ACR – 12529/RN – 0007205-75.2010.4.05.8400

RELATOR : DESEMBARGADOR FEDERAL VLADIMIR SOUZA CARVALHO -  

Penal e Processual Penal. Apelações criminais interpostas pelo Ministério Público Federal e pelos réus, atacando sentença condenatória calcada na prática continuada dos crimes de tráfico internacional de pessoas e de redução à condição análoga à de escravo. Rejeição das preliminares de nulidade, à míngua da comprovação de prejuízo para a defesa e por não haverem sido agitadas no momento oportuno, já que não constaram da ata de audiência, nem das alegações finais dos acusados. Ademais, o princípio da identidade física do juiz não é absoluto, comportando temperamentos, como, no caso, o de o magistrado da instrução ter sido promovido para ser titular em Vara Federal diversa. Precedente: ACR 13121, des. Paulo Roberto de Oliveira Lima, julgada em 09 de agosto de 2016). Por outro lado, inexiste espaço para se arguir a inconstitucionalidade da norma que abriga o ilícito de tráfico internacional de pessoas, hoje previsto no artigo 149-A, deste mesmo diploma legal, desde o advento da Lei 13.344/2016, que revogou o artigo 231, do Código Penal. Trata-se de diploma normativo por demais recente, animado pelos atuais ventos que sopram sobre a matéria em diversos países, e, por conseguinte, não há notícia de que sua constitucionalidade tenha sido abalada em qualquer tribunal pátrio. Entrementes, como os fatos perquiridos remontam aos anos de 2007 e 2008, as condutas devem ser visualizadas sob o prisma da legislação então vigente, que, consoante bem registrou a sentença esgrimida, era o artigo 231, do Código Penal, com a redação que lhe conferia a Lei 11.106/2005, que, inclusive, cominava pena inicial mais branda do que a atual (três anos de reclusão). Quanto ao mérito, tudo corroborou a tese da acusação, restando confirmada a responsabilidade dos réus pela prática continuada dos crimes de tráfico internacional de pessoas e de redução à condição análoga a de escravo. Cabia à ré Cristiane Ferreira da Silva Tinoco intermediar a seleção e o encaminhamento das brasileiras, do Estado do Rio Grande do Norte para Girona, na Espanha, sob a falsa promessa de que iriam ganhar, no mínimo, oitocentos euros por noite. Uma vez em território espanhol, as vítimas eram recepcionadas pelo dono das boates El Éden e Eclipse, Jose Moreno Gomez, e pelo seu braço direito, Ceferino Valero Gonzalez, conhecido como Fino, sendo, assim que chegavam a estas casas de tolerância, repassada a má notícia de que teriam uma dívida com o grupo de, aproximadamente, dois mil e quinhentos euros, referente às passagens aéreas, bem como o aviso de que seriam responsáveis pelas próprias despesas com a manutenção básica, e, além, disso, por tudo o que fosse utilizado durante os encontros sexuais, desde os preservativos até a lavagem dos lençóis. Ceferino Valero Gonzalez, assistente pessoal de Jose Moreno Gomez, além de ser o responsável pela logística de receber as mulheres recém chegadas, era quem fazia o serviço pesado de ameaçá-las de morte, caso fugissem ou não conseguissem pagar suas dívidas, arcando, outrossim, com a tarefa de reter seus passaportes, proceder às cobranças diárias e fazer a contabilidade do negócio. Este relato foi confirmado, quase em uníssono, pelas seis vítimas ouvidas em juízo na condição de testemunhas (Ana Luíza Santos Lucio, Kátia Medeiros Rocha, Ângela Maria de Andrade, Amanda de Melo Campos, Maise França Correia Costa e Silvanir de Meiros da Rocha, mídia acostada às f. 704). Por outro lado, a defesa não logrou trazer aos autos qualquer prova a elidir a certeza quanto à autoria e materialidade delitivas. Decerto, a circunstância de a vítima já se prostituir ou não no território nacional não se reveste de qualquer importância, uma vez que não pode ser coagida a continuar no meretrício no exterior. Igualmente desimportante, outrossim, é que a vítima tenha consciência de que será entregue à prostituição fora do Brasil, já que o crime se consuma independentemente do seu consentimento. Nessa esteira, a jurisprudência é remansosa no sentido de que o consentimento da vítima não exclui a responsabilidade do traficante ou do explorador, pois que ainda que tenham consciência de que exercerão a prostituição, não têm ideia das condições em que a exercerão e, menos ainda, da dívida que em geral contraem antes de chegar ao destino (Processo 00007549820084025001, des. Liliane Roriz, julgada em 02 de agosto de 2011). Quanto aos seis crimes de redução a condição análoga à de escravo, da mesma forma, restou estreme de dúvidas que as condições, em que foram colocadas as vítimas, eram as piores possíveis, porquanto se viam impedidas de se desvencilhar da situação degradante em que estavam postas. Por outro lado, quanto à apelação do Ministério Público Federal, revela-se não ser digna de sucesso. Nesse ponto, andou bem, mais uma vez, a sentença, ao absolver o réu José Manuel Caeiro Otero, à míngua de provas de que tenha colaborado, efetivamente, para os delitos ora descortinados, nada desautorizando o juízo de que era um mero empregado das boates. E, quanto ao crime de quadrilha ou bando, a redação do artigo 288, do Código Penal, anterior ao advento da Lei 12.850/2013, realmente, exigia, para a consumação deste ilícito, a prática de crimes (no plural) por, pelo menos, quatro agentes. Consequentemente, como são apenas três os ora apenados, não há como condená-los por este crime. Por último, no que diz respeito à dosimetria das penas, também não há o que ser alterado, visto que as sanções foram cominadas em estrita consonância com as regras do sistema trifásico, chegando, por fim, a cominações necessárias e suficientes para a reprovação e prevenção do crime (art. 59, do Código Penal). Neste ponto, aliás, vale ressaltar que as penas hoje aplicadas ao tráfico internacional de pessoas, com o novo regramento legal supra mencionado, são ainda mais severas do que as da época em que os ilícitos foram perpetrados, namedida em que a pena mínima atualmente prevista é de quatro anos (superior, inclusive, às penas-base aplicadas aos réus Ceferino Valero Gonzales e Cristiane Ferreira da Silva Tinoco, que foi de três anos e seis meses). Todavia, consoante é cediço, não podem retroagir para alcançar os fatos pretéritos. Sentença confirmada em todos os seus aspectos, mantendo-se incólumas as seguintes reprimendas: a) Jose Moreno Gomez; pena total de treze anos e seis meses de reclusão; b) Ceferino Valero Gonzalez: onze anos, sete meses e quinze dias de reclusão; e, enfim, c) Cristiane Ferreira da Silva Tinoco: onze anos, sete meses e quinze dias de reclusão. Por último, cumpre registrar que ainda persiste a notícia nos autos de que os réus estão soltos e residem na Espanha, razão por que as comunicações processuais estão sendo feitas através de carta rogatória e mediante cooperação jurídica internacional, devendo, pois, provavelmente, assim continuar o juízo da execução. Apelações improvidas.

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