RELATOR : DESEMBARGADOR FEDERAL ROGÉRIO FIALHO MOREIRA -
Penal e processual penal. Apelação criminal. Crime de receptação qualificada, (artigo 180, § 1º, do código penal). Sentença condenatória. Pena mínima. Autoria e Materialidade comprovadas. Origem lícita do ferro. Não comprovada. Dolo Eventual. Constitucionalidade. Elemento subjetivo demonstrado. Tipo penal sem fim Especial. Discussão acerca da aplicação do in dubio pro reu. Prejudicada. Pena de Multa. Opinião do julgador sobre a gravidade abstrata. Redução. Apelação Parcialmente provida. 1. Apelação criminal interposta em face da sentença que condenou o apelante pela prática de um delito de receptação qualificada, previsto no Artigo 180, § 1º, do Código Penal, à pena de 03 anos de reclusão, em regime aberto, e 100 dias multa. 2. Pesa contra o recorrente a acusação de, em agosto de 2010, ter adquirido e mantido em depósito, com objetivo de destinar ao exercício da atividade comercial, trilhos de ferro pertencentes à Rede Ferroviária Federal (RFFSA), sabendo que tais bens eram produto de crime. 3. A justa causa, prevista de forma expressa no Código de Processo Penal, consubstancia-se no lastro probatório mínimo e firme, indicativo da autoria e da materialidade da infração penal. Assim como consignado pelo magistrado sentenciante, "a carência de justa causa para propositura da ação penal apenas quando, de plano, denota-se a inexistência de provas materialidade e indícios de autoria". 4. No caso dos autos, qualquer elemento que refute, de maneira inequívoca, o lastro probatório mínimo demonstrado na espécie, o qual aponta no sentido da materialidade e indícios de autoria do fato imputado ao recorrente, "conforme explicitado desde a primeira decisão de recebimento de denúncia", bem como na própria sentença ora recorrida. 5. A teor da sentença recorrida, a materialidade do fato encontra-se devidamente comprovada, eis que "demonstrados nos autos do IPL 624/2010, mais especificamente, no auto de prisão em flagrante de fls. 02/07, no boletim de ocorrência de fls. 22/24, no auto de apreensão de fl. 35, no auto de exame local (furto) nº 964/2010 de fls. 40/46, no laudo de exame local nº 980/2010 de fls. 69/74, no ofício de fl. 92, assim como no laudo nº 895/2010, acostado às fls. 245/254 da ação penal". 6. A sentença também não merece reparos no que diz respeito à autoria delitiva. O próprio apelante, perante a autoridade policial (fls. 06/07 do IPL), confessou ter adquirido os sobreditos trilhos, encontrados no sítio de sua propriedade, de uma pessoa que não conhecia, pelo valor de R$ 3.800,00 (três mil e oitocentos reais). Declarou desconhecer a origem ilícita dos bens. 7. Não se sustenta a alegação de que adquiriu os trilhos encontrados em sua propriedade licitamente. As notas fiscais e recibos de fls. 39/42, os quais comprovariam que o ferro teria sido comprado da pessoa jurídica ADERBAL PESSOA DE OLIVEIRA SOBRINHO - ME (nome fantasia SÓ FERRO) em 23/07/2010, que, por sua vez, teria obtido em leilão público realizado na Secretaria da Administração do Estado do Ceará no ano de 2004 (nota fiscal à fl. 39), revelaram-se inidôneas para refutar a acusação. 8. Inobstante o recibo ser datado em 23/07/2010 (fl. 41), o senhor Aderbal Pessoa de Oliveira Sobrinho informou que sua microempresa, denominada "Só Ferro" (CNPJ 02.802.731/0001-86) encontra-se com suas atividades comerciais e fiscais paralisadas desde março de 2005 (fl. 208). Tal fato foi corroborado pelos dados fornecidos pela da Previdência Social os quais dão conta que a referida empresa não possui empregados registrados desde 2009 (fl. 198). 9. Ademais, cotejando as provas carreadas nos autos, conforme restou consignado na decisão vergastada, "existe uma grande distorção entre o preço com que o lote nº 45 (250m de trilhos perfil TR-32 e 306m de trilhos perfil TR-37), objeto da nota fiscal de fl. 39, foi arrematado (R$ 25.500,00), em outubro de 2004, e o preço da alegada negociação comercial (301,6m de trilhos perfil TR-37), realizada entre o réu e Marcos José (R$ 3.800,00), em agosto de 2010, além do que, segundo informação prestada pelo servidor do setor da Inventariança da Extinta Rede Ferroviária Federal, em se tratando de trilhos bem conservados e com bastante procura pelo mercado, "a probabilidade do mercado não ter aplicado estes trilhos em agosto de 2010 é praticamente nula. Considerando que já haviam decorrido quase 6 (seis) anos desde sua retirada em 11/11/2004" (fls. 148/149)". 10. Devem ser rejeitadas as alegações de ausência de dolo e da intenção de lesar o patrimônio alheio. O tipo penal previsto no art. 180, §1º, do Código Penal consiste num crime próprio que pela atividade profissional exercida pelo agente há a cominação de punição mais severa com base na maior reprovabilidade da conduta do receptador, exigindo para a configuração do crime em comento como elemento subjetivo o dolo, inclusive o eventual (e não apenas o direto). O Supremo Tribunal Federal já se manifestou pela constitucionalidade (RE nº 443.388/SP, rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 11.09.2009). 11. De acordo com os ensinamentos de Cezar Roberto Bitencourt2. Para o professor, há "situações em que o agente tem o dever de informar-se. Nessas circunstâncias, não pode invocar, em seu favor, o descumprimento do dever de informar-se. Em razão de sua atividade, da sua condição, o agente está obrigado a, antes da realização de determinadas condutas, informar-se a respeito da licitude ou ilicitude. Se não o fizer, se deixar de informar-se, não poderá alegar posteriormente que não sabia, e buscar a escusabilidade desse desconhecimento, porque descumpriu o dever prévio de informar-se". 12. Tais lições são pertinentes ao delito da receptação qualificada, eis que o "dever de informar-se" encontra-se onipresente no crime tipificado no art. 180, §1º, do CP, porque impõe ao agente a obrigação de diligenciar no sentido de verificar se bem a ser adquirido é produto de crime, já que prevê expressamente que o sujeito deve saber tal informação. 13. Ao ignorar a origem de um produto, o sujeito ativo da receptação qualificada põe-se numa espécie de estado de cegueira deliberada, assumindo, por consequência, a luz da previsão legal, o risco de incorrer na prática da conduta censurada pelo referido dispositivo. E tal cautela deve ser exigida, especialmente, das pessoas que atuam no exercício da atividade comercial de compra e venda de sucata, mormente quando se tratar de trilhos, em razão do conhecido comércio ilegal desse material retirado ilicitamente das ferrovias federais. Tais comerciantes não devem ser míopes na certificação da licitude dos referidos bens porque, caso contrário, assumem o risco de estar praticando o crime previsto no art. 180, §1º, do CP, ao adquirir ferro produto de crime desobedecendo o comando normativo consubstanciado no dever de buscar informação. 14. Na espécie, à luz dos apontamentos declinados, não há como reconhecer a exclusão do dolo eventual da conduta do apelante, eis que as circunstâncias do caso concreto demonstram que o agente devia saber que os ditos trilhos Tipo TR- 37 foram furtados da rede ferroviária federal, conforme se atestou o Laudo nº 946/2010, levando-se em consideração, ainda, sua vasta experiência no ramo, bem como a desproporção entre o preço pago (R$ 3.800,00) e o valor de mercado (estimado em mais R$ 50.000,00). Incorreu, destarte, na prática da conduta censurada pelo art. 180, §1º, do CP. 15. Refuta-se o argumento de ausência intenção de lesar o patrimônio alheio, eis que o sobredito tipo penal não exige fim específico para sua caracterização e a discussão quanto à aplicação do princípio do in dubio pro reo, encontra-se prejudicada em face da inexistência dúvidas acerca da configuração do crime imputado ao réu, conforme delineado em linhas anteriores. 16. Mantida a pena de multa aplicada na sentença. Neste ponto, vencido o relator que entendia ser incabível a exasperação da pena de multa quando a pena privativa de liberdade é fixada no limite mínimo previsto no preceito secundário do tipo. 17. Apelação improvida.
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