AÇÃO PENAL Nº 804 – DF (2015/0023793-9)

RELATOR : MINISTRO OG FERNANDES -  

PENAL E PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL PÚBLICA. DELITOS PREVISTOS NO ART. 317, § 1º, DO CP - CORRUPÇÃO PASSIVA QUALIFICADA - E NO ART. 1º, INC. V, § 4º, DA LEI N. 9.613/1998 - LAVAGEM DE DINHEIRO. PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DO STJ. REJEIÇÃO. PRELIMINAR DE NULIDADE DO FEITO POR INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRF - 2ª REGIÃO. REJEIÇÃO. PRELIMINAR DE PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA PELA PENA EM ABSTRATO. NÃO ACOLHIMENTO. PRELIMINAR DE NULIDADE DA DECISÃO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. INDEFERIMENTO. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA. REJEIÇÃO. PRELIMINAR DE NULIDADE DAS PROVAS PRODUZIDAS NO FEITO. NÃO ACOLHIMENTO. ALEGAÇÕES DE INÉPCIA E DE AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA DA AÇÃO PENAL. APRECIAÇÃO COMO QUESTÕES DE MÉRITO. MÉRITO. CASO DOS AUTOS CUJA PROVA CONFIGURA, TÃO SOMENTE, O COMETIMENTO DO DELITO TIPIFICADO PELO ART. 317, § 1º, DO CP - CORRUPÇÃO PASSIVA QUALIFICADA. ABSOLVIÇÃO QUANTO AO DELITO DESCRITO NO ART. 1º, INC. V, § 4º, DA LEI N. 9.613/1998 - LAVAGEM DE DINHEIRO. CONDENAÇÃO DO RÉU NAS PENAS COMINADAS AO DELITO PREVISTO NO ART. 317, COM A CAUSA DE AUMENTO DE PENA DO § 1º, TODOS DO CÓDIGO PENAL, RESULTANDO EM UMA PENA DE 6 (SEIS) ANOS DE RECLUSÃO. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA PELA PENA EM CONCRETO. ART. 109, INC. III, DO CP. 1. A ação penal em tela tramita no STJ em virtude de o réu ocupar cargo previsto no art. 105, inc. I, "a", da Constituição Federal, qual seja, a cadeira de conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo, que assumiu em 6 de novembro de 2013. Ocorre que os fatos investigados foram praticados à época em que o acusado era deputado estadual e estavam diretamente relacionados às funções desempenhadas. Assim, a competência, que deveria ser do STJ segundo o entendimento anterior - tendo em vista o cargo atual do acusado ter prerrogativa de julgamento no STJ, conforme o art. 105, inc. I, "a", da Constituição Federal - deveria passar a ser do TJES, se aplicado o recente entendimento do STF na QO na AP n. 937/RJ, pois, como visto, os fatos foram praticados à época em que o acusado era deputado estadual, e estavam diretamente relacionados às funções desempenhadas. Contudo, foi justamente para hipóteses como a presente que o STF fixou a seguinte ressalva na QO na AP n. 937/RJ: "Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo". O STF tencionou, com efeito, evitar que a mudança de entendimento trazida pela QO na AP n. 937/RJ terminasse por deslocar a competência em casos com instrução processual já encerrada e prontos para julgamento. É precisamente este o caso dos autos. Tudo isso recomenda a manutenção e o julgamento do processo no STJ. 2. A questão da competência foi devidamente examinada no voto vencedor durante a votação da questão de ordem no TRF - 2ª Região (vol. 4, fl. 1.252 e vol. 6, fl. 1.821), o qual entendeu pela sua competência para processar o feito, tendo em vista que toda negociação fraudulenta teve como sustentáculo e origem verba proveniente de empréstimo do BNDES, e vários dos réus eram deputados estaduais, detentores de prerrogativa de foro, na forma do art. 109, inc. I, "a", da Constituição Estadual do Espírito Santo. Assim, restou assentada a competência da Justiça Federal, não havendo falar em nulidade nas provas produzidas por juízo incompetente. 3. Rejeito a preliminar de prescrição pela pena em abstrato. Os fatos ocorreram em dezembro de 2000, quando vigia a redação originária do art. 317 do Código Penal, que cominava pena de 1 (um) a 8 (oito) anos de reclusão e multa para o crime de corrupção passiva. Ao contrário do alegado pelo réu, entendo que não há que se descartar, de antemão e em tese, a causa de aumento do art. 317, § 1º, do Código Penal. Isso porque não merece acolhida a alegação de que a causa de aumento incide apenas quando o funcionário público praticar ato de ofício ilícito, e que, no caso dos autos, o ato em questão (votação para Presidente da Assembleia Legislativa do Espírito Santo) era puramente discricionário. Ora, mesmo o ato sendo discricionário, penso que a causa de aumento não pode ser descartada com base nessa argumentação, pois o ato de votar para Presidente da Assembleia Legislativa do Espírito Santo em virtude do alegado pagamento de propina caracteriza a parte final do tipo penal "praticar ato de ofício infringindo dever funcional" (art. 317, § 1º, do CP). 4. Não há nulidade da decisão que recebeu a denúncia, uma vez que a fundamentação foi suficiente para aquele momento processual, não sendo necessária uma fundamentação exauriente, como se exige no momento da prolação da sentença. Precedentes do STF e do STJ. 5. Rejeito a preliminar de cerceamento de defesa por ter sido concedido prazo maior para o Ministério Público Federal do que para a defesa para apresentação das alegações finais. Tal matéria já foi apreciada em decisão monocrática à fl. 9.140 (vol. 26), a qual foi referendada pela Corte Especial, às fls. 9.296/9.302. Não há motivo para reexaminar a questão no presente momento, configurando-se a preclusão. 6. Inexiste nulidade das provas produzidas no feito em virtude de a quebra de sigilo bancário ter sido determinada por decisão de juiz de primeiro grau, em investigação em que o réu não é parte. O fato de, a partir dessa quebra, terem sido encontradas outras provas, não as torna inválidas, até porque, no momento em que se constatou a presença de acusados com prerrogativa de foro, obedeceu-se rigorosamente a tais prerrogativas, com o envio do feito ao TRF - 2ª Região (acusados ocupando o cargo de deputados estaduais), e, posteriomente, como o envio do processo contra o acusado ao STJ, por ocupar o cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo. A competência, assim, foi rigorosamente obedecida. Precedente do STJ. 7. Não procede a alegação de cerceamento de defesa com base em ter sido indeferida diligência indispensável para o deslinde da controvérsia, quando o acusado requereu que a Assembleia Legislativa do Espírito Santo fosse oficiada para esclarecer: a) quais chapas concorreram ao pleito da Presidência em 2000; b) o nome e o partido dos integrantes das indigitadas chapas; c) o histórico com número de votos e abstenções do Deputado Sérgio Borges, durante todo o período em que foi deputado estadual pelo Espírito Santo. Tal diligência foi requerida pelo acusado às fls. 9.009/9.011, a título de diligências complementares, as quais indeferi às fls. 9.020/9.023. A defesa interpôs agravo regimental contra a referida decisão, tendo a Corte Especial negado provimento ao recurso, às fls. 9.070/9.080. O réu opôs embargos de declaração contra o aresto retro, às fls. 9.089/9.097, os quais foram improvidos pela Corte Especial às fls. 9.104/9.114. Ou seja, a questão já foi examinada de forma exauriente pela Corte Especial, não cabendo reabrir a questão no presente momento, em virtude da preclusão. 8. As alegações quanto à ausência de tipicidade dos fatos narrados pela denúncia, suscitadas incidentalmente na demanda penal, se circunscrevem ao mérito desta demanda penal, razão pela qual a sua discussão será feita no momento do exame do mérito. 9. No que tange ao delito de corrupção passiva qualificada (art. 317, § 1º, do CP), destaca-se que a redação do dispositivo considerada é a anterior à dada pela Lei n. 10.763, de 12/11/2003, uma vez que os fatos ocorreram no ano 2000, não podendo haver a retroação da lei penal mais gravosa ao acusado. Assim, a pena a ser considerada não é a de reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa - redação dada pela Lei n. 10.763, de 12/11/2003 -, mas sim a pena de reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa, na redação original do Código Penal. 10. É fato não controvertido a entrega de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) ao acusado, o qual se defendeu alegando, inicialmente, que se tratava de empréstimo para si mesmo, por conta das dívidas decorrentes do ano eleitoral, e, depois, de empréstimo para pagar uma suposta dívida do seu irmão, que já se encontra falecido. Registre-se que a nota promissória foi anexada aos autos pela própria defesa (vol. 25, fl. 8.824), mas há vários elementos que sugerem tratar-se de nota forjada apenas para corroborar um empréstimo inexistente, nomeadamente: 1) não há data de emissão; 2) não há data de vencimento; 3) o acusado confessa que nunca foi resgatada, nem nunca foi cobrado para que pagasse a dívida (fl. 8.851); 4) a nota promissória sequer tem a assinatura do seu beneficiário; 5) o acusado admite que a preencheu integralmente de próprio punho (fl. 8.851), razão pela qual se pode até mesmo duvidar da ciência do beneficiário acerca da existência da referida nota; 6) há uma anotação lateral na nota de juros de 1% ao mês mais IGPM, porém, como não há data de emissão ou de vencimento, não há sequer como fixar qual o termo inicial para o cômputo dos juros. 11. Está documentalmente provado nos autos o depósito de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) por pessoa interposta na conta de uma assessor do acusado (cheque n. 2174, conta 01.00002876 - fls. 719 e 725, vol. 2), sendo que este último repassou R$ 20.000,00 (vinte mil reais) para o denunciado (extratos bancários de fls. 8.643 a 8.649 e cheque de fl. 8.696), descontando a quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais), referente a uma dívida que o irmão do denunciado tinha com o referido assessor (fls. 7.489-7.491). 12. Dessa forma, o tipo legal reportado no art. 317 do Código Penal (corrupção passiva) se encontra devidamente configurado, e, ao contrário do alegado pelo réu, entendo que incide no caso a causa de aumento do art. 317, § 1º, do Código Penal ("A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional"). Isso porque foi justamente em "consequência da promessa do pagamento de R$ 30.000,00 (trinta mil reais)" que o acusado, deputado estadual, "praticou ato de ofício infringindo dever funcional", ao votar para Presidente da Assembleia Legislativa do Espírito Santo no candidato que lhe foi indicado pelo agente corruptor. 13. No que tange ao delito de lavagem de capitais, previsto no art. 1º, inc. V, § 4º, da Lei n. 9.613/1998, destaca-se, inicialmente, que a redação do dispositivo considerada é a anterior à dada pela Lei n. 12.683, de 2012, uma vez que os fatos ocorreram no ano 2000, não podendo haver a retroação da lei penal mais gravosa ao acusado. 14. Não houve a comprovação de que a operação de cessão de créditos de ICMS realizada entre as empresas Espírito Santo Centrais Elétricas S.A. - ESCELSA e SAMARCO S.A. traga, em si, a caracterização de qualquer tipo penal. A origem do dinheiro não é pública, mas negocial em esfera privada, pois os créditos de ICMS pertenciam à SAMARCO e eram por ela livremente transferíveis. Por mais que o crime antecedente - "a corrupção passiva qualificada" - tenha existido, a dissimulação ocorrida no caminho que o dinheiro percorreu até chegar nas mãos do acusado não caracteriza a lavagem de capitais, mas apenas a ocultação normal que ocorre no pagamento de propinas. Ou seja, trata-se da mera consumação do crime de corrupção, e não de crime autônomo de lavagem de dinheiro. 15. É admissível a punição pelo crime de autolavagem no Brasil. Precedentes do STF e do STJ. Entretanto, a utilização de terceiros para o recebimento da vantagem indevida não configura, per si, o delito de lavagem de dinheiro, conforme precedente do STF na AP 694/MT (Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 2/5/2017, publicada do DJE 195, de 31/8/2017). Assim, não há que se falar, no caso concreto, de "autolavagem de capitais", pois o réu não realizou ações posteriores e autônomas com aptidão para convolar os valores obtidos com a prática delituosa em valores com aparência de licitude na economia formal. O alegado empréstimo que teria sido feito pelo acusado para pagar uma suposta dívida do seu irmão não ficou comprovado nos autos. Não passou, portanto, de uma estratégia de defesa malsucedida, a qual, se foi afastada para considerar como praticado o crime de corrupção passiva, não pode ser agora acolhida para a configuração do crime de "autolavagem de capitais". 16. Com isso, é de se concluir pela condenação do réu apenas pelo cometimento do delito previsto no art. 317, com a causa de aumento de pena prevista no § 1º, todos do Código Penal. Com a dosimetria efetivada e individualizada a pena in concreto, aplica-se ao réu a uma pena privativa de liberdade de 6 (seis) anos de reclusão. 17. Impõe-se a decretação da prescrição da pretensão punitiva, com base na pena fixada em concreto, pois já transcorreu lapso de mais 12 (doze) anos desde o último marco interruptivo da prescrição, isto é, a data do recebimento da denúncia, em 1º/7/2003 (vol. 10, fl. 3.513). A pena de multa relativa ao art. 317 do CP, também deve ser considerada prescrita, dada a ocorrência da prescrição da pena privativa da liberdade, conforme o disposto nos arts. 114, inc. II e 118, ambos do Código Penal. 18. Esclareço, até pelo dever de demonstrar que a prescrição não ocorreu em decorrência de demora deste Relator, que a presente demanda se reporta a 34 (trinta e quatro) apensos e a 27 (vinte e volumes) volumes de autos, sendo que, somente no que concerne aos autos da própria Ação Penal (sem contabilizar os apensos), já se tem o montante de 9.389 (nove mil trezentos e oitenta e nove) folhas. O feito foi a mim distribuído em 6/2/2015 (depois de ter tramitado de 17/1/2003 a 5/2/2015 entre o Juízo de Primeiro Grau e o Supremo Tribunal Federal). Quando o processo foi a mim distribuído, portanto, já havia transcorrido quase 12 (doze) anos após o recebimento da denúncia, isto é, considerando-se a pena que afinal veio a ser fixada - 6 (seis) anos de reclusão - já estava esgotado quase por completo o  prazo prescricional relativamente ao crime previsto no art. 317, § 1º, do CP, nada podendo ser atribuído a este Relator pela demora injustificada em pautar o feito para julgamento. 19. Ante o exposto, há de se declarar extinta a punibilidade estatal pela ocorrência da prescrição baseada na pena fixada em concreto.

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