério do Trabalho certificar que a habitação das supostas vítimas não possuía armário individual nem roupa de cama adequada, ou mesmo que a conservação precária do imóvel, entendida pela acusação como haver sujeira (não escalonada em um grau objetivo), vitrais quebrados, colchões no chão e chuveiro sem bocal de ducha, embora constituam fatores que denotem uma moradia desagradável, inadequada ou afastada do ideal, não representam por si só um acolhimento desumano. Os fiscais do trabalho, certamente proficientes em diagnosticar as mais variadas espécies de alojamento, não relataram ao juízo situação degradante quanto ao imóvel em si. Tampouco os depoimentos das vítimas inclinam-se a tal consideração, afetando-se mais à questão patrimonial, que foi o motivo ensejador da insatisfação contra o empregador.09. Reforça-se, assim, a insuficiência do simples oferecimento de condições pobres em conforto aos trabalhadores para que se perfaça o tipo incriminador sob exame, exigindo-se um ambiente irrefutavelmente nefasto, proeminente no que tange à desumanidade do tratamento dispensado pelo tomador do trabalho.10. Não se desincumbiu o órgão acusatório, nesse sentido, do ônus probatório consistente em demonstrar concretamente a desconsideração das necessidades básicas humanitárias que deveriam ser oferecidas aos trabalhadores, que não se confunde com a deficiência ou baixa qualidade destas, de sorte que o conjunto probatório mostra-se, de fato, insuficiente para sustentar a condenação pretendida pelo Parquet federal, devendo ser mantida a absolvição por ausência de provas de que os réus teriam praticado o delito do art. 149 do Código Penal.11. Relativamente ao crime do art. 207 do Código Penal, a conduta incriminada pelo caput consiste no simples aliciamento, assim entendida a ação de atrair, seduzir, instigar, recrutar pessoas para desempenharem trabalho em local afastado de onde se encontram radicados, coibindo-se ainda, no respectivo parágrafo primeiro, dessa vez empregando o verbo recrutar, a conduta de quem alicia trabalhadores mediante fraude ou cobrança de determinada quantia, além da atuação de quem não assegura o retorno do trabalhador à sua origem. Nessa modalidade de aliciamento, embora o legislador acrescente qualificativos à ação típica prevista no caput, lhe comina pena idêntica, igualando a reprovabilidade do aliciamento (caput) ao recrutamento mediante fraude (§ 1º).12. A espécie delitiva caracterizada no caput do art. 207 do Código Penal, encartada como modalidade de crime contra a organização do trabalho, tutela o interesse estatal de evitar o êxodo de trabalhadores dentro do território nacional. Já na figura do parágrafo primeiro do art. 207 do Estatuto Penal Repressivo, a objetividade jurídica recai sob a proteção de trabalhadores em situação de vulnerabilidade que poderiam ser enganosamente reduzidos à condição análoga à de escravo.13. Os preceitos penais comentados constituem, portanto, vértices de proteção nitidamente distintos, que acabam por revelar a atipicidade de certo tipo de comportamento que não resvale nem no desequilíbrio da força de trabalho local nem interfira na formação da vontade livre, esclarecida e ponderada do trabalhador que resolve assentir com o trabalho afastado do local de sua naturalidade.14. A ordem constitucional vigente, sede própria das discussões acerca do aliciamento de trabalhadores, enuncia como fundamento do Estado de Direito os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, inc. IV, da CF), contrastando-o, de algum modo, com os objetivos de garantia do desenvolvimento nacional e de redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, incs. II e III, da CF). Além disso, ao preceituar os princípios que regem a ordem econômica, a Constituição Federal assevera que a finalidade desta é assegurar existência digna a todos com base na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa (art. 170, caput, da CF), sendo a intervenção estatal na economia delimitada essencialmente pelo art. 174 da Constituição Federal que restringe a atuação normativa e reguladora do Estado como meramente indicativa para o setor privado.15. A equação da política trabalhista basilar do Estado brasileiro não abre mão, portanto, do direito subjetivo fundamental de migrar para obter sustento digno mediante trabalho lícito e tampouco da livre atuação privada quanto ao oferecimento de postos de trabalho afastados da localidade em que radicados os trabalhadores, restando vedado o dirigismo estatal controlador das forças econômicas da sociedade sob o pretexto de comandar o desenvolvimento da nação.16. Com base em tais argumentos, entende-se que a subsistência da incriminação do aliciamento de trabalhadores descrita no caput do art. 207 do Código Penal, abstraindo-se da força abrrogativa do art. 174 da Carta Magna, teria lugar meramente diante de uma conduta tendente a colapsar a força de trabalho de determinada localidade.17. Diante das considerações ora efetuadas, não se considera como materialmente típica, antes guarda pertinência à moderna organização do trabalho como meio de garantir a existência digna, a conduta de aliciamento de trabalhadores consistente em oferecer emprego a pessoas sem oportunidades profissionais para laborarem em localidade distinta onde existem vagas disponíveis. Desde que não exista fraude ou coação, o recrutamento de trabalhadores é comportamento socialmente aceito no mundo globalizado, conforme as mais variadas demandas econômicas, científicas, tecnológicas ou sociais, não se viabilizando a repressão penal ventilada pelo art. 207, caput, do Código Penal, sob o enfoque da mera oferta de posto de trabalho.18. No caso dos autos, além de não refletir risco penalmente relevante o deslocamento de poucos trabalhadores de São Luís/MA, não restou demonstrado o propósito astucioso ou ganancioso de atrair os trabalhadores com condições falsas, não se sustentando tal hipótese sequer pelo relato das supostas vítimas e menos ainda diante do acordo trabalhista que foi honrado pela empresa dos acusados, posteriormente às desavenças no tocante ao inadimplemento contratual dos empreendedores.19. Destarte, resta afastada a possibilidade de responsabilização penal dos acusados a título de aliciamento de trabalhadores, nos moldes estabelecidos pela sentença.20. Absolvição mantida. Apelo ministerial desprovido.
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