Apelação Criminal Nº 0007265-76.2004.4.03.6181/sp

Penal - falsificação de certidão de nascimento - registro de filho de outrem como próprio - uso de documento falso em processo de visto de permanência definitiva no país - autoria e materialidade delitivas comprovadas - demonstrado o dolo na prática delitiva - comprovada a utilização de documentos falsos pelos agentes - erro de proibição - alegação de desconhecimento da lei - inescusável - pedido de extinção da punibilidade pela concessão de perdão judicial por motivo de reconhecida nobreza - não reconhecida a motivação nobre das condutas delituosas perpetradas pelos apelantes - condenação mantida - recurso improvido. 1.Autoria e materialidade delitivas comprovadas pelos elementos do inquérito policial e da instrução processual criminal, em especial pela prova testemunhal e pela própria versão dos apelantes, que admitiram não serem os verdadeiros genitores da menor Talita e que utilizaram a certidão de nascimento falsa para instruir processo de visto de permanência definitiva no Brasil, perante a autoridade concedente - Polícia Marítima, Aeroportuária e de Fronteiras da Polícia Federal -, sob o fundamento de possuírem filha brasileira. 2.[Tab]Ao contrário do que sustenta a defesa, o édito condenatório não se deu, com fundamento preponderantemente em provas obtidas no inquérito policial. Na verdade, as provas coligidas na fase inquisitorial foram corroboradas pelas provas acusatórias coligidas na fase judicial, tendo havido, inclusive, a confissão dos réus em juízo [fls. 223/224 e 225/226]. 3.De fato, restou demonstrado que os apelantes não são os pais biológicos da menor Talita e utilizaram os documentos falsos [declaração do nosocômio onde se deu o nascimento da criança, certidão de nascimento e cártula de identidade] para requererem perante a Polícia Marítima, Aeroportuária e de Fronteiras a permanência definitiva em nosso país, sob o fundamento de possuírem uma filha brasileira. 4.A certidão de nascimento [fl.39] e a cédula de identidade [fl.77] apreendidas, de TALITA XIN HUANG, criança nascida no Brasil, são ideologicamente falsas. Os apelantes LIU XIONGZHEN e YE GENCHANG, naturais da República Popular da China, fizeram se passar por genitores de Talita, fazendo com que a mãe biológica apresentasse ao hospital, que procedeu ao parto, documento de identificação [passaporte] de outra mulher, qual seja, LIU [falsa mãe], que na posse da declaração do hospital, conjuntamente com seu esposo YE, ambos registraram a criança como se fosse filha natural do casal [certidão de nascimento de fl. 39], com o escopo de requererem o visto de permanência definitiva no Brasil [fls.37/38], tendo LIU e YE plena ciência da falsidade da documentação apresentada [fls.39, 40, 75 e verso, 77 e 78] junto ao Departamento da Polícia Federal, como se observa dos seus interrogatórios, oferecidos em juízo [fls.223/224 e 225/226]. 5.Viu-se que os réus procuraram se exculpar, dizendo que não sabiam que constitui crime registrar filho de outrem como próprio e só o fizeram porque a mãe biológica não pretendia criar a própria filha e, portanto, a intenção do casal era de adotar a criança. 6.Todavia, essa versão exculpante não é verossímil, já que a criança não foi encontrada, quando da diligência policial, sob a guarda e proteção dos apelantes, e nem sequer residia com os mesmos, continuando a residir com a mãe biológica, embora registrada como filha dos apelantes. Em nenhum momento, quando ouvida, tanto em sede de inquérito policial quanto em juízo, a mãe biológica e corré YE AIWEI, afirmou que não pretendia criar a sua filha, entregando-a em adoção para os apelantes. Ao contrário, declarou perante a autoridade policial [fls.22/23] que, estando grávida, ajudaria o casal a obter visto de permanência no país, permitindo que o casal registrasse sua filha nascida no Brasil como se deles fosse, mediante paga, bem como, em juízo [fls.193/194], confirmou a versão de que aceitou que sua filha Talita, nascida em solo brasileiro, fosse registrada em nome dos apelantes, para que eles pudessem obter o visto de permanência no Brasil, apenas alterando a versão, para dizer que consentiu na fraude para fazer um favor ao casal, e não visando paga. E, mais, afirmou que a criança foi registrada como filha dos apelantes, mas sempre permaneceu consigo, nunca tendo os apelantes levado a criança para residir na casa do casal [interrogatórios em IP às fls. 22/23 e em juízo às fls.192/194]. 7.[Tab]A declaração do hospital, a certidão de nascimento e a carteira de identidade da criança Talita tinham dados que não correspondiam a realidade. É evidente, portanto, que os réus tinham plena ciência de que faziam uso de documentação falsa para obterem visto de permanência definitiva no Brasil. O dolo evidencia-se, principalmente, pelo fato de LIU ter repassado seu passaporte à mãe biológica, para que ela se identificasse como LIU perante o hospital, com o escopo de constar na declaração fornecida pelo hospital onde se deu o nascimento, o nome de LIU como mãe biológica e com a apresentação de referida declaração pudesse obter certidão de nascimento falsa, que, de fato, foi obtida, constando falsamente como pais da criança Talita os apelantes, certidão de nascimento esta que ainda lhes serviu para expedição de cédula de identidade da criança. Todos estes documentos foram apreendidos pela Polícia Federal [fls.39,75 e 77]. 8.Como se isso não bastasse, ainda fizeram constar no pedido de permanência definitiva no Brasil junto ao Departamento da Polícia Marítima, Aeroportuária e de Fronteiras [fls.36/77] declarações falsas [fls. 40 e78] no sentido de que a criança Talita era filha dos apelantes e que vivia sob a guarda e dependência econômica do casal, coabitando com os mesmos, numa clara “armação“ engendrada por LIU [falsa mãe] em conluio com YE AIWEI [mãe biológica], que manipularam terceiros para assinar documento em que declaravam expressamente fatos que, na realidade, desconheciam, a evidenciar, uma vez mais, o dolo na conduta dos réus. 9. Assim, todos os depoimentos prestados perante a autoridade policial [fls.08/09, 15/16, 22/23, 114/115, 124 e 126/127] foram reiterados, de forma harmônica, em juízo [fls.192/194, 223/224, 225/226, 246/248], estando em sintonia com os demais elementos de prova presentes nos autos, não merecendo guarida a alegação de que a juíza valorou, ao sentenciar, preponderantemente as provas obtidas em sede de inquérito policial, em detrimento das colhidas durante a instrução criminal. 10.A autoria dos crimes e o dolo por parte dos réus, ora apelantes, na perpetração dos delitos, restaram provados, a final, não podendo ser aceita a versão da defesa de que as provas colhidas no inquérito policial não foram confirmadas no decorrer da instrução criminal. 11.Não pode prosperar a alegação da defesa de que ocorreu, na espécie, erro de proibição. Não cabe o argumento de que os apelantes desconheciam a ilicitude de suas condutas, tendo em vista que o artigo 21 do Código Penal é imperativo no sentido de que o desconhecimento da lei é inescusável. 12.Nem se diga, também, que não era possível o conhecimento da ilicitude do fato por parte dos apelantes, o que excluiria a culpabilidade, porque, quando da diligência policial, os agentes verificaram, à época do requerimento de permanência no Brasil, que a menor Talita não residia com eles e sim com a mãe verdadeira, YE AIWEI, o que deixa claro que eles não pretendiam “adotar“ e criar a criança que fraudulentamente registraram como filha, tendo registrado filha de outrem como própria com o único intuito de obter visto de permanência definitiva no Brasil, ficando demonstrado, nos autos, que os apelantes agiram com dolo na conduta que empreenderam, pois tinham pleno conhecimento do ilícito que praticavam, até porque, se não soubessem da ilicitude de seu ato, não tentariam manipular e dissimular a real situação da criança com a ajuda providencial da mãe verdadeira, tendo a apelante LIU dado o seu passaporte para a mãe biológica se passar por ela, para induzir em erro a administração hospitalar, tendo constado no documento emitido pelo hospital que quem deu à luz a criança Talita foi LIU, mediante o uso de passaporte desta pela mãe biológica, o que deu origem aos demais documentos falsos da criança [certidão de nascimento e cédula de identidade]. 13.Se fosse possível ao agente eximir-se da responsabilidade penal, alegando ignorância da lei, haveria insegurança jurídica, debilitando o caráter intimidador do Direito Penal. 14.Nem se diga que não era possível o conhecimento da ilicitude do fato por parte dos apelantes, o que excluiria a culpabilidade, porque é de conhecimento público e notório que registrar filho de outrem como próprio constitui crime, bem como que não se adota uma criança simplesmente registrando-a como se sua fosse - a chamada “adoção à brasileira“, sendo cediço que há todo um procedimento legal e burocrático a ser seguido, além de uma fila de espera para a prática da adoção. 15.Os apelantes, estando na posse do documento ideologicamente falso fornecido pelo hospital, fazendo crer da apelante LIU parto de outra pessoa, poderiam obter, como de fato obtiveram, certidão de nascimento e cédula de identidade falsas de Talita, suposta filha brasileira dela com o esposo, para poderem permanecer no Brasil, regularizando a situação de estrangeiros no país. Assim sendo, afastados os argumentos deduzidos pela defesa, conclui-se que a confirmação da condenação se impõe. 16. defesa requer, alternativamente, em caso de confirmação da condenação, a aplicação do perdão judicial pelo fato do crime ter sido praticado por motivo de reconhecida nobreza. Invoca a defesa para tanto o artigo 107, inciso IX combinado com o § único do artigo 242, ambos do Código Penal repressivo. 17.Não colhe tal tese, pois restou evidente que os réus não tinham a intenção de guarda, sustento e educação da criança, não tendo exercido nenhum dos deveres inerentes ao poder familiar, sendo falsa a declaração firmada por eles e juntada aos autos a fl. 40, pois a criança sequer chegou a residir com os réus, tendo eles a clara intenção, pessoal e egoísta, de, em conluio com a mãe biológica, utilizar a criança, nascida em solo brasileiro, para regularizar a situação e permanência no país, ludibriando a autoridade que concede o visto de permanência, sem nenhuma motivação nobre ou altruística, como quer fazer crer a defesa. 18.Não tendo a defesa produzido qualquer prova de que a mãe biológica passava por sérias dificuldades financeiras e de que tinham os apelantes a intenção de querer salvar da miséria uma recém-nascida [Talita], cuja mãe reconhecidamente não a queria, o que aliás, não foi por esta confirmado nas duas oportunidades em que foi ouvida nos autos [interrogatório policial de fls. 22/23 e interrogatório judicial de fls. 192/194], tendo afirmado perante a autoridade policial que sua ajuda aos apelantes se deu por interesse financeiro - ajuda mediante paga - e, já em juízo, alterou sua versão dizendo que simplesmente concordou em deixar registrarem sua filha para ajudá-los a regularizar a situação ilegal em que se encontravam no país, pelo simples fato de serem patrícios [chineses] e amiga do casal, sendo que, na realidade, pouco importa sua motivação, que, da mesma forma como ocorreu com os apelantes, nem de longe por ser considerada nobre. 19.[Tab]Os réus encontravam-se em situação irregular no país e preferiram socorrer-se de meios escusos e ilícitos ao invés de tentar utilizar meios legais e competentes para que pudessem permanecer em nosso território, agravado pelo fato de usarem uma criança recém-nascida, com a anuência e ajuda da mãe biológica, para obterem certidão de nascimento falsa e, posteriormente, outros documentos públicos nacionais da criança brasileira, em seus nomes, objetivando assumir falsamente filiação de criança nascida em solo brasileiro e continuarem despreocupados no país, pouco importando as funestas violações à fé pública que teriam de empreender, apresentando-os à autoridade concedente do visto de permanência definitiva no país, não havendo como se falar que o motivo para a realização da conduta delituosa se deu por motivo de reconhecida nobreza. 20.A decisão de condenação era medida que se impunha, já que provadas a materialidade e a autoria delitivas, e o dolo dos réus na prática das condutas delituosas, infrutíferos os esforços da defesa em provar o contrário. Do mesmo modo, não merece reparos a fixação da pena levada a efeito pela Magistrada “a qua“. 21.Por fim, requer a defesa que seja afastada a expulsão dos apelantes do nosso país, por serem suficientes as penas corporais já aplicadas, que foram devidamente substituídas por restritivas de direito, adequadas para a prevenção e reprovação dos delitos pelos quais foram condenados. A expulsão não foi determinada pela magistrada “a qua“, que, acertadamente, determinou a expedição de ofício ao Ministério da Justiça, que é a autoridade competente para decidir sobre a questão. Note-se que os apelantes são estrangeiros, com permanência irregular no Brasil, e praticaram crimes em nosso país. Após o cumprimento das penas alternativas impostas, tudo indica que deverão deixar o país, até porque, embora possuam residência fixa no Brasil, não possuem vínculo familiar e laboral [trabalham na informalidade, na Rua 25 de Março], estando sujeitos à expulsão. Se tais circunstâncias se mantiverem, não se vê como possam permanecer em território nacional. Para tanto é que foi determinada a expedição de ofício ao Ministério da Justiça, autoridade competente para a decisão final sobre a questão. 22.Recurso da defesa dos apelantes improvido. Condenação de primeiro grau mantida.

Rel. Des. Ramza Tartuce

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