Peculato. Trancamento da ação penal. Atipicidade. Princípio da insignificância. Bem jurídico tutelado: a administração pública. Inaplicabilidade. Ordem denegada.
Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa
RELATÓRIO - O EXMO. SR. MINISTRO HÉLIO QUAGLIA BARBOSA (Relator): Cuida- se de habeas corpus, substitutivo de recurso ordinário, com pedido liminar, impetrado em favor de CLÁUDIA LÚCIA PAES DE SOUZA, contra acórdão proferido pela Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Narra a impetração que em poder da paciente, funcionária do Metrô da cidade de Recife (PE), foram apreendidos setenta bilhetes integração Ônibus/Metrô, repassando-os para terceira pessoa, para serem vendidos ao público. Restou, pelos fatos, denunciada por infração ao artigo 312 c/c artigos 327 e 29, todos do Código Penal. Pugna ver reconhecida a atipicidade da conduta praticada, na medida em que incidente, na hipótese, o princípio da insignificância, haja vista o reduzido valor dos bens irregularmente apropriados (à época, em torno de R$ 60,00). Pretende o trancamento definitivo da ação penal em curso, por ausência de justa causa. Liminar indeferida (fl. 40) e informações prestadas (fls. 61/66). O Ministério Público Federal opina pela denegação da ordem. É o relatório.
VOTO - O EXMO. SR. MINISTRO HÉLIO QUAGLIA BARBOSA (Relator): 1. A ordem não merece ser concedida. 2. Confira-se a denúncia (fl. 17): “No dia 05 de abril de 2004, por volta das 14:30 horas, na estação Werneck do Metrô, Policiais Ferroviários e Fiscais da Receita do Metrorec, nesta Cidade, apreenderam em poder do denunciado 70 bilhetes Integração Ônibus/Metrorec, Tipo A, que estavam com ele irregularmente e seriam vendidos posteriormente aos usuários. Os bilhetes pertenciam ao Metrorec (empresa Pública) e foram entregues ao denunciado pela denunciada Cláudia Lúcia Paes de Souza, que na condição de funcionária do Metrô, Assistente de Estação, se apropriou indevidamente dos bilhetes que tinha posse e os repassou para o denunciado, que é prestador de serviço na mesma empresa, exercendo a função de Bilheteiro, o qual venderia aos usuários e ratearia o lucro com a denunciada, como antes combinado por ambos. Destaque-se que o denunciado orientado e em comum acordo com a denunciada, rasurou as numerações de parte dos bilhetes, objetivando a não identificação da origem. O denunciado foi preso, autuado em flagrante e o produto do crime apreendido, conforme auto de apresentação e apreensão de fls. 10 dos autos.“ 3. Incabível a aplicação do princípio da insignificância pela quantidade de bilhetes apreendidos, isto é, setenta. Em que pese o entendimento desta Corte sobre a aplicabilidade do princípio da insignificância, ressalta-se que não é a mera aferição do valor ou quantidade de bem material que permite sua utilização, mas a conjugação de requisitos objetivo e subjetivo. O princípio da insignificância, como derivação necessária do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, busca afastar da respectiva seara as condutas que, embora típicas, não produzam efetiva lesão ao bem jurídico protegido pela norma penal incriminadora. Claus Roxin, a quem se atribui a formulação do princípio, afirma que sua aplicação permite excluir, logo de plano, “lesões de bagatela da maioria dos tipos“ e que, juntamente com o princípio da adequação social (que para Hans Welzel traduz-se em condutas que, se não necessariamente exemplares, se mantêm dentro dos limites da liberdade de atuação social), atuam no sentido de se proceder a uma correta e restritiva interpretação dos tipos penais, realizando “a 'natureza fragmentária' do direito penal“ e mantendo íntegro “o campo de punibilidade indispensável para a proteção do bem jurídico“ (CLAUS ROXIN in Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 47). Esta é a lição da doutrina de Rogério Greco: “(...) o princípio da insignificância, introduzido por Claus Roxin, tem por finalidade auxiliar o intérprete quando da análise do tipo penal, para fazer excluir do âmbito de incidência da lei aquelas infrações consideradas como de bagatela“. (in Direito Penal - Lições, Ed. Impetus, 2000, pág. 68) De seu turno, a sempre firme orientação de Francisco de Assis Toledo: “segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai aonde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas“ (in Princípios básicos de direito penal, Ed. Saraiva, 1994,pág. 133) E os ensinamentos de Carlos Vico Mañas: “Ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica social. Todavia, não dispõe de meios para evitar também sejam alcançados os casos leves. O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações desta espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático político-criminal da expressão da regra constitucional do nullum crime sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentada do direito penal.“ (in O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal, Ed. Saraiva, 1994, pág. 56) O em. Ministro Celso de Mello, em recente decisão (Informativo de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal n.º 354), delimitou os requisitos necessários à aplicação do princípio da insignificância, cujas lições peço venia para reproduzir: “O princípio da insignificância - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal. Isso significa, pois, que o sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.“ (HC 84.412, STF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, decisão publicada no DJU de 2/8/2004) Trata-se, na hipótese, de crime em que o bem jurídico tutelado é a Administração Pública, tornando irrelevante considerar a apreensão de 70 bilhetes de metrô, com vista a desqualificar a conduta, pois o valor do resultado não se mostra desprezível, porquanto a norma busca resguardar não somente o aspecto patrimonial, mas moral da Administração. Dessarte, a conduta da denunciada revelou a quebra do dever de fidelidade para com a Administração Pública, sendo, assim, incabível aplicar o princípio da insignificância, ante o desvalor da conduta que lesou o dever de probidade do funcionário público. 4. Diante o exposto, DENEGO a ordem pretendida. É como voto.
EMENTA - HABEAS CORPUS . PECULATO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL: ATIPICIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. BEM JURÍDICO TUTELADO: A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. INAPLICABILIDADE. ORDEM DENEGADA. 1. A missão do Direito Penal moderno consiste em tutelar os bens jurídicos mais relevantes. Em decorrência disso, a intervenção penal deve ter o caráter fragmentário, protegendo apenas os bens jurídicos mais importantes e em casos de lesões de maior gravidade. 2. O princípio da insignificância, como derivação necessária do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, busca afastar de sua seara as condutas que, embora típicas, não produzam efetiva lesão ao bem jurídico protegido pela norma penal incriminadora. 3. Trata-se, na hipótese, de crime em que o bem jurídico tutelado é a Administração Pública, tornando irrelevante considerar a apreensão de 70 bilhetes de metrô, com vista a desqualificar a conduta, pois o valor do resultado não se mostra desprezível, porquanto a norma busca resguardar não somente o aspecto patrimonial, mas moral da Administração. 4. Ordem denegada.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos, em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEXTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, denegar a ordem de habeas corpus , nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Hamilton Carvalhido, Paulo Gallotti e Paulo Medina votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, ocasionalmente, o Sr. Ministro Nilson Naves. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Paulo Gallotti. Brasília (DF), 04 de abril de 2006.
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