Habeas Corpus Nº 23.362/rj

Maus tratos. Legitimidade passiva ad causam. Denúncia. Nexo de causalidade. Inépcia. Justa causa. Ausência. Ação penal. Trancamento.

Rel. Min. Paulo Medina


RELATÓRIO - O EXMO. SR. MINISTRO PAULO MEDINA (Relator):
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ofereceu denúncia, em 24 de junho de 1996, contra Mansur José Mansur, Eduardo Quadros Spínola, Sílvia Maria Matilde da Conceição, Valfredo Costa de Oliveira, Amanda Carolina Rizental Pinto e Roberto da Cunha Dias, imputando-lhes a conduta tipificada nos artigos 136, caput, por 329 vezes (trezentos e vinte e nove vezes), 136, § 1º, por 41 (quarenta e uma vezes) e 136, § 2º, por 27 (vinte e sete) vezes, na forma prevista no artigo 70, última parte, do Código Penal. Atribuiu-lhes, ainda, a conduta sancionada pelo artigo 269, na forma do artigo 69, do Código Penal. Narra a inicial (fls. 135/149) que: “No período de tempo compreendido entre primeiro de abril e princípio de junho do ano de mil novecentos e noventa e seis, no interior da Clínica Médica Santa Genoveva Ltda. (...) situada na Estrada Dom Joaquim Mamede nº 270, em Santa Tereza, nesta cidade - e que é uma instituição privada com fins lucrativos conveniada com o Ministério da Saúde, tendo como destinação a internação de pacientes com patologias que estejam fora de possibilidades terapêuticas (F.T.P.), recebendo-os de hospitais públicos - os denunciados, na qualidade de administradores da clínica , unidos em comunhão de ações e desígnios, consciente e voluntariamente, expuseram a perigo a vida de (...) pacientes internos que estavam sob a guarda e vigilância dos denunciados , para fins de tratamento, privando-os parcialmente dos alimentos e cuidados indispensáveis relativos à utilização de água potável, higiene, atendimento médico e de enfermagem em níveis satisfatórios, medicamentos, exames elementares de laboratório e dietas nutricionais . (grifei) Com efeito, no que pertine à alimentação, era servido leite com prazo de validade vencido , sendo os gêneros alimentícios conservados de forma imprópria para o consumo , visto que os refrigeradores encontravam-se em condições inadequadas de conservação para a guarda de perecíveis, tendo sido, inclusive, constatada a presença de um “SAPO“ morto dentro de um freezer. Além disso, o aludido nosocômio não dispensava acompanhamento dietoterápico individualizado , imprescindível para a preservação, manutenção e recuperação da saúde das vítimas. De outro modo, a água utilizada na alimentação, ingestão e banho das vítimas ostentava coliformes fecais em níveis intoleráveis , fruto da ausência de limpeza e desinfecção rotineiras das cisternas, reservatórios e caixas superiores, nas quais se encontrou lama escura exalando odor insuportável em quantidades significativas. “ (grifei) Lista a inicial acusatória 397 (trezentos e noventa e sete) nomes de pessoas que estiveram internados na Clínica, ao tempo da denúncia, e prossegue reportando a inexistência de condições elementares de higiene, tais como o fato de os funcionários não usarem vestimenta adequada, a existência de ralos sem tampa, acúmulo de lixo hospitalar no chão das enfermarias, infiltrações nas paredes, medicamentos fora do prazo de validade dispostos sem indicação de seus usuários e, ainda, a inexistência de captação de água devidamente tratada. Tece comentários qualitativos sobre o procedimento médico e terapêutico dispensado aos internos para afirmar que “Em decorrência do quadro caótico descrito anteriormente, todos os pacientes internados na mencionada clínica durante o lapso temporal referido tiveram a vida e a saúde expostas a perigo . Sofreram efetivo dano à saúde, em razão da negligência dos denunciados, consistente na inobservância dos deveres de cuidado que, obrigatória e necessariamente, deveriam ter no tratamento da água consumida e dos alimentos que eram servidos no interior da clínica , os quais restaram sobremaneira infectados por bactérias provenientes da contaminação por coliformes fecais e da falta de higiene no manuseio dos alimentos, aditada à utilização deles mesmo em avançado estágio de deteriorização , às vítimas infra-aduzidas:“ (grifei) Neste passo, elenca 37 (trinta e sete) nomes próprios, indicativos de pessoas que estariam infectadas por bactérias que agem no trato intestinal, as quais de gastroenterite aguda, com fortes dores abdominais, diarréia, náuseas e vômitos, havendo um quadro clínico de desidratação, fato que determinou lesão grave consistente em PERIGO DE VIDA“. Cita dois enfermos que teriam sofrido tais lesões e que ainda estavam, ao tempo da denúncia, sob tratamento no Hospital Souza Aguiar. Aduz que “O evento danoso resultante da privação dos cuidados indispensáveis, até então relatados, e, mais uma vez, provenientes da efetiva negligência dos denunciados, geradora de infectação bacteriológica, originada pela contaminação do sistema de abastecimento de água e dos gêneros alimentícios , fez-se mais grave do que as lesões antes relatadas, uma vez que nos pacientes (…) causou-lhes a morte… “ (grifei) Aqui, arrola o Parquet 27 (vinte e sete) apelidos de doentes que faleceram, ao tempo em que aponta a falta de notificação de tais infecções à Unidade de Saúde Municipal de Santa Tereza, bairro do Rio de Janeiro. Concluem os signatários da denúncia por imputar aos denunciados, dentre eles o paciente MANSUR JOSÉ MANSUR, os tipos penais supracitados, inferindo que “Os denunciados, na condição de experientes profissionais da saúde, dirigiam e regulavam o funcionamento médico hospitalar oferecido pela clínica, possuindo o amplo e total domínio funcional das atividades empreendidas em relação aos pacientes e diretamente vinculadas ao desempenho administrativo e mercantil da atividade explorada , sabedores, portanto, dos mínimos e necessários cuidados indispensáveis à preservação da vida e da saúde das vítimas, cuidados estes que foram dolosamente e reiteradamente suprimidos aos pacientes, ficando estes expostos a infecções e maus tratos diversos, resultando em alguns lesões graves e em outros o evento fático da morte.“ (grifei) Ainda que condensada, a transcrição da exordial acusatória noticia o rumoroso caso que resultou em uma Comissão Parlamentar de Inquérito levada a cabo pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e culminou com a transferência de todos os enfermos e posterior fechamento da Clínica Médica e Cirúrgica Santa Genoveva. A denúncia foi recebida em 26 de junho de 1996 (fl. 151), dando azo à ação penal nº 96.001.069140-1 (tombo nº 10.063/96), em curso perante o Juízo da 28ª Vara Criminal da capital do Estado do Rio de Janeiro. Em 20 de fevereiro de 2002, quando o processo já tramitava há quase 6 (seis) anos, o paciente impetrou habeas corpus postulando o trancamento da ação penal. Argüiu a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva, em face da pena em abstrato cominada ao delito tipificado no art. 269 do Código Penal. No mérito, deduziu, em síntese, a ilegitimidade passiva ad causam do paciente, quer porque não era responsável pelos doentes, quer porque “a denúncia não descreveu sua participação no episódio que increpa delituoso, nem relaciona qualquer conduta que se lhe pudesse imputar como eventus damni e assim não basta para viabilizar a peça acusatória, por impedir o pleno direito de defesa “ (fl. 114). A Corte Estadual concedeu parcialmente a ordem, tão-somente parra declarar a extinção da punibilidade do crime tipificado no artigo 269, do Código Penal, mercê da prescrição da pretensão punitiva. Daí este habeas corpus, em que o impetrante reitera os argumentos expendidos na petição original, em especial: 1. ilegitimidade passiva ad causam, porque o paciente era representante da empresa MJM PARTICIPAÇÕES LTDA., detentora de 50% das cotas da clínica e, nos anos em que funcionou, lá compareceu não mais que 10 (dez) vezes e, portanto, não ostentaria a qualidade exigida pelo tipo, de vez que não tinha guarda, autoridade e vigilância sobre os doentes internados, inexistindo, pois, justa causa para a persecução penal (fl. 3). 2. inépcia da denúncia, porque não particularizou as ações do paciente, bem como sua relação com o resultado danoso, impossibilitando o exercício de defesa ampla e proficiente (fl. 4). Reporta-se à petição original, na qual desenvolve extensa argumentação de cunho probatório, com vistas a desqualificar a imputação feita pelo Ministério Público, refere parecer do Dr. Nilo Batista, pertinente ao caso concreto, reafirma que “o paciente nunca teve dever de agir na CLÍNICA MÉDICA E CIRÚRGICA SANTA GENOVEVA LTDA., razão por que não pode, enfim, responder por omissão, a não ser sob a ótica da odiosa responsabilidade objetiva, precisamente pelo descumprimento de tal dever que nunca teve, o que faz com que, independentemente da existência de crimes de maus-tratos na espécie (mostramos, no requerimento primitivo, que não houve qualquer crime a punir), seja ele reconhecido como parte ilegítima ad causam passiva, falecendo justa causa à ação penal contra ele...“ (fl. 9). Requer a concessão da ordem, para declarar a inépcia da denúncia e a falta de justa causa para subsumir o paciente à instância penal, trancando-se a ação penal nº 96.001.069140-1. O pedido liminar foi indeferido em 15.08.2002 (fl. 1126v). O Ministério Público Federal opina pela denegação da ordem, sob o argumento de que “a denúncia descreve quantum satis o fato delituoso e suas circunstâncias possibilitando o exercício da ampla defesa“ (fl. 1129). Redistribuído o feito em 17 de dezembro de 2003, vieram os autos conclusos em 07 de janeiro de 2004. É o relatório.

 
VOTO - O EXMO. SR. MINISTRO PAULO MEDINA (Relator):
Trata-se de rumoroso caso amplamente noticiado pela imprensa, dando conta de maus tratos sofridos por enfermos, internados na Clínica Santa Genoveva, os quais estariam, em suma, sendo mal tratados, por causa da ingestão de alimentos deteriorados, cozidos em água infectada, bem como da ministração de medicamentos com prazo de validade vencido. Exaustivamente explorado pelos meios de comunicação, contou com a participação de políticos, inclusive detentores de mandato eletivo, do que resultou uma Comissão Parlamentar de Inquérito levada a cabo pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. O próprio Ministro da Saúde de então, o Dr. Adib Jatene, teve oportunidade de visitar a clínica, avaliar o caso e pronunciar sua opinião a respeito, por meio de entrevista gravada e colacionada aos autos mediante fita de vídeo. O estrepitoso evento culminou com a transferência de todos os enfermos e o posterior fechamento da Clínica Médica e Cirúrgica Santa Genoveva. Algumas ações cíveis, postulatórias de indenização por dano moral, chegaram até este Tribunal Superior, somando 16 (dezesseis) processos, distribuídos aos Ministros das Terceira e Quarta Turma. Dentre estes, ressalto o REsp nº 297.440/RJ, relatado pelo Exmo. Sr. Ministro Ruy Rosado de Aguiar (DJ de 07.05.2001, pág. 152), que tratou de incidente de falsidade, decorrente da inserção e posterior retirada, dos autos, de prova fotográfica inidônea, consistente em retratos correspondentes a outro estabelecimento de recolhimento de idosos. Informações obtidas no sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro dão conta de que o processo, após 80 (oitenta) movimentações, está em fase de alegações finais para o assistente de acusação, desde 01.04.2004. Enfrento, por primeiro, o argumento que reputa inepta a denúncia, registrando que foi deduzido em processo autônomo, cerca de 6 (seis) anos após o seu recebimento. A peça ministerial expõe o fato com clareza e refere com amplitude suas circunstâncias, razão pela qual, ainda que não particularize de modo expresso a relação de efeito e causa havida entre o dano e a conduta atribuída ao paciente, não pode ser considerada motivo de cerceamento de defesa. Além disso, e ao contrário do que argumenta o impetrante, precisa o nexo causal havido, no entender do Ministério Público, entre a conduta omissiva do paciente e o resultado daí decorrente, a saber: “Os denunciados, na condição de experientes profissionais da saúde, dirigiam e regulavam o funcionamento médico hospitalar oferecido pela clínica, possuindo o amplo e total domínio funcional das atividades empreendidas em relação aos pacientes e diretamente vinculadas ao desempenho administrativo e mercantil da atividade explorada, sabedores, portanto, dos mínimos e necessários cuidados indispensáveis à preservação da vida e da saúde das vítimas, cuidados estes que foram dolosamente e reiteradamente suprimidos aos pacientes, ficando estes expostos a infecções e maus tratos diversos, resultando em alguns lesões graves e em outros o evento fático da morte.“ (grifei) A argumentação desenvolvida na denúncia deu ensejo, na impetração original, a extensa argüição probatória, que procurou refutar cada uma das imputações irrogadas pelo Ministério Público, o que demonstra haver perfeita compreensão dos limites da acusação. Ademais, não procede o argumento tendente a inquinar a denúncia de inépcia, em que pese expendido em brilhante parecer encomendado à lavra do Dr. Nilo Batista. Segundo o eminente Jurista, a denúncia incide em contradição que pode levar à declaração de inépcia, na medida em que (fl. 105): “Ao descrever a privação alimentar e assistencial que caracterizaria o tipo básico, menciona condutas dolosas; ao descrever os resultados qualificadores, menciona as mesmas condutas, agora em chave de culpa (cf. item III do parecer, primeira parte). A denúncia se equivoca ao pretender, num crime omissivo, fundamentar no co-domínio funcional do fato a suposta co-autoria, quando o correto seria individualizar a violação de dever de cada sujeito obrigado (cf. item III do parecer, segunda parte). Este equívoco tem como efeito que a conduta de cada acusado não foi objeto de descrição individualizada.“ Não obstante o douto parecer, o termo “negligência“, utilizado na denúncia não está a retratar uma das espécies de culpa, mas a demonstrar o ato omissivo atribuído ao paciente. De outra parte, porque o nexo de causalidade decorrente da omissão é jurídico, e não naturalístico, não há como descrevê-lo. Como leciona Cézar Roberto Bittencourt, “Há, no entanto, outro tipo de crime omissivo, o comissivo por omissão, ou omissivo impróprio, como já afirmamos, no qual o dever de agir é para evitar um resultado concreto. Nesses crimes, o agente não tem simplesmente a obrigação de agir, mas a obrigação de agir para evitar um resultado, isto é, deve agir com a finalidade de impedir a ocorrência de determinado evento. Nos crimes comissivos por omissão há, na verdade, um crime material, isto é, um crime de resultado, exigindo, conseqüentemente, a presença de um nexo causal entre a ação omitida (esperada) e o resultado. [...] Na doutrina predomina o entendimento de que na omissão não existe causalidade, considerada sob o aspecto naturalístico. como já afirmava Sauer, sob o ponto de vista científico, natural e lógico, “do nada não pode vir nada“. No entanto, o próprio Sauer admitia a causalidade na omissão, concluindo que “a omissão é causal quando a ação esperada (sociologicamente) provavelmente teria evitado o resultado“. Na verdade, existe tão-somente um vínculo jurídico, diante da equiparação entre omissão e ação. [...] Na omissão ocorre o desenrolar de uma cadeia causal que não foi determinada pelo sujeito, que se desenvolve de maneira estranha a ele, da qual é um mero observador. Acontece que a lei determina-lhe a obrigação de intervir neste processo, impedindo que produza o resultado que se quer evitar. Ora, se o agente não intervém, não se pode dizer que causou o resultado, que foi produto daquela energia estranha a ele, que determinou o processo causal. Na verdade, o sujeito não o causou, mas como não o impediu é equiparado ao verdadeiro causador do resultado. Portanto, na omissão não há o nexo de causalidade, há o nexo de “não impedimento“. A omissão relaciona-se com o resultado pelo seu não-impedimento e não pela sua causação. E Esse não-impedimento é erigido pelo Direito à condição de causa, isto é, como se fosse a causa real.“ (CÉZAR ROBERTO BITTENCOURT, Manual de Direito Penal, parte geral, volume 1, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, págs. 187/188) Assim, conforme leciona João Bernardino Gonzaga, “... nos crimes de omissão, castiga-se o sujeito porque, deixando de agir, não colocou uma possibilidade de converter em boa a má realidade existente. Não foi êle quem produziu o dano e, por isso, não lhe pode ser este imputado. A reprovação recai exclusivamente sobre a inércia contrária ao dever. E é em tal inércia que reside o delito.“ (JOÃO BERNARDINO GONZAGA, Crimes comissivos por omissão , in Estudos de Direito e Processo Penal, em homenagem a Nelson Hungria, 1ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1962, pág. 251) Tem sido iterativa a orientação desta Corte, no sentido de que não é inepta a denúncia que, conquanto não individualize a conduta de cada um dos imputados, em hipótese de crime marcado por pluralidade de agentes societários, permita perfeita compreensão da imputação e abre oportunidade à ampla defesa. A propósito, recolho o seguinte precedente, cuja ementa transcrevo, naquilo que é pertinente: “CRIMINAL. SONEGAÇÃO FISCAL. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA. CRIME COLETIVO E SOCIETÁRIO. IMPUTAÇÃO GENÉRICA. INÉPCIA DA ACUSATÓRIA INICIAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. 1. Em faltando à Acusação Pública, no ensejo do oferecimento da denúncia, elementos bastantes ao rigoroso atendimento do seu estatuto formal (Código de Processo Penal, artigo 41), principalmente no caso de crime societário, é válida a imputação genérica do fato-crime, admitindo, como admite, a lei processual penal que as omissões da acusatória inicial possam ser supridas a todo tempo, antes da sentença final (Código de Processo Penal, artigo 569). 2. Não há falar em inépcia quando a denúncia se mostra ajustada à norma inserta no artigo 41 do Código de Processo Penal, estatuto de sua validade. 3. Enquanto requisita o exame do conjunto da prova, próprio do tempo da sentença, a alegação de atipicidade da conduta, por ausência de dolo, faz-se incompatível com a via estreita do habeas corpus. 4. Recurso conhecido e provido.“ REsp 260.243/DF, Relator o Min. Hamilton Carvalhido, DJ de 27.07.2001, pág. 423) “CRIMINAL. HC. ESTELIONATO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. FALHAS NÃO-VISLUMBRADAS. POSSIBILIDADE DE DENÚNCIA GENÉRICA. INQUÉRITO POLICIAL. PRESCINDIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE PROVAS DA MORTE DO SEGURADO. IMPROPRIEDADE DO MEIO ELEITO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA NÃO-EVIDENCIADA DE PLANO. ORDEM DENEGADA. Eventual inépcia da denúncia só pode ser acolhida quando demonstrada inequívoca deficiência a impedir a compreensão da acusação, em flagrante prejuízo à defesa dos acusados, ou na ocorrência de qualquer das falhas apontadas no art. 43 do CPP – o que não se vislumbra in casu. Tratando-se de crimes societários, de difícil individualização da conduta de cada participante, admite-se a denúncia de forma mais ou menos genérica, por interpretação pretoriana do art. 41 do CPP. Precedentes. Omissis.“ (HC 19.558/RJ, Relator o Min. Gilson Dipp, DJ de 01.07.2002, pág. 363) “PENAL E PROCESSUAL. DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA. DOLO. AUSÊNCIA. DENÚNCIA. INÉPCIA. MATÉRIA PROBATÓRIA. Desborda do habeas corpus o exame da existência ou não de dolo direto para configurar o tipo previsto no artigo 339 do Código Penal, porque demanda dilação probatória. O trancamento da ação penal só é possível, na via eleita, quando evidentes, pela simples leitura dos autos, a atipicidade da conduta e/ou a inocência do acusado. Recurso a que se nega provimento.“ RHC 13.079/PB, Relator o Min. Paulo Medina, DJ de 15.09.2003, pág. 402) Assim, afasto a argüição de inépcia da inicial e passo ao fundamento seguinte, atinente à ausência de justa causa em face da ilegitimidade passiva ad causam. Consta da petição inicial de habeas corpus originário, que o impetrante declara ser parte integrante desta impetração, que a Clínica dispunha de um corpo diretivo hierarquizado, do qual o paciente não fazia parte (fls. 28/30). Neste raciocínio, o principal argumento transfere para o médico que exercia a função de Diretor Técnico da Clínica a responsabilidade pelo evento porque o paciente (fl. 7) “... nunca teve pessoalmente atribuições de autoridade , guarda ou vigilância tendo em vista os doentes internados, como também, comprovadamente, não atuava como médico no nosocômio, como importa à denúncia: portanto, era e é pessoa absolutamente estranha ao cometimento da infração penal que se pretende delineada na sua narrativa.“ O impetrante reitera: “... o paciente – repitamos – representante de empresa familiar, detentora de metade das cotas da sociedade, praticamente, não ia na clínica, tanto que constituiu um procurador para representá-lo na parte administrativa, sendo que ele, o procurador ad negotia , também está denunciado.“ Refere resoluções dos Conselhos Federal e Estadual de Medicina para remeter a responsabilidade principal ao Diretor Técnico-Médico e, num plano mais específico, sobre o médico assistente de cada doente e infere que o paciente nunca teve o dever de agir na Clínica Santa Genoveva (fls. 8/9) e 77), verbis: “Ora, cuidando-se de internações em dependência hospitalar, ocorrência que, pela sua própria natureza, está sujeita às regras de legislação específica, ela indica o médico diretor técnico como principal responsável pelo funcionamento desses estabelecimentos de saúde, o qual, terá, obrigatoriamente , sob sua alçada, todos os serviços técnicos e de apoio, que a ele ficam subordinados hierarquicamente .“ A meu sentir, ao tempo em que se equivoca, o impetrante elucida. Em primeiro lugar porque, ao contrário do que assevera, o paciente, a par de proprietário, estava encarregado da gerência da Clínica Santa Genoveva, conforme prevê a cláusula quinta do contrato social, in verbis (fl. 199): “QUINTA : DA GERÊNCIA E ADMINISTRAÇÃO DA SOCIEDADE A gerência e administração da sociedade serão exercidas pelos sócios EDUARDO QUADROS SPÍNOLA, MARIA TEREZA VELLOSO SPÍNOLA e por delegação de poderes da sócia M.J.M. PARTICIPAÇÕES LTDA., MANSUR JOSÉ MANSUR, os quais ficam dispensados de prestarem caução para o exercício de suas funções. § PRIMEIRO : A escolha, admissão e demissão dos auxiliares, técnicos e empregados, depende da aprovação dos gerentes incumbidos da administração da sociedade.“ Assim, consoante as normas de natureza civil que vinculam o paciente, como sócio-cotista, perante a sociedade e terceiros, cabia a ele e aos demais gerentes diligenciar no sentido da consecução dos objetivos da empresa que, no caso da clínica, é a prestação de serviços médicos hospitalares (cláusula segunda do contrato social, pág. 198). Neste passo, incumbia-lhe escolher, admitir e demitir técnicos e empregados, aí incluído, por óbvio, o médico encarregado de exercer as funções de Diretor Técnico, a quem se atribui, na impetração, em primeiro plano, toda a responsabilidade penal. É dizer, competia-lhe evitar o resultado danoso que ocorreu em sua Clínica. Contudo, assim não agiu, como se vê da argumentação deduzida às fls. 69, in verbis: “De longa data, o paciente não trabalhava nas empresas de que era proprietário, porque impossível dar a todas a indispensável atenção e, na verdade, passou a preocupar-se, exclusivamente, com a representação da entidade nacional de classe, a FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE HOSPITAIS, da qual foi Vice-Presidente, desde 1969 e, no ano de 1995, eleito Presidente para o biênio 1995/1997, sem falar na sua profícua e assídua presença no CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, Órgão do MINISTÉRIO DE ESTADO DA SAÚDE, que ditava a política governamental no setor.“ No que concerne à responsabilidade penal, capaz de inserir o paciente no polo passivo da lide, dispõe o art. 13, § 2º, do Código Penal que o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa e, quanto à omissão, determina que ela é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. Ora, a própria argumentação do impetrante, ao reiterar que o paciente não compareceu à clínica por mais do que 10 (dez) vezes em todo o tempo que funcionou (fl. 113) remete, em tese, à omissão sancionada pelo tipo, uma vez o dever de agir incumbe a quem tenha, por lei, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância ou, de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado. Ainda mais, ao consignar que o paciente preferiu dedicar-se exclusivamente a outras atividades, sem entretanto desvencilhar-se da responsabilidade de administrador da clínica, inseriu sua conduta no que dispõe o art. 13, § 2º, alínea “c“ do Código Penal, porquanto, com seu comportamento anterior, terá criado o risco da ocorrência do resultado. Nos próprios termos da impetração (fl. 82), “A maior evidência de que passava quase toda a semana em Brasília, foi a aquisição de 1 (um) flat na Capital Federal: AS/S, quadra 05, bloco c, isso em 1989. Eis aí: nem se o dia tivesse 96 (noventa e seis) horas o paciente conseguiria controlar, através de sua presença, todos os seus negócios e afazeres .“ (grifei) Em segundo lugar, porque as normas referenciadas declaram o Diretor Técnico como principal e não como único responsável por estabelecimentos hospitalares. De certo, é lícito ao sócio-cotista e ao administrador outorgar mandato a terceiro, como o fez o paciente, porque (fl. 71) “Devido às suas outras ocupações, que o impossibilitavam estar comparecendo na clínica e nas várias empresas em que, também, era cotista, o paciente constituiu , em conjunto com outro proprietário, para atuar na administração do estabelecimento, terceiro representante, o co-denunciado VALFREDO COSTA DE OLIVEIRA, (...)“ No entanto, não está livre de sua obrigação legal, como proprietário e gerente da empresa, em prover os meios necessários à assistência médica e hospitalar contratada, isto é, toda forma de auxílio ou socorro adequado. Cabe lembrar, a propósito, o que ensina Mirabete, relembrando Hungria: “O crime de maus-tratos é um delito próprio, exigindo como pressuposto a existência de relação jurídica preexistente entre os sujeitos ativo e passivo. Só quem tem essa legitimação especial, de autoridade (pública ou privada) ou de titular de guarda ou vigilância, pode cometer o crime. É insuperável a lição de Hungria: [...]Tratamento abrange não só o emprego de meios e cuidados no sentido da cura de moléstias, como o fato continuado de prover a subsistência de uma pessoa. [...] Finalmente, custódia deve ser entendida em sentido estrito: refere-se à detenção de uma pessoa para fim autorizado em lei.“ (JÚLIO FABBRINI MIRABETE, Manual de Direito Penal, Parte Especial, 21ª edição, São Paulo, Atlas, 2003, pág. 142) Transcrevo, porque oportuno, o convencimento da Corte Estadual a respeito (fl. 1147): “Ora, no caso, tanto o paciente, como o litisconsorte, responsáveis diretos pelo funcionamento da clínica, sobretudo o que lá ocorria e era desenvolvido, exerciam efetivo poder de gerência, sobretudo realçada a condição de médicos que, por dever de ofício, deveriam zelar, na totalidade dos atendimentos, pelo controle e qualidade do serviço médico prestado na clínica, daí, contrariamente do sustentado na impetração, não haver nenhum óbice para que eles possam integrar a relação processual penal deflagrada no polo passivo, tendo em vista mesmo o modelo da clínica de “hospice“ , que tinha por objetivo receber doentes fora dos recursos de cura, portanto poder-se-ia denominá-la de clínica para morrer. A responsabilidade deles estava presa ao todo da clínica, não apenas aos lucros, no âmbito administrativo. Afirmada a legitimidade do paciente, remeter a responsabilidade ao Diretor Técnico da Clínica, de modo a excluí-lo da lide, como faz o impetrante, não logra êxito, porquanto comprovada a relação jurídica de dependência entre o Dr. Mansur – proprietário e gerente da clínica – e os doentes ali internados. Afasto, pois, a alegação de ilegitimidade passiva ad causam. Por fim, conquanto muito bem articulados, não há como examinar os argumentos tendentes à exclusão do crime, com base em contra-prova oferecida pelo impetrante, uma vez que tal procedimento desborda da via eleita, marcada por rito célere e conseqüente cognição sumária. A ação penal, ainda em curso, já em fase de alegações finais, constitui o meio adequado à solução da controvérsia, possibilitando às partes, por intermédio do exercício amplo do contraditório, afirmar e reafirmar suas teses, para submetê-las ao convencimento do julgador. É assente a jurisprudência do STJ quanto à impropriedade do habeas corpus para o deslinde de questões que demandem exame aprofundado do conjunto fático-probatório dos autos. Neste particular, confira-se: “HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE ASSOCIAÇÃO AO TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. CONDENAÇÃO EM GRAU DE APELAÇÃO. CONJUNTO PROBATÓRIO CONTROVERSO. DILAÇÃO PROBATÓRIA. EXAME. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STJ. 1. No âmbito do habeas corpus, não há como proceder ao exame da alegação de que as provas dos autos não seriam suficientes para embasar a condenação do paciente, em razão da necessidade de dilação do conjunto fático-probatório. Precedentes do STJ. 2. Ordem denegada.“ (HC 30.962/RJ, Relator a Min. Laurita Vaz, DJ de 05.04.2004, pág. 293) Uma vez declarada a extinção da punibilidade, pela prescrição da pretensão punitiva, do crime tipificado no art. 269 do Código Penal, não vislumbro, quanto ao mais, qualquer constrangimento ilegal, passível de correção. Posto isso, DENEGO a ordem.

 
VOTO - O EXMO. SR. MINISTRO NILSON NAVES:
Sr. Presidente, parece-me que o bom fundamento do habeas corpus está na alegação da inépcia da denúncia. Cheguei a pensar em ter vista dos autos, mas minha preocupação afastou-se no desenrolar do julgamento. Todos sabemos que, podendo ser sintética, a denúncia não pode, todavia, ser vaga, imprecisa ou omissa. Todos também sabemos que, no concurso de pessoas, a denúncia há de descrever a conduta dos participantes. Sucede, porém, que, no caso presente, tal como expôs o Relator, e muito bem, a denúncia alcança os requisitos dela exigidos pela lei processual. Ademais, a meu ver, pareceu estranho que a mencionada alegação tenha vindo aos tribunais depois de passado bom tempo do oferecimento e recebimento da denúncia. A mim também me parece, tal como sucedeu ao Relator, que a questão há de ser vista no julgamento de mérito da ação penal – a ação já se encontra nas alegações finais e quase que pronta para receber sentença. Não obstante todo o esforço do ilustre advogado e a despeito do excelente parecer que foi oferecido, rejeito a alegação de inépcia e, quanto ao mais, não tenho dúvida alguma em acompanhar o Relator. Denego a ordem de habeas corpus.

 
VOTO - O SENHOR MINISTRO PAULO GALLOTTI (PRESIDENTE):
Senhores Ministros, da mesma forma, também acompanho o voto do Ministro Relator, entendendo que a denúncia é suficientemente clara para permitir à defesa o seu pleno exercício, acentuando no ponto que ela imputa aos denunciados, entre os quais o paciente, uma série de delitos, porque, na qualidade de administradores da clínica, “unidos em comunhão de ações e desígnios, consciente e voluntariamente“, expuseram a perigo a vida e a saúde de um elenco de pessoas cujos nomes são declinados. Ora, o tipo é “expor a perigo a vida e a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina.“ Assim, se, efetivamente, como afirmado na impetração e da tribuna, não teria, o paciente, nenhuma participação no ocorrido, haverá certamente de provar ao fim e ao cabo da instrução, que, como disse o Ministro Nilson Naves, já se avizinha. A circunstância de ser sócio da empresa, mas também administrador, autorizava, a meu ver, que respondesse pela ação penal de que se cuida. Denego a ordem de habeas corpus.
EMENTA -
PENAL E PROCESSUAL. MAUS TRATOS. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. DENÚNCIA. NEXO DE CAUSALIDADE. INÉPCIA. JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA. AÇÃO PENAL. TRANCAMENTO. Ao sócio que exerce a gerência de sociedade por cotas de responsabilidade limitada, dedicada à exploração, com fins lucrativos, de clínica médica, é cabível a imputação de autoria do delito tipificado no art. 136 do Código Penal. Não é inepta a denúncia que descreve adequadamente a conduta incriminada, ainda que não detalhada individualmente, se é possível ao denunciado compreender os limites da acusação e, em contrapartida, exercer ampla defesa. O nexo causal que resulta da omissão é de natureza normativa e não naturalística, de sorte que a omissão é erigida pelo Direito como causa do resultado porque quem tem o dever legal de evitá-lo, não o faz. Incabível, em habeas corpus, o exame de questões inerentes à comprovação da materialidade do crime, quando o deslinde da questão demande dilação probatória. Ordem denegada.
 
ACÓRDÃO -
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEXTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Nilson Naves, Hamilton Carvalhido e Paulo Gallotti votaram com o Sr. Ministro Relator. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Hamilton Carvalhido. Sustentou oralmente o Dr. Antônio Carlos de Almeida Castro pelo paciente. Brasília (DF), 1º de junho de 2004 (Data do Julgamento).

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