Falsidade ideológica. Imposto de renda. Débito tributário. Sujeito passivo. Dolo específico. Denúncia.
Rel. Min. Nilson Naves
RELATÓRIO - O EXMO. SR. MINISTRO NILSON NAVES: Segundo a conclusão da denúncia, fundada no art. 299 do Cód. Penal e apresentada ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, a denunciada “inseriu declaração falsa – disponibilidade em caixa nas DIRPF de 1997, 1998, 1999 e 2000 – tudo para aumentar o caixa disponível, possibilitando assim dar lastro à transação imobiliária em curso, vez que seu pai não poderia declarar totalmente as fontes de recursos utilizados no pagamento do preço do imóvel adquirido, sem risco de, ao menos, uma ação fiscal“. Está escrito na denúncia o seguinte (no tópico “Das condutas delituosas“): “8. A vinda para estes autos das cópias dos cheques dados em pagamento do imóvel adquirido pela acusada Kyu Soon Lee e seus familiares, esclareceu cabalmente a verdadeira origem dos recursos monetários os quais, ressalte-se mais uma vez, jamais fizeram parte de seu patrimônio, apesar da tentativa de Ihes dar suporte fático e legal via inserção de falsas declarações nas retificadoras entregues à Receita Federal, no mesmo mês da compra do imóvel aqui apontado. A acusada declarou que pagou a sua parte naquela transação com moeda em espécie, que mantinha guardada em casa, valor aquele que teria esquecido de lançar em suas declarações à Receita Federal, em exercícios anteriores. Tal linha de argumentação fica invalidada com a descoberta da forma pela qual se deu quitação do preço de compra do imóvel. Com efeito, soa estranho e contraditório que alguém detendo recursos em espécie, seja em moeda nacional e/ou estrangeira, troque-os por cheques de terceiros, nos mais variados valores. Ainda que pudesse ter em seu poder o montante em espécie, e ainda que alegue que tenha com esses recursos saldado a sua parte, tal valor não apareceu entre os depósitos em dinheiro, constantes da relação dos cheques dados em quitação do preço do imóvel em questão. Do documento de fls. 1.451/1.459, os depósitos em dinheiro se deram nos seguintes valores: • 15/3/2001 - R$ 33.000,00 • 16/3/2001 - R$ 17.500,00 • 10/5/2001 - R$ 2.000,00 • 11/5/2001 - R$ 15.500,00 Total: R$ 68.000,00 De fato, a acusada emitiu alguns cheques à Prevê Prédios Ltda., (cópia dos cheques às fls. 1.187; 1.189; 1.191) nos valores de R$ 3.300,00; R$ 1.100,00 e R$ 9.700,00, num total de R$ 16.100,00 (dezesseis mil e cem reais). Admitindo-se que os valores depositados em dinheiro, ou seja, R$ 68.000,00 (sessenta e oito mil reais) façam parte dos recursos que a acusada diz que costumava guardar em casa, acrescidos os valores em cheques de emissão da mesma acusada, num montante de R$ 16.100,00 (dezesseis mil e cem reais) ter-se-ia um total de R$ 84.100,00 (oitenta e quatro mil e cem reais). A toda evidência, ainda restaria apurar de onde teriam vindo os R$ 265.900,00 (duzentos e sessenta e cinco mil, e novecentos reais) para formar o valor de R$ 350.000,00 (trezentos e cinqüenta mil reais), que corresponderia à parte paga pela acusada, em cheques e em espécie, conforme por ela mesma declarado em várias oportunidades. Flagrante está que as declarações inseridas pela acusada em suas retificadoras das Declarações de Ajuste Anual, bem como o afirmado perante a D. Relatora, em cotejo com os elementos trazidos a estes autos, vem infirmar os documentos apresentados à autoridade fiscal no curso do procedimento fiscal. Não se sustentam as retificadoras de suas declarações de ajuste anual, apresentadas para os exercícios imediatamente anteriores ao da aquisição do imóvel já mencionado. O expediente do qual lançou mão a acusada, de inserir declarações falsas nas retificadoras de várias declarações de exercícios anteriores, todas para a inclusão de valores em moeda, o que teria esquecido de declarar ao tempo próprio, explica-se pela necessidade de demonstrar a existência de lastro anteriormente ao ato de compra do imóvel. Até a descoberta da forma de pagamento do valor de compra do imóvel em questão, poderia vigorar a presunção legal que orientou o fisco na autuação, da aqui acusada, por acréscimo patrimonial a descoberto. Ou seja, o fisco presumiu que a acusada já dispunha, à época das declarações anuais, daqueles valores patrimoniais, todavia deixara de declará-Ios na oportunidade própria com vista, hipoteticamente, ao recolhimento de imposto a menor. Mas não era este o objetivo. Assim é que, para o ano base de 2001 - ano da aquisição do imóvel -, a auditoria fiscal da Receita Federal concluiu que a acusada teria tido, naquele período, acréscimo patrimonial a descoberto no valor de R$ 330.200,87 (trezentos e trinta mil, duzentos e oitenta e sete centavos) (sic). Todavia, esclarecida a forma de pagamento do imóvel, ficou evidente que os recursos monetários expendidos em maio de 2001 não se encontravam, antes daquela data, na livre disposição da acusada. Se assim se desse, qual a razão de trocar papel moeda por títulos de crédito de terceiros, cuja liquidez não era certa? Considerando que os cheques dados em pagamento do preço de aquisição do imóvel estão a indicar terem sido recebidos pelo pai da acusada, sr. Gong Sup Lee, cuja atividade não está esclarecida, havendo fortes indícios de operações de agiotagem e/ou factoring ; considerando que a alienação do imóvel integrava patrimônio de instituição financeira (Banco Mercantil de São Paulo) em vias de ser incorporada a outro banco (Banco Brasileiro de Descontos - BRADESCO), exigindo maiores cuidados na sua escrituração, ou seja deveria estar corretamente documentada, de sorte a constar da escritura o valor total da compra - R$ 1.310.000,00 (um milhão, trezentos e dez mil) -; considerando, também, ser obrigatória a comunicação desse tipo de operação à Receita Federal, está claro que figurando o pai da acusada como único adquirente do bem, sua situação estaria sendo colocada em dificuldades. Cumpre relembrar que a autoridade fiscal representante havia informado, naquele momento, que o genitor da acusada havia declarado a existência de aplicações financeiras no Banco Bradesco (fls. 59, 62, 64, 66) sem que constasse do sistema da Receita Federal a retenção da CPMF até o ano de 2000. Assim sendo, a forma encontrada para alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante - não possuir lastro para a compra - foi a inserção de declaração falsa nas suas retificadoras das declarações de ajuste anual dos exercícios anteriores à aquisição do imóvel, que se aperfeiçoou em maio de 2001, e apresentadas pela acusada à Receita Federal em abril do mesmo ano. 9. A bem da verdade, a acusada não procurou omitir informação para suprimir ou reduzir tributo à época de suas declarações anuais à Receita Federal. Ressalte-se que as retificadoras foram todas apresentadas no mês de abril de 2001, dias antes da apresentação da declaração relativa ao ano base de 2000, e no mês que antecedeu a formalização da aquisição do imóvel, o que se deu em 31/5/2001. Por não deter, realmente, recursos necessários para o dispêndio de R$ 350.000,00 (trezentos e cinqüenta mil), a acusada se valeu do artifício das retificadoras para a eventualidade de uma auditoria fiscal da Receita Federal ser feita em relação à sua própria situação fiscal e/ou em relação a de seu pai.“ E o Tribunal Regional recebeu a denúncia por acórdão de 30.6.05, assim ementado: “Penal - Processual Penal - Falsidade ideológica – Declaração retificadora de imposto de renda sujeita à verificação complexa e futura – Documento hábil - Recebimento de denúncia - Divergência de entendimento entre o juízo e o Ministério Público Federal acerca da suspensão condicional do processo prevista no artigo 89, da Lei 9099/95 - Remessa ao Procurador-Geral da República por analogia ao art. 28 do CPP – Não cabimento - Afastamento da denunciada do cargo de magistrada - Impossibilidade diante da ausência do requisito objetivo previsto no art. 29 da LOMAN. I - A declaração do imposto de renda, bem como a respectiva retificadora, constitui documento hábil à configuração do crime de falsidade ideológica, porquanto, embora sujeito à verificação, esta é complexa e futura. II - Presente a justa causa para ser processada a ação penal, cabível é o recebimento da denúncia. III - Diante da dissensão entre o entendimento do Relator e o Ministério Público Federal acerca da possibilidade de suspensão condicional do processo, previsto no artigo 89, da Lei 9099/95, inaplicável por analogia o disposto no artigo 28, do Código de Processo Penal. IV - Rejeitadas as preliminares e recebida a denúncia. V - Afastamento do cargo de magistrada não determinado em virtude da ausência do requisito objetivo previsto no artigo 29, da LOMAN.“ Neste habeas corpus, datado de 25.4.06, os impetrantes, em conclusão, alegam e pedem o seguinte: “Os impetrantes já demonstraram à saciedade que a paciente sofre inaceitável constrangimento ilegal, imposto pelo ato coator, que recebeu denúncia que a ela imputa a prática de fatos que se mostram atípicos. A continuidade da ação penal instaurada – inclusive com a realização de interrogatório, designado a jato para hoje – causará à paciente danos irreparáveis, diminuindo, assim, a eficácia da ordem pleiteada, caso ela venha, e é o que se espera, a ser concedida pela Turma Julgadora. Acham-se, então, presentes os requisitos necessários à concessão da medida liminar, que aqui se requer por sua imprescindibilidade. O fumus boni juris está exposto acima, ao longo de toda a fundamentação do pedido. Com efeito, não estão os impetrantes a postular o acolhimento de tese inédita, mas pedem a reiteração de pronunciamentos a que já se acostumaram as Cortes, no sentido de reconhecer e proclamar, em sede de habeas corpus , a falta de justa causa em situações como a presente. O periculum in mora é formado pela manutenção do curso de ação penal carente de justa causa, inclusive com a realização de interrogatório da paciente; é a lesão ao status libertatis que se procura sanar com o pedido de concessão afinal da ordem, e é a proteção ao status dignitatis que se busca com a liminar ora requerida. Por todas essas razões, enfim, aguardam os impetrantes que V. Exa., reconhecendo a ocorrência de prejuízo irreparável à paciente, caso seja mantido o curso da ação penal, conceda a liminar aqui requerida, para suspendê-la até que este mandamus seja julgado, quando, então, haverá de se tornar definitiva a cautelar agora deferida. Os fatos acima narrados, certamente, haverão de ser suficientes para levar esse E. Tribunal a se convencer de que a ação penal instaurada contra a Dra. Kyu Soon Lee não pode prosperar, porque carente de justa causa; dir-se-ia, mesmo, carente bom senso. O Direito, é certo, não ampara o abuso; antes o repele. Por isso, estão certos os impetrantes de que V. Exas., da leitura de todos os elementos aqui trazidos, haverão de pôr cobro a tanta violência, e concederão, assim, a ordem pleiteada, para trancar a ação penal e fazer cessar o injusto sofrimento a que está submetida a paciente.“ Deferi a liminar (4.5.06): “Tal o pedido feito, defiro a liminar para suspender, até o julgamento final deste habeas corpus, a Ação Penal nº 2002.03.00.018865-2 do Tribunal Regional Federal 3ª Região.“ Parecer ministerial assim ementado: “Penal. Processual Penal. Paciente, juíza federal, que teve contra si recebida denúncia por suposta infração ao art. 299 do Código Penal ao fundamento de ter, básica e alegadamente, feito declaração falsa ao fisco, através de sucessivas declarações retificadoras do IRPF, com intenção de alterar a verdade sobre fato relevante. Pleito de trancamento da ação penal ao fundamento de atipicidade da conduta, uma vez que as ditas declarações retificadoras, por não 'valerem por si sós', mas dependerem de verificação posterior pela autoridade fazendária, não se amoldam ao conceito de 'documento', hábil à configuração do delito do art. 299 do Código Penal. Ocorrência, in casu, de verificação 'complexa' acerca dos fatos declarados nas retificadoras em testilha que, ao menos num primeiro momento e na restrita esfera de cognição do writ não se mostra, primus ictu oculi, atípica, e justamente em razão disso, exige o mergulho profundo em matéria controversa de prova, inconciliável com a via eleita. Alegação, ainda, de inexistência de comprovação do dolo específico que, igualmente, não pode ser objeto de debate e desate na via do mandamus , por implicar em mergulho profundo no material fático-probatório. O parecer é pela denegação da ordem.“ Conclusos em 28.8.06. É o relatório.
VOTO - O EXMO. SR. MINISTRO NILSON NAVES (RELATOR): Srs. Ministros, quero crer tenha o relatório, com alguns tópicos da denúncia declinados por mim, transmitido boa, se não razoável, compreensão da controvérsia que nos veio por meio destes autos de habeas corpus. Atentem, mais, Srs. Ministros, para a circunstância de se tratar de acusação fundada no art. 299 do Cód. Penal: “Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.“ Eis, pois, agora, dois tópicos do longo acórdão do Tribunal Regional, da relatoria de Cecília Marcondes: “... escora-se o Ministério Público Federal no fato de ter a Juíza Federal feito inserir em retificadoras do imposto de renda, disponibilidade de caixa, em moeda nacional e estrangeira, além de jóias. Tais informações, no dizer do Ministério Público Federal, seriam falsas, e teriam sido lançadas com o objetivo de dar lastro à aquisição, juntamente com seu pai e seu irmão, do imóvel localizado no bairro do Bom Retiro, realizada no mesmo período das retificadoras. Anoto que, a princípio, as investigações haviam sido encetadas com o escopo de apurar eventual crime contra a ordem tributária. Afastada esta hipótese, diante do fato de que as retificadoras não teriam o efeito de suprimir ou reduzir valor de tributos, aponta o Ministério Público Federal para o crime de falsidade ideológica.“ O que vem alegando a defesa, e foi o que o Tribunal Regional rejeitou, é a falta de justa causa para a ação penal – ação, como vimos de ver, fundada no art. 299. Há dois pontos aqui suscitados e aqui discutidos, ambos em torno do imposto de renda da paciente – declarações e retificações; confundem-se, a meu ver. Vejam esta passagem do acórdão de origem: “Superada a questão relativa à possibilidade de caracterização do crime capitulado no artigo 299, do Código Penal, em virtude de eventual informação falsa prestada em declaração retificadora de imposto de renda, resta analisar se, no caso em testilha, foram inseridas informações falsas nas retificadoras e, se positivo, houve potencialidade lesiva.“ Destaco: “... se (...) foram inseridas informações falsas nas retificadoras e, se positivo, houve potencialidade lesiva.“ E, tornando então à denúncia, dela recolho o seguinte: “Flagrante está que as declarações inseridas pela acusada em suas retificadoras das Declarações de Ajuste Anual, bem como o afirmado perante a D. Relatora, em cotejo com os elementos trazidos a estes autos, vem infirmar os documentos apresentados à autoridade fiscal no curso do procedimento fiscal. Não se sustentam as retificadoras de suas declarações de ajuste anual, apresentadas para os exercícios imediatamente anteriores ao da aquisição do imóvel já mencionado. O expediente do qual lançou mão a acusada, de inserir declarações falsas nas retificadoras de várias declarações de exercícios anteriores, todas para a inclusão de valores em moeda, o que teria esquecido de declarar ao tempo próprio, explica-se pela necessidade de demonstrar a existência de lastro anteriormente ao ato de compra do imóvel. Assim sendo, a forma encontrada para alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante – não possuir lastro para a compra – foi a inserção de declaração falsa nas suas retificadoras das declarações de ajuste anual dos exercícios anteriores à aquisição do imóvel, que se aperfeiçoou em maio de 2001, e apresentadas pela acusada à Receita Federal em abril do mesmo ano.“ Confiramos a defesa (petição inicial deste habeas corpus): “... a própria Receita, ao lavrar auto de infração contra a Dra. Kyu, não vislumbrou nenhum indício de fraude, tanto que aplicou a multa correspondente aos casos em que se verifica simples erro por parte do contribuinte, sem intenção de lesar o Fisco. Não teria, portanto, o Ministério Público Federal como sustentar a caracterização de crime tributário, pois se o fizesse teria de enfrentar o entendimento contrário do próprio órgão fazendário. Se não tinha o propósito de suprimir ou reduzir tributo, qual a relevância jurídica das declarações retificadoras apresentadas à Receita Federal, cujas falsidades a denúncia sustenta e imputa à paciente? Na verdade, desconsideradas que foram pela Receita Federal, aquelas declarações são absolutamente inócuas e incapazes de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, daí porque não podem, nem mesmo em tese, servir à caracterização do crime definido no art. 299 do Código Penal. Se crime houvesse – e mais uma vez aqui se abusa do exagero para seguir argumentando –, ele somente poderia ser de natureza tributária, tendo em vista que as afirmações tidas por mendazes foram inseridas em declarações retificadoras endereçadas à autoridade fazendária. É que, sempre que se verificar falsidade como meio para a prática de crime-fim, aquela restará absorvida por este.“ Observem que os sucessivos acontecimentos destes autos giraram em torno de declarações e retificações de caráter fiscal, de sorte que os acontecimentos haveriam de desaguar na ordem tributária, mas a hipótese tendente a suprimir ou reduzir tributo foi, como se viu, afastada, embora conste do relatório, em cópia à fl. 72, o seguinte (Delegacia da Receita Federal de Fiscalização em São Paulo): “Processo nº 19515.000752/2002-70/procedimento fiscal encerrado em 10/09/2002 com a lavratura de Auto de Infração no valor total de R$ 203.180,16, encontra-se em fase de julgamento na Delegacia da Receita Federal de Julgamento – DRJ-SP-II. A relação encaminhada pelo Bradesco, identificando a instituição financeira, data e valores, que serviram para liquidar a operação de compra e venda do imóvel sito à Rua José Paulino, 654/Bom Retiro, são irrelevantes para efeito tributário, visto que o valor total da operação imobiliária já foi tributada com a lavratura de Auto de Infração acima referidos.“ A Receita Federal, pelo visto, considerou irrelevantes, para efeito tributário, os fatos relativos à compra e venda do indicado imóvel, porém a denúncia e o acórdão regional vêem, nessa compra e venda, o fato juridicamente relevante a que se refere o art. 299; eis, a esse propósito, tópicos do acórdão: “Em decorrência da recusa do fisco em aceitar o lançamento daqueles valores (e de outros de pequena monta) nas retificadoras, por falta de comprovação e, ainda, em virtude das declarações evasivas e contraditórias da denunciada, aliada à forma de pagamento do imóvel descoberta no curso do inquérito, entendeu o Ministério Público Federal que as informações inseridas nas retificadoras seriam falsas e teriam sido declaradas para justificar a aquisição do imóvel comercial localizado na Rua José Paulino, 654 (este, o fato juridicamente relevante), assim, estaria configurado o delito capitulado no artigo 299, do Código Penal. Como já asseverado, os motivos que deram causa à glosa efetuada pelo agente fiscal e ensejaram a lavratura do auto de infração, estão sendo questionados pela Juíza Federal Kyu Soon Lee em processo administrativo, ainda pendente de julgamento, circunstância que, reitero, é irrelevante ao presente feito, porquanto o exaurimento da via administrativa não é condição para ser iniciada a ação penal.“ Se se deixou de acolher o injusto tributário – não obstante tenha sido lavrado auto de infração, impugnado administrativamente –, não se deixou, entretanto, de acolher o falso, proveniente, segundo a denúncia, das retificadoras – “Não se sustentam as retificadoras de suas declarações...“ –, e o fato juridicamente relevante seria, então, a compra do já referido imóvel. Reparem em que, na denúncia e no acórdão regional, as coisas, ou os dois pontos, identificam-se, ou se confundem, havendo, aqui e ali, referências, também, à ordem tributária. A identificação, ou a confusão, é de tal monta, que a história dos acontecimentos, caso revelem injusto penal, a mim revelariam algo mais próximo de crime contra a ordem tributária. Se tal fosse, tal certamente estaria na dependência da esfera administrativa (Lei nº 9.430/96, art. 83, e vasta orientação jurisprudencial). Vejam que há auto de infração, e auto administrativamente impugnado. Quanto ao art. 299, a denúncia estaria mesmo dispensada daquele prévio exaurimento. Mas o fato lá exposto – estou perguntando – constitui verdadeiramente falsidade ideológica, tratando-se de falso acontecido em retificadoras de declarações do imposto de renda? Volto a dizer – se se falsifica declaração de imposto omitindo-se informação que dela haveria de constar, a falsidade tem a ver é com a ordem tributária. É por isso, Srs. Ministros, que a impressão que tenho é a de que o caso em exame, versando sobre falsidade documental, consiste em caso penalmente indiferente. Já que, para a Receita Federal, a compra e venda do referido imóvel é fato irrelevante – “visto que o valor total da operação imobiliária já foi tributada com a lavratura de Auto de Infração“ (vejam, ademais, que esse auto foi administrativamente impugnado) –, quem teria, então, sido prejudicado pela indicada falsidade documental (falsidade de caráter ideológico)? O Estado? Sim, porque, primeiramente, é o Estado o sujeito passivo, como todos disso sabemos. Todavia, no caso, o Estado há de ser o Estado coletor de impostos, mas esse já lavou as mãos; se o fosse, podendo sê-lo, a meu ver, a instância judicial dependeria da instância administrativa. Secundariamente, sujeito passivo é aquele, escreveu Fragoso, “em prejuízo de quem a falsidade tenha sido praticada“. Isso, porém, não foi exposto pelo denunciante. Nem há, nos autos, indicação alguma de quem tenha sofrido o prejuízo – a falsidade, só por si, é falsidade penalmente irrelevante. Em resumo, as notícias aqui trazidas, uma vez que tipicamente não dizem respeito à supressão ou redução de tributo, tal a sua exposição pela denúncia, são notícias referentes a fato penalmente irrelevante em termos de falsidade ideológica, por lhe faltar, em suma, dolo específico. Escreveu Hungria, discorrendo sobre o art. 299 (“Comentários ao Código Penal“, vol. IX, pág. 280): “Se o oficial ou funcionário público (que recebe a declaração) está adstrito a averiguar, propriis sensibus , a fidelidade da declaração, o declarante, ainda quando falte a verdade, não cometerá ilícito penal. Assim, tratando-se de lançamento de um imposto, se o funcionário-lançador não pode contentar-se com a simples informação do contribuinte, as mentiras ou propositadas omissões deste serão penalmente indiferentes.“ Evidentemente, o fato narrado não constitui o crime previsto no art. 299 do Cód. Penal, motivo pelo qual voto pela concessão da ordem a fim de, reformando o acórdão regional, rejeitar a denúncia a teor do art. 43, I, do Cód. de Pr. Penal.
VOTO-VOGAL - O EXMO. SR. MINISTRO PAULO MEDINA: Srs. Ministros, o nobre advogado fez brilhante sustentação oral em que descreveu de modo minucioso a conduta e suas conseqüências. Também o fez o Sr. Ministro Relator destacando pontos considerados relevantes pelo Sr. Ministro Paulo Gallotti. Ao que me fora dado a perceber, o objetivo da entidade federal ao Imposto de Renda, nesta fase, seria verificar se havia ou não sonegação fiscal. Está respondido pelo Sr. Ministro Relator que não se apurou até agora a sonegação fiscal. Assim, não podemos prosseguir na apuração, reconhecendo a tipicidade de um crime sem o exaurimento da via administrativa sobre a sonegação fiscal. Essa é a posição do Sr. Ministro Relator. A matéria é tranqüila aqui na Casa e no Supremo Tribunal Federal. Resta o crime em si mesmo de falsidade ideológica. Falsidade ideológica depende se é relevante o falso que nele se contém. Não me parece relevante quando a pessoa física está a alterar a declaração para ajustá-la à realidade que ela veio a declarar; não foi apurado o sentido contrário, isto é, ele possuía antes do recurso - até prova em contrário - e, depois, no próprio o recurso. A explicação dada pelo advogado foi absolutamente correta, limpa, razoável, para aceitar de plano o que ele expôs. Sendo assim, esse fato, segundo me parece, não pode levar ao Judiciário, na sanha perquiridora, punir sem prova as infrações de ordem tributária ou de ordem fiscal. Até me parece uma certa abusividade do Ministério Público quando define essas denúncias sem que se ponha a mão mesmo interdiction in local orum, sem que se sinta onde está essa verdade. No caso, parece-me que o Sr. Ministro Nilson Naves declarou de forma precisa que, no primeiro instante, houve desordenamento de natureza administrativa; no segundo instante, trata-se de uma questão relevante a definir o crime de falsidade ideológica. Por essas razões, com tranqüilidade absoluta, concedo a ordem de habeas corpus em favor da paciente.
EMENTA – Falsidade ideológica. Imposto de renda (declaração retificadora). Débito tributário (apuração). Sujeito passivo (indefinição). Dolo específico (inexistência). Denúncia (rejeição). 1. A denúncia fundada no art. 299 do Cód. Penal há de se referir a fato juridicamente relevante (com o fim de...). 2. No caso, de acordo com a acusação, foram inseridas informações falsas nas declarações retificadoras de imposto de renda, sobrevindo auto de infração, administrativamente impugnado. 3. Se os acontecimentos giraram, assim, em torno de declarações e de retificações fiscais, haveriam, então, de desaguar na ordem tributária. 4. Enfim, se se deixou de acolher o injusto tributário, a falsidade – se é que existiu – consiste em fato penalmente irrelevante, até pela indefinição do especial fim de prejudicar (com o fim de...). 5. Se o fato narrado evidentemente não constitui crime, impõe-se seja rejeitada a denúncia. 6. Ordem concedida para esse fim.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEXTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conceder a ordem de habeas corpus nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo Gallotti, Paulo Medina e Maria Thereza de Assis Moura votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Hamilton Carvalhido. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Paulo Medina. Sustentou oralmente o Dr. Eduardo Pizarro Carnelós pelo paciente. Brasília, 13 de março de 2007 (data do julgamento).