Penal - processual penal - recurso em sentido estrito contra decisão que não recebeu a denúncia - crime de peculato - lesão aos cofres públicos - tipificação provisória indicada na denúncia - parecer ministerial pela desclassificação do delito tipificado no artigo 312, § 1º do código penal, para o tipo do artigo 171, § 3º, do mesmo diploma legal, com a consequente decretação da extinção da punibilidade pela ocorrência da prescrição - impossibilidade na fase do recebimento da denúncia - julgamento antecipado do mérito da ação penal - não previsão no sistema processual penal - preliminar suscitada em parecer ministerial não acolhida - fundamentação da decisão monocrática: absolvição do primeiro denunciado na qualidade de servidor público do inss na seara administrativa por insuficiência de provas e ausência de provas de que o segundo denunciado, como beneficiário da concessão indevida da aposentadoria, agiu com dolo - impossibilidade - independência das instâncias administrativa e penal - comprovação ou não do dolo somente após o término da instrução processual penal - materialidade delitiva comprovada - indícios de autoria - denúncia recebida - recurso provido - decisão reformada. 1. Antes de adentrar na análise da decisão recorrida, é dever tratar da preliminar suscitada no parecer ministerial, em que opina pela desclassificação da conduta narrada na denúncia tipificada no artigo 312 do CP (peculato), para o delito do artigo 171, § 3º (estelionato previdenciário) do mesmo diploma legal, sendo que tal reconhecimento implicará na declaração da extinção da punibilidade do crime imputado aos recorridos, pois, perfilhando entendimento sufragado pela Excelsa Corte, o estelionato praticado contra a Previdência Social é crime instantâneo de efeitos permanentes e sua consumação ocorre com o recebimento da primeira parcela do benefício indevidamente paga, posição esta que esta Relatora também adota, e, portanto, o crime já estaria prescrito, levando em conta a pena máxima abstrata, pois já houve o transcurso de lapso temporal superior a 12 anos, entre a data do recebimento da primeira parcela do benefício previdenciário indevidamente pago (03/12/98 - fl.07 dos autos de Inquérito Policial - apenso I) até o presente momento. 2. Sem adentrar numa análise mais profunda do tipo penal em questão, entendo que não se deva antecipar um julgamento a respeito do fato descrito na peça acusatória, por se afigurar prematura sua análise neste momento da persecutio criminis, quando nem se deu início à instrução processual criminal. Deve-se permitir aos órgãos encarregados da fase inicial do processo o livre exercício das atribuições constitucionais que lhe são destinadas, sem a imposição de quaisquer embaraços injustificados, sobretudo em relação ao Ministério Público Federal, que, como titular da ação penal pública, no caso em apreço, deve exercer sua opinio delicti após o regular término da fase de instrução judicial. 3. Ademais, somente após o encerramento da instrução processual, após realizada a produção de provas e antes da prolação da sentença, poderá o Juiz conferir nova definição jurídica ao fato delituoso e verificar a ocorrência de eventual prescrição da pretensão punitiva estatal. 4. Eventualmente, o próprio Ministério Público Federal, ao final da instrução probatória, poderá dar ao fato definição jurídica diversa daquela constante da denúncia - conforme artigos 383 e 384 do CPP. 5. O Juiz, se entender que o fato provado é distinto do narrado na denúncia, acarretando mudança em sua classificação jurídica, deverá conceder prazo para o Parquet aditar a peça acusatória, abrindo novo prazo para a continuação da instrução processual, com a realização de inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, debates e julgamento, conforme preconiza a nova Lei 11.719/08, que alterou o Código de Processo Penal - artigo 384 e § § 1º ao 5º. 6. Assim, a definição jurídica do fato só pode ocorrer após o término da instrução processual, sob pena de se impedir o órgão acusador de produzir as provas com as quais pretende demonstrar a procedência da imputação, acarretando verdadeiro julgamento de mérito antecipado da ação penal, o que é defeso em nosso sistema processual penal. Ademais, o réu defende-se dos fatos a ele imputados, e não da capitulação jurídica sugerida pelo órgão ministerial na inicial acusatória. Preliminar levantada em parecer ministerial de desclassificação do tipo penal e reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva estatal não acolhida. 7. A denúncia ofertada às fls.258/261 atende os requisitos previstos no artigo 41 do Código de Processo Penal. E não se vislumbra qualquer uma das hipóteses do artigo 43 do Código de Processo Penal, a justificar a rejeição da inicial acusatória. 8. A rejeição sumária da denúncia, com base apenas em prova coligida durante procedimento administrativo em relação ao denunciado CLAUDEMIR DOS SANTOS e com base em ausência de dolo, em relação ao co-denunciado ROBERTO VILLAPIANO, sem sequer ter se dado início à instrução criminal, equivale a uma absolvição sem processo, configurando verdadeiro julgamento antecipado da lide, sem permitir que a acusação produza provas em juízo, em violação aos princípios constitucionais de acesso à jurisdição e do contraditório - art. 5º, incisos XXV e LV da Lei Maior. 9. Acerca da fundamentação da decisão absolutória de fls.405/407, no sentido de que não houve caracterização do delito em relação ao denunciado CLAUDEMIR DOS SANTOS, já que ele foi absolvido da prática da infração administrativa por insuficiência probatória, merece ser revista, pois, é cediço que há independência entre as instâncias administrativa e penal. 10. Ademais, é preciso consignar que, em um juízo hipotético, mesmo que os ora recorridos obtivessem êxito na busca da absolvição com base no artigo 386, III, do Código de Processo Penal, ainda assim não conseguiria afastar o ato punitivo levado a efeito na seara administrativa, o que só ocorreria se a decisão absolutória viesse embasada nos incisos I ou V, do artigo 386 do Código de Processo Penal, ou seja, teria que reconhecer a inexistência do fato ou de sua autoria, por parte dos acusados. Na verdade, no Direito Penal só se pune por fato tipificado como crime, corolário lógico do Princípio da Legalidade (art. 1º do Código Penal e art. 5º, inciso XXXIX da Carta Magna). 11. Por derradeiro, o ato punitivo na esfera administrativa, que tem por base o ilícito administrativo, difere do ato punitivo penal, que visa reprimir o ilícito criminal. Assim, nenhum efeito a decisão proferida na esfera administrativa poderá produzir nestes autos, dada a autonomia das instâncias administrativa e penal, o que permite a aplicação da sanção penal independentemente do desfecho do processo administrativo. 12. Ressalto que apenas há comunicabilidade e influência da decisão penal na esfera administrativa, como dito, quando da ocorrência da sentença penal absolutória com supedâneo legal nos incisos I e V do Código de Processo Penal (inexistência do fato e negativa da autoria), sendo que o contrário não ocorre, ou seja, a decisão administrativa nenhuma influência pode exercer no processo criminal. 13. E, no que concerne a fundamentação de ausência do dolo do outro acusado, por força do depoimento prestado na fase inquisitorial (fls. 49/50 dos autos de IP - apenso I) quanto ao co-denunciado ROBERTO VILLAPPIANO, em que esclareceu que contratou Vantuil Pacheco para providenciar seu pedido de concessão de aposentadoria e que só tomou conhecimento que o benefício requerido foi concedido com base em vínculos empregatícios ficitícios por informações da própria autoridade policial, ressalto que tem esta Egrégia 5ª Turma firmado o entendimento de que somente após o término da instrução criminal é permitida a análise da presença do elemento subjetivo (dolo) do tipo penal. 14. Destarte, constatada a existência de provas da materialidade delitiva (ocorrência do fato típico e ilícito), e havendo indícios quanto a autoria delitiva, outra não poderia ser a providência do magistrado, que não a de receber a denúncia, em homenagem ao princípio que vige nesse momento processual, in dubio pro societate, até porque não se apresenta nítida qualquer excludente de tipicidade, de ilicitude, ou mesmo de culpabilidade. A decisão proferida pelo magistrado, de rejeição da denúncia, representa verdadeiro cerceamento do direito de acusação, de que é dotado o órgão ministerial. Precedentes desta E. Corte Regional e do Colendo STJ. 15. Presente a justa causa para a ação penal, é imperioso o recebimento da inicial acusatória, permitindo-se que o parquet, durante a instrução penal, possa produzir as provas visando demonstrar a materialidade e a autoria do delito. 16. Preliminar suscitada em parecer ministerial não acolhida. Recurso ministerial provido para receber a denúncia. Decisão reformada.
Rel. Des. Ramza Tartuce
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