Crimes de homicídio qualificado perpetrados contra policiais não caracterizados. Réus indígenas. Existência de conflitos de terra constantes entre indígenas e fazendeiros locais. Motivação. Defesa de interesse da coletividade silvícola. Competência da Justiça Federal.
Rel. Min. Laurita Vaz
RELATÓRIO - EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ: Trata-se de habeas corpus , com pedido liminar, impetrado em favor de CARLITO DE OLIVEIRA, EZEQUIEL VALENSUELA, HERMÍNIO ROMERO, JAIR AQUINO FERNANDES, LINDOMAR BRITES DE OLIVEIRA, MÁRCIO DA SILVA LINS, PAULINO LOPES, SANDRA ARÉVALO SAVALA e VALMIR JÚNIOR SAVALA, presos preventivamente e denunciados pela prática, em tese, dos crimes tipificados nos arts. 121, § 2.º, incisos II, III e IV, (por duas vezes) e 121, § 2.º, incisos II, III e IV, c.c. o art. 14, inciso II, todos do Código Penal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul que, ao denegar a ordem pleiteada originariamente, manteve a custódia cautelar dos Pacientes. Os Impetrantes alegam, em suma, a incompetência absoluta da Justiça Estadual para julgar a ação em questão, “em razão de sua inegável relação com a disputa com fazendeiros, sobre os direitos constitucionais da comunidade indígena, da qual os pacientes fazem parte, à posse das terras que tradicionalmente ocupam, localizadas no Município de Dourados/MS“ (fl. 07). Aduzem, ainda, que os Pacientes não se encontram presos provisoriamente em regime de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximo de suas moradas, conforme determina o art. 56 da Lei n.º 6.001/73. Ressaltam, por fim, que o decreto de prisão preventiva é carente de fundamentação legal, pois não demonstrou, com elementos concretos, a necessidade da segregação provisória. Requereram, assim, liminarmente, a suspensão da realização das audiência de inquirição de testemunhas de defesa marcadas para 12, 13, 14 e 15 de setembro, bem como a imediata soltura dos Pacientes, até o julgamento final do presente habeas corpus e, no mérito, a concessão da ordem para reconhecer a incompetência do juízo e declarar nulo o despacho que decretou a prisão preventiva dos Pacientes ou, caso contrário, para que lhes seja assegurado o cumprimento da prisão cautelar no órgão indigenista mais próximo da aldeia à que pertencem. O pedido liminar foi indeferido nos termos da decisão de fls. 32/33. Foram prestadas as informações pela Autoridade Impetrada à fl. 38, com a juntada de peças processuais pertinentes à instrução do feito. O Ministério Público Federal manifestou-se às fls. 343/360, opinando pela concessão da ordem nos termos da seguinte ementa: “HABEAS CORPUS - CRIMES ATRIBUÍDOS A INDÍGENAS - INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. DISPUTA POR TERRAS INDÍGENAS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. PARECER PELA CONCESSÃO DA ORDEM. POSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA CUSTÓDIA CAUTELAR EM ÓRGÃO FEDERAL DE ASSISTÊNCIA AO ÍNDIO, EX VI DO DISPOSTO NO ARTIGO 56, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 6001/73.“ (fl. 343) É o relatório.
VOTO - EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ (RELATORA): De início, passo à análise da preliminar de incompetência da Justiça Estadual para apreciar o feito. Compulsando os termos do acórdão impugnado, extraem-se os seguintes fundamentos para a rejeição da preliminar: “Sabe-se que está pacificada na jurisprudência dos Tribunais Superiores a competência da Justiça Comum para julgar crimes praticados por silvícolas ou quando este for vítima, consoante o disposto na Súmula 140 do Superior Tribunal de Justiça [...]. Inobstante tenha a Constituição Federal, em seu art. 109, XI, atribuído à Justiça Federal a competência para julgamento das lides que versarem sobre direitos indígenas, no caso em tela não há incidência dessa regra, por tratar-se de ação fundada em crime, em que figuram como autores silvícolas, estando ausente, até o presente momento, provas de que haja o interesse da comunidade indígena na lide. Destarte, verifica-se que não há na questão em apreço interesse indígena a atrair a competência da Justiça Federal, como assegura a Magistrada nas informações [...]. Não se trata, in casu, de conflitos relativos à comunidade indígena e sim de um grupo de índios, que em comunhão de vontades, atentaram contra a vida dos policiais, que estavam realizando seu trabalho, nas proximidades da aldeia na qual os pacientes residiam .' (fl. 243-245)“ (fl. 335) De fato, em consonância com o verbete sumular n.º 140 do STJ, compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que indígena figure como autor ou vítima, desde que a lide em questão não constitua disputa sobre direitos indígenas. Todavia, no caso em apreço, compulsando os autos, verifica-se que os crimes de homicídio pelos quais respondem os ora Pacientes tiveram como motivação a declarada defesa de suas terras, consoante se depreende dos termos dos interrogatórios dos acusados, o que é corroborado pelas circunstâncias de tempo, lugar e modo em que ocorreram, a evidenciar que a ação delituosa, perpetrada por um grupo significativo de índios, traduz aparente reunião de esforços para proteção de interesses indígenas. Com efeito, sem embargo da evidente reprovabilidade das condutas dos Réus, em especial pela sua brutalidade, foram elas praticadas em cenário que indica haver estreita ligação com disputa pela posse de terras entre índios e produtores rurais locais, na medida em que os policiais – que não estavam caracterizados – teriam sido confundidos com fazendeiros, com quem estavam em constante conflito. Convém salientar que há nessa região uma notória hostilidade entre índios e fazendeiros ocupantes da terra, como muito bem observado pelo Ministério Público Federal em seu parecer, ad lítteram: “Trata-se, pois, de área em permanente conflito entre indígenas e fazendeiros locais. A exemplo cita-se o Inquérito Policial n.º 049/2005, instaurado pela Delegacia de Polícia Federal de Dourados/MS, com Portaria acostada às folhas 240 dos autos, com vista à apuração de fatos ocorridos com os indígenas Luiz Cézar Romero e Sidney Gonçalves, integrantes da comunidade Passo Piraju, Distrito de Porto Cambira, Município de Dourados/MS. Nele se apurou ocorrência de delito de tentativa de homicídio contra os indígenas apontados, praticado pelo Senhor Belino Chaves, filho de produtor rural Esmalte Chaves. Ressalte-se que naquela ocasião o Ministério Público Federal requisitou à Polícia Federal a prisão em flagrante do Sr. Belino Chaves destacando que 'os atos praticados pelo Sr. Belino Chaves contra indígenas daquela área já foram objeto de outros ofícios por parte deste Órgão Ministerial, os quais ensejaram a lavratura de Termos Circunstanciados no âmbito dessa Delegacia de Polícia'. Expõe, ainda, o receio de que 'um conflito mais intenso possa ocorrer entre indígenas e produtores rurais' (fl. 199) [...] Dessa forma, os conflitos oriundos dessa lide revestem-se em interesse da União possuindo a Justiça Federal a competência para o processamento do feito. A tutela dos direitos atinentes à área de ocupação, tutela, segurança e integridade indígena cabe à Justiça Federal. Essa Corte Superior assim se pronunciou a exemplo do julgamento do CC 43155 que diz em síntese que tratando-se de crimes praticados por indígenas na disputa de suas terras, estando evidenciado o interesse da comunidade indígena, a competência para o processamento e julgamento dos delitos é da Justiça Federal, não atraindo a incidência da Súmula 140 do STJ.“ (fls. 352/358) Portanto, a competência para julgar e processar os indígenas, no caso, é da Justiça Federal, nos termos do art. 109, inciso XI, da Constituição Federal. No mesmo diapasão, a jurisprudência do Pretório Excelso: “O deslocamento da competência para a Justiça Federal, na forma do inciso XI do artigo 109 da Carta da Republica, somente ocorre quando o processo versa sobre questões ligadas à cultura indígena e aos direitos sobre suas terras.“ (HC 81.827/MT, 2.ª Turma, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ de 23/08/2002.) “HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. ÍNDIO. JUSTIÇA ESTADUAL: INCOMPETÊNCIA. ARTIGO 109-XI DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Caso em que se disputam direitos indígenas. Todos os direitos (a começar pelo direito à vida) que possa ter uma comunidade indígena ou um índio em particular estão sob a rubrica do inciso XI do artigo 109 da Constituição Federal. Habeas corpus concedido para que se desloque o feito para a Justiça Federal, competente para julgar o caso. “ (HC 71.835/MS, 2.ª Turma, Rel. Min. FRANCISCO REZEK, DJ de 22/11/1996.) No que diz respeito à validade da prisão preventiva dos Pacientes, tendo ela sido decretada por Juízo, agora, absoltamente incompetente, tem-se por anulado o decreto prisional, sem prejuízo de nova decretação pelo Juízo Federal a quem couber o feito, respeitado – se entender necessária a manutenção da prisão preventiva – o direito por lei assegurado aos indígenas de cumprir eventuais reprimendas penais (e, com muito maior razão, prisão cautelar) em estabelecimentos próprios, sob a supervisão de órgãos federais de assistência ao índio. Corrobora esse entendimento, a manifestação do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. Eduardo Antônio Dantas Nobre, em caso análogo: “De referência ao lugar da custódia, parece-me que o paciente tem o direito de recolher-se, em regime de semiliberdade, ao órgão federal de assistência aos índios mais próximo de sua residência, como, aliás, recomenda e quer a Lei 6.001, de 1973, art. 56, parágrafo único. É exato que o preceituado pelo diploma legal em comento, art. 56, parágrafo único, concerne às decisões trânsitas em julgado, eis que, doutro modo, não haveria expressa alusão aos cumprimentos das penas de detenção e de reclusão, que não deve dar-se na ausência de condenação definitiva, a menos que se deseje elidir a força da presunção de inocência, que, entre nós, encontra-se alçada à dignidade constitucional. Não é menos exato, contudo, que das penas privativas de liberdade e restritivas de direito (prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana) devem ser descontados os períodos de prisão provisória, que compreende, dentre outras, as prisões em flagrante, temporária, preventiva, e aquela imposta à ocasião da pronúncia. Pois bem: se a pena definitiva deve ser cumprida nas condições aqui apontadas, parece razoável que nas diversas modalidades de custódia cautelar, que nela serão computadas, o recolhimento dê-se no órgão federal de assistência ao índio, que guarde maior proximidade da residência do paciente, para que na prisão processual e a execução da sentença observem um mesmo rigor carcerário. É dizer: não se afigura razoável que o paciente, enquanto índio, permaneça em estabelecimento penal comum ou em delegacia de polícia, para viabilizar a efetivação de prisão preventiva, se lhe é assegurado o cumprimento da reclusão em órgão especial de assistência, porquanto a isso equivaleria, em derradeira análise, submetê-lo a condições mais gravosas, quando ainda é precário o título legitimador da constrição, para, só após e sobrevinda da condenação, assegurar-lhe as vantagens instituídas pela regra inserta na Lei 6.001, de 1973, art. 56, parágrafo único.“ (fl. 294) A propósito, o seguinte precedente de minha relatoria: “HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. PACIENTE INDÍGENA. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL NÃO DEMONSTRADA ANTE A AUSÊNCIA DE SUBSTRATO FÁTICO QUE AMPARE A ALEGAÇÃO. PRISÃO PREVENTIVA SATISFATORIAMENTE FUNDAMENTADA NO REQUISITO DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL, POIS O ACUSADO SE ENCONTRA FORAGIDO DESDE A PRÁTICA DO DELITO. POSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA CUSTÓDIA CAUTELAR EM ÓRGÃO FEDERAL DE ASSISTÊNCIA AO ÍNDIO, EX VI DO DISPOSTO NO ART. 56, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 6.001/973. [...] 4. Sendo assegurado aos silvícolas o benefício de cumprimento de penas privativas de liberdade em órgão de assistência ao índio, tem-se como plenamente plausível a concessão de tal benefício ao paciente para que cumpra a prisão provisória no referido estabelecimento. 5. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa parte, concedido tão-somente para assegurar ao paciente, índio pataxó, que permaneça durante o período da prisão preventiva, recolhido junto à órgão federal de assistência ao índio mais próximo de sua aldeia ou residência.“ (HC 55792/BA, 5.ª Turma, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJ de 21/08/2006.) Ante o exposto, CONCEDO a ordem para declarar a incompetência do juízo de Direito da 1.ª Vara Criminal da Comarca de Dourado/MS e, assim, anular o processo ab initio, com o aproveitamento dos atos não-decisórios já praticados, determinando sejam os respectivos autos imediatamente encaminhados para o Juízo Federal da região, a quem competirá apreciar a necessidade da decretação da prisão preventiva dos Réus, atendidas as garantias legais acerca do local da eventual custódia. É o voto.
EMENTA - HABEAS CORPUS . PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE HOMICÍDIO QUALIFICADO PERPETRADOS CONTRA POLICIAIS NÃO CARACTERIZADOS. RÉUS INDÍGENAS. EXISTÊNCIA DE CONFLITOS DE TERRA CONSTANTES ENTRE INDÍGENAS E FAZENDEIROS LOCAIS. MOTIVAÇÃO. DEFESA DE INTERESSE DA COLETIVIDADE SILVÍCOLA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. Os crimes de homicídio pelos quais respondem os ora Pacientes tiveram como motivação a declarada defesa de suas terras, consoante se depreende dos termos dos interrogatórios dos acusados, o que é corroborado pelas circunstâncias de tempo, lugar e modo em que ocorreram, a evidenciar que a ação delituosa, perpetrada por um grupo significativo de índios, traduz aparente reunião de esforços para proteção de interesses indígenas. 2. Sem embargo da evidente reprovabilidade das condutas dos réus, em especial pela sua brutalidade, foram elas praticadas em cenário que indica haver estreita ligação com disputa pela posse de terras entre índios e produtores rurais locais, na medida em que os policiais – que não estavam caracterizados – teriam sido confundidos com fazendeiros, com quem estavam em constante conflito. Competência para julgar e processar os indígenas, no caso, é da Justiça Federal, nos termos do art. 109, inciso XI, da Constituição Federal. 3. Ordem concedida para declarar a incompetência do juízo de Direito da 1.ª Vara Criminal da Comarca de Dourado/MS e, assim, anular o processo ab initio, com o aproveitamento dos atos não-decisórios já praticados, determinando sejam os respectivos autos imediatamente encaminhados para o Juízo Federal da região, a quem competirá apreciar a necessidade da decretação da prisão preventiva dos Réus, atendidas as garantias legais acerca do local da eventual custódia.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Arnaldo Esteves Lima e Felix Fischer votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Gilson Dipp. Brasília (DF), 27 de março de 2007 (Data do Julgamento)