RELATOR: DESEMBARGADOR FAUSTO DE SANCTIS -
APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO TRANSNACIONAL DE DROGAS. RECEPTAÇÃO CULPOSA. INSTALAÇÃO OU UTILIZAÇÃO DE TELECOMUNICAÇÕES, SEM OBSERVÂNCIA DA LEI OU REGULAMENTOS. AFASTADA A PRELIMINAR DE NULIDADE PARCIAL DA R. SENTENÇA. PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA PRESERVADOS. DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO PREVISTO NO ART. 183 DA LEI Nº 9.427/1997 PARA O ARTIGO 70 DA LEI Nº 4.117/1962 MANTIDA. USO NÃO REITERADO DO RÁDIO TRANSMISSOR. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA BEM AFASTADO. CONDUTA QUE AFETA GRAVEMENTE O BEM JURÍDICO TUTELADO. DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA DO ART. 180, CAPUT, DO CP, PARA O CRIME DE RECEPTAÇÃO CULPOSA (ART. 180, § 3º, CP). DOSIMETRIA DA PENA. CRIME DO ART. 70 DA LEI Nº 4.117/1962. PRIMEIRA FASE. NEGATIVAÇÃO DA PERSONALIDADE AFASTADA. PRECEDENTES DO STJ. MANTIDA A PENA-BASE FIXADA PELO JUÍZO A QUO. AUSÊNCIA DE REFORMATIO IN PEJUS. SEGUNDA FASE. REINCIDÊNCIA. CONFISSÃO. COMPENSAÇÃO. TERCEIRA FASE. AUSÊNCIA DE CAUSAS DE AUMENTO OU DIMINUIÇÃO. CRIME DE RECEPTAÇÃO CULPOSA. PRIMEIRA FASE. DUAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS. SEGUNDA FASE. REINCIDÊNCIA. CONFISSÃO. COMPENSAÇÃO. TERCEIRA FASE. AUSÊNCIA DE CAUSAS DE AUMENTO OU DIMINUIÇÃO. TRÁFICO TRANSNACIONAL DE DROGAS. PRIMEIRA FASE. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS NEGATIVAS. NATUREZA E GRANDE QUANTIDADE DE DROGA APREENDIDA (MAIS DE 600 KG DE MACONHA). AUMENTO DA PENA-BASE. NEGATIVAÇÃO DA PERSONALIDADE AFASTADA. PRECEDENTES DO STJ. SEGUNDA FASE. REINCIDÊNCIA. CONFISSÃO. COMPENSAÇÃO. TERCEIRA FASE. TRANSNACIONALIDADE BEM RECONHECIDA. CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 33, § 4º, DA LEI DE DROGAS BEM AFASTADA. RÉU REINCIDENTE ESPECÍFICO. CONCURSO MATERIAL. REGIME INICIAL FECHADO.- Afastada a preliminar arguida pela douta Procuradoria Regional da República, que pleiteou a nulidade parcial da r. sentença penal condenatória, sob o argumento de prejuízo à ampla defesa do Recorrente, por entender que a decisão judicial que recebeu a r. Denúncia limitou-se ao delito de tráfico transnacional de drogas, de modo que a defesa do réu foi construída somente em relação a este crime.- Em primeiro lugar, verifica-se que o mandado de citação direcionado ao réu foi acompanhado de cópia da r. Denúncia, permitindo-se ciência de todas as imputações contra si formuladas e, consequentemente, preservando-se o contraditório e o exercício da ampla defesa quando da apresentação de defesa preliminar. Em seu interrogatório, o próprio réu afirma que leu a cópia da r. denúncia (aproximadamente 24 minutos da mídia digital à fl. 228). Outrossim, antes do oferecimento da defesa preliminar, a advogada constituída pelo réu fez carga do processo, oportunidade em que teve acesso a todo o seu conteúdo, o que também preservou o direito ao contraditório e à ampla defesa constitucionalmente assegurado. Além disso, da Audiência de Instrução, Debates e Julgamento, participou o advogado do réu, que teve amplo acesso aos autos e oportunidade de entrevistar-se com seu cliente, orientando-o de todo o processado. Consta ainda da mídia digital, mais precisamente aos 08 minutos, que o magistrado leu para o réu todas as imputações formuladas na denúncia, permitindo-se, mais uma vez, o exercício do contraditório e da ampla defesa. Por fim, extrai-se do interrogatório que o réu leu o processo, pois disse ao magistrado que viu nos autos o documento de devolução do carro receptado.- Em sentença, quanto à imputação da prática do delito previsto no artigo 183 da Lei nº 9.472/1997, o magistrado desclassificou a conduta para o artigo 70 da Lei nº 4.117/1962, fundamentando, em síntese, que o réu utilizou pontualmente o aparelho de comunicação, apenas para proveito próprio, e não da maneira reiterada exigida pelo artigo 183 da Lei nº 9.472/1997.- As Cortes Superiores consolidaram entendimento no sentido de que o artigo 183 da Lei nº 9.742/1997 não revogou o artigo 70 da Lei nº 4.117/1962 quanto à radiodifusão, contudo a tipificação penal dependerá da habitualidade da atividade de radiodifusão: 1) uma vez reconhecida a atividade clandestina de telecomunicações habitual, o réu deve ser condenado como incurso no art. 183 da Lei nº 9.742/1997, ou seja, caso haja comportamento reiterado do agente; e 2) caso seja constatada apenas a conduta de instalação e utilização de rádio clandestina eventual ou funcionamento de rádio devidamente autorizada, mas em desacordo com os regulamentos, restará tipificada a conduta insculpida no artigo 70 da Lei nº 4.117 /1962.- No caso dos autos, não há comprovação de utilização do equipamento de forma habitual ou costumeira pelo réu. De seu interrogatório judicial extrai-se que foi a primeira vez que teve contato com o veículo e com o rádio comunicador. Com efeito, ele afirmou que foi contratado para realizar o transporte das drogas por uma pessoa cuja qualificação completa ignora, mas que conheceu quando do cumprimento de pena corporal por outra condenação. Receberia a importância financeira da ordem de quinze mil reais. Assumiu a direção do carro apenas em Ponta Porã/MS, já abastecido com a Maconha, e tinha que entregá-lo em São Paulo/SP. Não viu quem lhe entregou o carro no Mato Grosso do Sul, tampouco conhecia os responsáveis por realizar a escolta na estrada (batedores).- Afastado pedido de aplicação do princípio da insignificância formulado pela Defesa. Mostra-se impertinente o pleito de incidência do postulado da bagatela, tendo em vista que o delito mencionado visa tutelar a segurança e a higidez do sistema de telecomunicação presente no país, a permitir, inclusive, o controle e a fiscalização estatal sobre tal atividade econômica, caracterizando-se por ser infração penal formal e de perigo abstrato, ou seja, consumando-se independentemente da ocorrência de dano - desta feita, diante de mácula a bem jurídico de suma importância, impossível cogitar-se de mínima periculosidade social da ação e de reduzido grau de reprovabilidade do comportamento.- Consigne-se, ademais, que a mera instalação ou a mera utilização de aparelhagem em desacordo com as exigências legais, bem como a existência de atividade clandestina de telecomunicações, já tem o condão de causar sérias interferências prejudiciais em serviços de telecomunicações regularmente instalados (como, por exemplo, polícia, ambulância, bombeiro, navegação aérea, embarcação, bem como receptores domésticos adjacentes à emissora) em razão do aparecimento de frequências espúrias, razão pela qual, além de presumida a ofensividade da conduta pela edição da lei, inquestionável a alta periculosidade social da ação, também sob tal viés, daquele que age ao arrepio das normas de regência.- O réu foi condenado pela prática do delito previsto no artigo 180, em sua forma fundamental, do Código Penal (receptação dolosa). A defesa recorre pleiteando a edição de um decreto de natureza absolutória, por entender que o réu não tinha ciência acerca da procedência espúria do bem (dolo direto). De maneira subsidiária, pede a desclassificação ao delito de receptação culposa (artigo 180, § 3º, do Código Penal).- É o caso de reformar-se a sentença para desclassificar a conduta inicialmente capitulada (art. 180, caput, do CP) para o crime de receptação culposa (artigo 180, § 3º, do CP).- Não está comprovado que o réu agiu imbuído do dolo direto, exigido para a consumação do crime. De seu interrogatório judicial extrai-se que ele recebeu o automóvel em Ponta Porã/MS, fronteira com o Paraguai, de um indivíduo cuja identidade não quis revelar, mas que lhe forneceu a documentação de porte obrigatório correspondente (CRLV). Acreditou que o carro era regular, porquanto o documento era aparentemente autêntico e, inclusive, continha as mesmas placas identificatórias daquelas ostentadas pelo veículo. Em outras palavras, o réu não tinha a certeza (exigida pelo tipo penal) de que o carro era furtado. A propósito, a cópia reprográfica do referido CRLV está anexada à fl. 11 e, embora não haja perícia técnica, trata-se aparentemente de documento em suporte materialmente autêntico, o que dificulta ainda mais a percepção de que o veículo era produto de crime. Outrossim, os policiais federais que atenderam a ocorrência, testemunha supranominadas, em momento algum afirmaram que o réu admitiu ter ciência acerca da origem espúria do automóvel, o que reforça a tese de que ele não agiu com o necessário dolo direto.- Pela natureza da coisa (veículo utilizado para o transporte de drogas), aliado à condição de quem a ofereceu (notadamente um traficante de drogas aliado a organizações criminosas internacionais), deveria o réu presumir (indicativo de culpa, na modalidade imprudência) que fora obtida por meios criminosos. De acordo com Guilherme de Souza Nucci, presumir é suspeitar, desconfiar, conjecturar ou imaginar, tornando a figura compatível com a falta do dever objetivo de cuidado, caracterizador da imprudência (ob. cit., página 1102).- Dosimetria da pena. Crime previsto no artigo 70 da Lei 4.117/1962. Primeira fase. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que condenações pretéritas não se prestam ao aumento da pena pela negativação da personalidade do agente. Ademais, tratando-se de condenações já utilizadas pelo magistrado para aumentar a pena, em razão dos antecedentes e da reincidência, mostra-se indevida a valoração negativa também da personalidade.- Ainda que afastada a personalidade do agente como circunstância judicial negativa, verifico que o quantum de exasperação da pena (dois meses) está adequado e proporcional, considerando-se a gravidade do caso concreto. Manutenção da pena-base.- Segunda fase. O magistrado sentenciante compensou a agravante genérica da reincidência com a atenuante genérica da confissão espontânea, o que deve ser mantido, nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ 1.341.370/MT).- Do delito de receptação dolosa. Dosimetria da pena. Primeira fase. O réu ostenta antecedentes criminais pela prática do crime de roubo majorado e tráfico de drogas em concurso com o crime de receptação. Desse modo, utiliza-se uma das condenações para elevar a pena-base e a outra na segunda etapa da dosimetria da pena (reincidência). Outrossim, a utilização do veículo para efetuar o transporte de grande quantidade de drogas, assim como o uso de batedores especialmente destacados para avisar a iminente fiscalização rodoviária, revelam meticuloso planejamento da empreitada criminosa e autorizam a exasperação da pena pela reprovação das circunstâncias do delito.- Segunda fase. Na segunda fase da dosimetria da pena, verifica-se a existência da atenuante da confissão espontânea, porquanto o réu admitiu que recebeu o veículo para efetuar o transporte das drogas, sem adotar diligência para verificar a real procedência do bem, conforme anotados nas linhas anteriores. Por outro lado, o réu é reincidente específico, razão pela qual compensa-se a atenuante genérica com a confissão espontânea, nos termos do supracitado Recurso Especial Repetitivo (STJ 1.341.370/MT).- Do crime de tráfico transnacional de drogas. Dosimetria da pena. Primeira fase. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que condenações pretéritas não se prestam ao aumento da pena pela negativação da personalidade do agente. Por outro lado, considerando os patamares usados por esta Turma em casos semelhantes, verifico que assiste razão à acusação ao aduzir que o quantum da exasperação da pena-base foi incompatível com a gravidade do caso que ora se examina. Dessa forma, considerando-se a grande quantidade de drogas (mais de 600 quilos de Maconha) e a presença de outras duas circunstâncias judiciais negativas, entendo como razoável a fixação da pena-base em 13 (treze) anos e 08 (oito) meses e o pagamento de 1.366 (um mil trezentos e sessenta e seis) dias-multa.- Segunda fase. O magistrado sentenciante compensou a agravante genérica da reincidência com a atenuante genérica da confissão espontânea, o que se mantém, nos termos do supracitado precedente do STJ.- Terceira fase. O r. juízo aumentou a pena intermediária em 1/6 (um sexto), em razão da transnacionalidade do delito, com espeque no art. 40, inciso I, da Lei nº 11.343/2006. Deixou-se de reconhecer o benefício previsto no artigo 33, § 4º, da Lei de Drogas. A douta defesa pleiteou a aplicação da causa especial de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas.- A despeito dos argumentos da defesa, o conjunto probatório desvela a transnacionalidade do tráfico. O caráter transnacional do delito não depende, necessariamente, de os próprios autores do tráfico terem transposto fronteiras estatais no curso de sua conduta, mas sim de um vínculo de internacionalidade que a envolva de maneira minimamente próxima. Assim, se o transporte interno de drogas se dá em circunstâncias tais que demonstrem que se trata de um processo uno e iniciado no exterior (ainda que algumas pessoas tenham estritamente importado a droga, com breve armazenamento e subsequente distribuição dos carregamentos rumo a centros de consumo), ou a ele destinado, tem-se delito de caráter transnacional (mesmo que as etapas do processo cumpridas pelos réus se deem exclusivamente em solo pátrio).- Da causa especial de diminuição de pena (artigo 33, § 4º, da Lei de Drogas). Além do réu ser reincidente em delito da mesma natureza (tráfico de drogas), o que, por si só, já afasta a aplicação do benefício telado, denota-se, do contexto fático, indícios de que sua contribuição para a logística de distribuição do narcotráfico internacional não se deu de forma ocasional, mas vinha ocorrendo de maneira contumaz, de modo a evidenciar que ele se dedica a atividades criminosas ou integra organização criminosa.- Note-se, ainda, que o réu transportava quantidade vultosa de drogas (mais de 600 kg de maconha) e também revelou, perante a autoridade judicial, que havia sido contratado para fazer o transporte do entorpecente por R$ 15.000,00 (quinze mil reais), com expressivo investimento financeiro por parte da organização criminosa, o que demonstra que o contratante tinha plena confiança no acusado.- Com efeito, tais circunstâncias, bem como o modus operandi utilizado (utilização de carro roubado, batedores e rádio transmissor) demonstram a sofisticação da empreitada delitiva, além da reiteração da conduta, afastando a aplicação da causa de diminuição prevista no art. 33, §4º, da Lei 11.343/2006, que deve ser aplicada ao traficante incipiente.- Concurso material. Considerando-se que o réu, mediante mais de uma ação ou omissão, praticou três crimes distintos, que protegem bens jurídicos diversos, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que incorreu, ressalvando-se que a pena de reclusão deve será executada antes da de detenção.- Regime inicial. A sentença fixou corretamente o regime inicial FECHADO, tendo em vista que a pena aplicada é superior a 08 (oito) anos de reclusão (art. 33, §2º, "a", do Código Penal) e o réu é reincidente. Improvido o recurso da defesa no que tange à diminuição da reprimenda, o regime deve ser mantido.- Saliente-se que a detração de que trata o artigo 387, §2º, do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei 12.736/2012, não influencia no regime já que, ainda que descontado o período da prisão preventiva entre a data dos fatos (13.11.2016) e a data da sentença (31.05.2017), a pena remanescente continua superando 08 (oito) anos de reclusão.- Apelações da Defesa e da Acusação providas em parte.
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