Processual penal. Apelação criminal. Delação premiada. Auto de prisão em flagrante e denúncia que omitem circunstâncias do fato criminoso. “autorização“ dada pelo juízo para que as testemunhas omitam dos depoimentos referências ao réu colaborador. Nulidade absoluta. Necessidade de proteção ao réu delator que deve ser feita na forma legal. 1. Apelação Criminal interposta por Rogerio Maia contra a sentença que o condenou a 7 (sete) anos de reclusão, como incurso no artigo 33, caput, c.c. artigo 40, inciso I, da Lei nº 11.343/2006. 2. A problemática do caráter sigiloso do acordo de réu colaborador, ou acordo de delação premiada, deve ser analisada sob duplo aspecto: por primeiro, o sigilo da própria existência do acordo e de seus termos; e em segundo lugar, o sigilo do conteúdo das declarações prestadas. 3. O caráter sigiloso das medidas de proteção à testemunhas, vítimas e réus colaboradores é estabelecida no §5º do artigo 2º da Lei nº 9.807/1999. Dessa forma, tanto a própria existência do acordo de delação premiada quanto os termos e condições em que foi celebrado interessam somente ao réu colaborador, ao órgão da Acusação e ao Juízo. 4. Quanto ao segundo aspecto, qual seja, o acesso dos réus delatados às declarações incriminadoras feitas com relação à sua pessoa, não há como sustentar a possibilidade de sigilo. Se as declarações do réu delator servirão como prova, e terão influência no convencimento do Julgador, não há como negar o direito de acesso dos acusados, sob pena de frontal violação ao direito ao contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, assegurado pelo artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal. 5. Entendimento contrário, ou seja, admitir-se a legalidade de sigilo dos depoimentos incriminadores dos delatores corresponderia a dar foros de validade e possibilitar a condenação de alguém com base em “prova secreta“. 6. É certo que, admitida a necessidade de acesso dos réus delatados às declarações incriminadoras feitas pelo réu delator, a questão quanto ao sigilo da existência do acordo de delação premiada perde um pouco de sua substância. Por óbvio, se não se pode negar o acesso do réu deletado às declarações incriminadoras feitas pelo réu delator, é certo que a existência da própria delação não pode ser ocultada. Assim, restará, no caso de necessidade de preservação da integridade do delator, diante de coações ou ameaças, a adoção das medidas de proteção previstas na Lei nº 9.807/1999, da mesma forma adotada com relação às testemunhas ou vítimas. 7. Ao assegurar o direito de acesso da Defesa aos depoimentos do delator, não se está inviabilizando o instituto da delação premiada, mas apenas e tão somente assegurando o exercício do direito à ampla defesa dos demais corréus. Ainda que assim não se entenda, no conflito entre o direito à ampla defesa, que implica em direito de acesso a todas as provas produzidas, e eventuais dificuldades práticas com relação à operacionalização da delação premiada, não tenho dúvidas em dar prevalência ao direito de ampla defesa. 8. O processo penal, do ponto de vista histórico, surge como uma limitação ao exercício do poder do Estado, e as limitações ao poder de punir são obviamente instituídas em favor do réu. Do lado oposto, o réu colaborador é colaborador do Estado, no exercício do poder de punir. Não se olvida a necessidade de dar efetividade à repressão criminal e garantir a segurança dos cidadãos e da sociedade, mas essa efetividade não se pode dar às custas do direito à ampla defesa. 9. O auto de prisão em flagrante e a denúncia narram fatos divorciados da realidade, pois deliberadamente omitem que a prisão de Rogério Maia somente fora possível de realizar-se, bem assim a apreensão de droga em seu poder, em virtude da delação do corréu Eduardo. 10. É certo que as nulidades do inquérito não contaminam a ação penal, conforme consagrado entendimento jurisprudencial. Mas, no caso dos autos, não se trata de nulidade apenas do auto de prisão em flagrante, mas também da denúncia, que deliberadamente omite que a localização de Rogério somente foi possível em razão das declarações de Eduardo. 11. A nulidade também alcança a ação penal, em razão da “autorização“ dada pelo Juízo às testemunhas, para que omitissem em seus depoimentos a existência das informações do delator. 12. É inconcebível que o Juiz combine antecipadamente com as testemunhas o teor do depoimento destas, ainda que com vistas a salvaguardar a segurança do réu delator. O depoimento da testemunha deve ser ouvido pelo Juízo com vistas à busca da verdade; a credibilidade dos depoimentos e sua força de convencimento devem ser resultado do exame cuidadoso, pelo Julgador, de sua coerência com todo o conjunto probatório e de sua conformidade com as regras da experiência. 13. Se o Juiz acerta com a testemunha, antecipadamente, os termos de seu depoimento, “autorizando-a“ a omitir determinados fatos, é porque já deu tal depoimento como fiel à realidade dos fatos; e assim, está irremediavelmente comprometido em sua parcialidade, diante da Defesa do réu que a nada teve acesso. 14. É inconcebível, consoante o ordenamento jurídico pátrio vigente, que o juízo autorize qualquer testemunha a omitir fato ocorrido, porquanto a situação equivale a verdadeira manipulação da prova, expressamente vedada; e mais, equivale a uma autorização do juízo para que alguém pratique crime expressamente tipificado no artigo 342 do Código Penal. 15. Se a intenção da medida de sigilo da existência de delação era a proteção do delator, a lei de proteção à testemunhas fornece diretrizes para tanto, conforme artigos 15 e 8º da Lei 9.807/1999. 16. Preliminar acolhida. Processo anulado.
Rel. Des. Marcio Mesquita
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