Habeas Corpus Nº 76.249/sp

Operações Lince e Plata. Contrabando. Descaminho. Corrupção ativa. Lavagem de dinheiro. Questão não levada ao conhecimento do Tribunal de origem. Supressão de instância. Lei especial. Conexão. Regra de competência. Autonomia. Concurso de jurisdições. Pena cominada mais grave. Prevalência do local. Ordem parcialmente conhecida e denegada.

Rel. Min. Jane Silva


RELATÓRIO - A EXMA. SRA. MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG) (Relator):
Trata-se de habeas corpus , substitutivo de recurso ordinário, com pedido de liminar, manejado por advogados contra o Acórdão de n.° 2006.03.00.024651-7 do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que denegou ordem anteriormente impetrada em favor de JOSÉ ANTÔNIO MARTINS, visando a declaração de incompetência do Juízo da 4ª Vara Federal de Ribeirão Preto/SP para processar e julgar as ações penais contra ele instauradas em decorrência de investigações da Polícia Federal na denominada “Operação Plata“, e a anulação de todos o atos judiciais praticados, bem como seja declarada ilícita toda a prova colhida por força e em razão das decisões judiciais proferidas pela autoridade incompetente. Na presente impetração, reitera-se a argumentação referente à incompetência do Juízo da 4ª Vara Federal de Ribeirão Preto/SP, pugnando-se, em sede de liminar, pelo sobrestamento das ações penais. Os Impetrantes alegam que o Paciente foi investigado, pelos mesmos fatos, em procedimentos criminais diversos, perante os juízos da 1a Vara Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, e 4a Vara Federal de Ribeirão Preto, São Paulo, mesmo havendo conexão entre os referidos procedimentos criminais pelos quais responde. Dizem que os Magistrados oficiaram para a instauração das futuras ações penais, decidiram e deferiram inúmeras medidas cautelares, mesmo cientes da dupla investigação, e, com isto, omitiram-se do dever legal de declinar de sua competência em favor do outro juízo, ou de suscitarem conflito positivo de competência, tendo sido violado o princípio do juízo natural. Defendem ser do juízo de Pelotas a competência para julgar o caso, local onde se deu a infração mais severamente punida, ou seja, a imputação de crime de corrupção ativa, cuja pena em abstrato é de dois a doze anos de reclusão, bem como o maior número de infrações, conforme se verifica na denúncia. Aduziram, também, que: O voto condutor do acórdão, todavia, decidiu que o Juízo da 4a Vara Federal de Ribeirão Preto/SP praticou atos anteriores ao Juízo da 1a Vara Federal de Pelotas, nos autos do Processo Criminal Diverso 2002.61.02.003194-2, relativo à operação “OPERAÇÃO LINCE“, onde teriam sido obtidos os elementos para a propositura das ações penais em desfavor do paciente. Argumentam que o Acórdão atacado, ao dar preponderância à prevenção, afastou expressamente as regras contidas no artigo 78, II, a e b, do Código de Processo Penal, desprezando, ainda, o enunciado da Súmula 151 deste Superior Tribunal de Justiça: A competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do juízo federal do lugar da apreensão dos bens. Sustentam, ainda, que o juízo da 4a Vara Federal de Ribeirão Preto, quando praticou atos no Procedimento Criminal Diverso n° 2004.61.02.006584-5 e no Inquérito Policial 2005.61.02.005263 (12-0100/05), não detinha competência material para processar e julgar os fatos lá investigados, posto que um dos delitos e posteriormente objeto de denúncia, é o da lavagem de dinheiro. De modo que – prosseguem – o juízo competente para processar e julgar todos os feitos seria o da 2a ou 6a Varas Federais de São Paulo, especializadas na matéria, a teor do Provimento 238, do Conselho da Justiça Federal da Terceira Região. Como as investigações iniciaram-se em abril de 2005, os procedimentos deveriam ter sido encaminhados a uma daquelas varas, sendo irrelevante que, posteriormente, por força do Provimento 275, de 17 de outubro de 2005, a 4a Vara Federal de Ribeirão Preto tenha sido especializada em lavagem de dinheiro, à vista de norma expressa que vedava a redistribuição dos feitos em curso na 2a e 6a Varas Federais de São Paulo. Assim, declarada a incompetência do juízo da 4a Vara Federal de Ribeirão Preto/SP, pugnam os Impetrantes: ...que os efeitos dessa decisão não só se estenda às ações penais em curso, mas, também, aos autos do Procedimento Criminal Diverso n° 2004.61.02.006584-5, ao Inquérito Policial n° 2005.61.02.005263-6, bem como a todas as demais medidas cautelares deferidas em desfavor do paciente, propostas perante àquele juízo após o dia 17/10/2004, data em que foram especializadas a 2a e 6a Varas Criminais de São Paulo/SP para os crimes de lavagem de dinheiro e contra o sistema financeiro nacional. Deferida a presente ordem, pede-se a remessa dos autos ao seu juízo natural, ou seja: a) Juízo Federal do Estado do Rio Grande do Sul que detenha competência para processar e julgar crimes de lavagem de dinheiro, caso acolhido o fundamento da conexão, ante as regras contidas nos arts, 78, II, letras a e b; e b ) Determinar a distribuição de todas as ações penais que tramitam contra o paciente perante os Juízos da 4a Vara Federal de Ribeirão Preto/SP e 1a Vara Federal de Pelotas/RS, resultantes da denominada “OPERAÇÃO PLATA“ entre os Juízos da 2a e 6a Varas Criminais de São Paulo. Indeferida a liminar, foram requisitadas e prestadas as informações de praxe. O Ministério Público Federal opinou pela denegação da ordem (f. 951/958). Relatados, em mesa para julgamento.

 
VOTO - A EXMA. SRA. MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG) (Relator):
Trata-se de habeas corpus , substitutivo de recurso ordinário, com pedido de liminar, manejado por advogados contra o Acórdão de n.° 2006.03.00.024651-7 do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que denegou ordem anteriormente impetrada em favor de JOSÉ ANTÔNIO MARTINS, visando a declaração de incompetência do Juízo da 4ª Vara Federal de Ribeirão Preto/SP para processar e julgar as ações penais contra ele instauradas em decorrência de investigações da Polícia Federal na denominada “Operação Plata“, e a anulação de todos o atos judiciais praticados, bem como seja declarada ilícita toda a prova colhida por força e em razão das decisões judiciais proferidas pela autoridade incompetente. Na presente impetração, reitera-se a argumentação referente à incompetência do Juízo da 4ª Vara Federal de Ribeirão Preto/SP, pugnando-se, em sede de liminar, pelo sobrestamento das ações penais. Os Impetrantes alegam que o Paciente foi investigado, pelos mesmos fatos, em procedimentos criminais diversos, perante os juízos da 1a Vara Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, e 4a Vara Federal de Ribeirão Preto, São Paulo, mesmo havendo conexão entre os referidos procedimentos criminais pelos quais responde. Dizem que os Magistrados oficiaram para a instauração das futuras ações penais, decidiram e deferiram inúmeras medidas cautelares, mesmo cientes da dupla investigação, e, com isto, omitiram-se do dever legal de declinar de sua competência em favor do outro juízo, ou de suscitarem conflito positivo de competência, tendo sido violado o princípio do juízo natural. Defendem ser do juízo de Pelotas a competência para julgar o caso, local onde se deu a infração mais severamente punida, ou seja, a imputação de crime de corrupção ativa, cuja pena em abstrato é de dois a doze anos de reclusão, bem como o maior número de infrações, conforme se verifica na denúncia. Aduziram, também, que: O voto condutor do acórdão, todavia, decidiu que o Juízo da 4a Vara Federal de Ribeirão Preto/SP praticou atos anteriores ao Juízo da 1a Vara Federal de Pelotas, nos autos do Processo Criminal Diverso 2002.61.02.003194-2, relativo à operação “OPERAÇÃO LINCE“, onde teriam sido obtidos os elementos para a propositura das ações penais em desfavor do paciente. Argumentam que o Acórdão atacado, ao dar preponderância à prevenção, afastou expressamente as regras contidas no artigo 78, II, a e b, do Código de Processo Penal, desprezando, ainda, o enunciado da Súmula 151 deste Superior Tribunal de Justiça: A competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do juízo federal do lugar da apreensão dos bens. Sustentam, ainda, que o juízo da 4a Vara Federal de Ribeirão Preto, quando praticou atos no Procedimento Criminal Diverso n° 2004.61.02.006584-5 e no Inquérito Policial 2005.61.02.005263 (12-0100/05), não detinha competência material para processar e julgar os fatos lá investigados, posto que um dos delitos e posteriormente objeto de denúncia, é o da lavagem de dinheiro. De modo que – prosseguem – o juízo competente para processar e julgar todos os feitos seria o da 2a ou 6a Varas Federais de São Paulo, especializadas na matéria, a teor do Provimento 238, do Conselho da Justiça Federal da Terceira Região. Como as investigações iniciaram-se em abril de 2005, os procedimentos deveriam ter sido encaminhados a uma daquelas varas, sendo irrelevante que, posteriormente, por força do Provimento 275, de 17 de outubro de 2005, a 4a Vara Federal de Ribeirão Preto tenha sido especializada em lavagem de dinheiro, à vista de norma expressa que vedava a redistribuição dos feitos em curso na 2a e 6a Varas Federais de São Paulo. Assim, declarada a incompetência do juízo da 4a Vara Federal de Ribeirão Preto/SP, pugnam os Impetrantes: ...que os efeitos dessa decisão não só se estenda às ações penais em curso, mas, também, aos autos do Procedimento Criminal Diverso n° 2004.61.02.006584-5, ao Inquérito Policial n° 2005.61.02.005263-6, bem como a todas as demais medidas cautelares deferidas em desfavor do paciente, propostas perante àquele juízo após o dia 17/10/2004, data em que foram especializadas a 2a e 6a Varas Criminais de São Paulo/SP para os crimes de lavagem de dinheiro e contra o sistema financeiro nacional. Deferida a presente ordem, pede-se a remessa dos autos ao seu juízo natural, ou seja: c) Juízo Federal do Estado do Rio Grande do Sul que detenha competência para processar e julgar crimes de lavagem de dinheiro, caso acolhido o fundamento da conexão, ante as regras contidas nos arts, 78, II, letras a e b; e d ) Determinar a distribuição de todas as ações penais que tramitam contra o paciente perante os Juízos da 4a Vara Federal de Ribeirão Preto/SP e 1a Vara Federal de Pelotas/RS, resultantes da denominada “OPERAÇÃO PLATA“ entre os Juízos da 2a e 6a Varas Criminais de São Paulo. Inicialmente, quanto à questão da alegada incompetência material do Juízo da 4a Vara Federal de Ribeirão Preto para julgar todas as ações penais contra o Paciente, observo que a irresignação do Paciente não foi anteriormente levada ao Tribunal a quo, logo, não se pode decidir matéria que ali não foi submetida, sob pena de supressão de instância. No que diz respeito à alegada competência do Juízo Federal de Pelotas para julgar os feitos atualmente na 4a Vara Federal de Ribeirão Preto, entendo que a questão deve ser analisada sob dois ângulos, sendo o primeiro relativo aos delitos envolvendo as apreensões das mercadorias e os crimes relativos à lavagem de dinheiro. Conforme mencionou a culta Subprocuradora-Geral da República Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, este Superior Tribunal de Justiça já decidiu, em relação aos crimes de lavagem de dinheiro: CRIMINAL. HC. LAVAGEM DE DINHEIRO. AÇÃO PENAL DISTRIBUÍDA A RELATOR DE PROCESSO-CRIME REFERENTE A FORMAÇÃO DE QUADRILHA. DEMONSTRAÇÃO DA MATERIALIDADE DOS CRIMES ANTECEDENTES. FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA. REUNIÃO OU SEPARAÇÃO DOS PROCESSOS. ANÁLISE DO CASO CONCRETO. AUTONOMIA OBRIGATÓRIA DOS FEITOS. REUNIÃO IRRESTRITA. TEMPERANÇA DAS REGRAS. INEXISTÊNCIA DE CONEXÃO, NA SITUAÇÃO EM TELA. ANULAÇÃO DOS ATOS DECISÓRIOS. DESNECESSIDADE. ECONOMIA PROCESSUAL. ORDEM CONCEDIDA. Hipótese em que o paciente, juntamente com outros dois co-réus, foi denunciado pela prática, em tese, do crime de lavagem de dinheiro, o qual foi instaurado perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região e distribuído ao mesmo Desembargador Federal Relator de outro processo-crime anteriormente instaurado contra ele pelo suposto cometimento do delito de formação de quadrilha. Alegações da impetração orientadas à inexistência de conexão entre as ações penais referentes à lavagem de dinheiro e à formação de quadrilha. A Lei 9.613/98 tipificou o delito de lavagem de dinheiro como crime autônomo, independente, embora tenha exigido, de outro lado, a demonstração da existência da materialidade de um crime antecedente. Presente a prova da materialidade do crime antecedente, o delito de lavagem de dinheiro é punível ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime antecedente, até porque, se não verificados os elementos indicadores da autoria, de fato não se poderá instaurar a persecução penal quanto ao delito anterior. Não obstante se exija a existência da referida relação de acessoriedade material entre o crime de lavagem de dinheiro e o delito antecedente, há que se ter cautela quanto à fixação da competência para processo e julgamento da ação penal referente à lavagem de dinheiro, que deve ser pautada pela análise do caso concreto no tocante à necessidade de reunião ou de separação dos processos criminais concernentes à lavagem de dinheiro e ao crime antecedente. A Lei 9.613/98 privilegiou a separação obrigatória das ações penais e a autonomia do feito referente à lavagem de dinheiro, sob o fundamento de que seria providência indispensável à eficácia da legislação, já que, primeiro, o procedimento relativo à infração antecedente pode estar sujeito à jurisdição de outro país e, segundo, há que se resguardar a persecução criminal, diante da gravidade e da reiteração de delitos que desafiam o Estado. A escolha legislativa por esse ponto de vista visa a garantir a pretensão punitiva estatal concernente à lavagem de dinheiro, entendendo que eventuais óbices do processo do delito antecedente não prejudicariam a apuração do crime da Lei 9.613/98, resguardando a possibilidade de punição dessa prática delitiva que de forma cada mais audaciosa e sofisticada assola o Estado Brasileiro. No campo acadêmico, há doutrina que entende que, em razão da relação de acessoriedade material configurada pela exigência da prova da materialidade do crime antecedente para a caracterização da lavagem de dinheiro, a competência seria determinada pelas regras da conexão. A hipótese da impetração revela que os crimes de formação de quadrilha e contra a administração pública seriam os delitos antecedentes. A relação de acessoriedade material é própria do crime de lavagem de dinheiro e de seu antecedente, não justificando, por si só, a reunião dos feitos. O fato de que as provas colhidas na ação penal referente ao crime de formação de quadrilha serviriam, de alguma forma, para a prova que se quer colher no tocante ao delito de lavagem de dinheiro, não reflete exatamente a situação dos autos. Histórico fático do caso em tela não caracteriza o inciso III do art. 76 do CPP, pois as circunstâncias em que o delito de lavagem de dinheiro teria sido, em tese, praticado – emissão de cheques pela co-ré e entregues pelo paciente ao outro co-denunciado, que os depositou em sua conta e recebeu valores que estavam bloqueados judicialmente –, não configuram a colheita de prova da suposta prática de formação de quadrilha hábil a influenciar na prova da lavagem de dinheiro. A prova indispensável à configuração dos indícios de autoria e da materialidade necessária a embasar a peça acusatória referente à formação de quadrilha é diversa, sendo outros os fatos. Os acontecimentos que caracterizariam, em tese, a lavagem de dinheiro não foram considerados pelo Parquet quando do oferecimento da denúncia pela formação de quadrilha, tampouco foram cogitados como prova da atuação da eventual quadrilha, até porque um dos co-réus não foi denunciado, não se podendo falar que “a prova de uma infração [formação de quadrilha] ou de qualquer de suas circunstâncias elementares“ influencia “na prova de outra infração“ [lavagem de dinheiro]. Sequer a regra da total independência dos feitos, tampouco aquela relativa à obrigatória reunião das ações penais pela conexão, devem prevalecer de forma absoluta nas hipóteses de crimes previstos na Lei 9.613/98. As ações penais não devem, necessariamente, ficar separadas, tampouco devem, necessariamente, permanecer reunidas, cabendo destacar que se afirmou anteriormente: a competência do Juízo deve ser analisada a partir da análise de cada caso concreto, sempre com vistas a otimizar a pretensão punitiva estatal. As regras concernentes à competência devem ser aplicadas com temperança, sempre com o intuito de garantir, da melhor forma possível, a eficácia da persecução penal, objetivando à adequada apuração e, se for o caso, punição, dos crimes de lavagem de dinheiro. Não se pode rejeitar, de pronto, a aplicação da autonomia dos processos, pois há casos em que sequer haverá a possibilidade de instauração da ação penal pelo crime antecedente, por falta de elementos indicativos da autoria, bem como porque nas situações em que, pelo número de acusados ou pela circunstâncias complexas do caso, a melhor opção seja a separação dos feitos. Aceitar a aplicação irrestrita das regras da conexão, do art. 76 e incisos, do Código de Processo Penal, poderia causar o engessamento do processo relativo à lavagem de dinheiro, eis que a instrução do feito do crime antecedente pode ser demorada, ou até mesmo obstruída pelas Dificuldades resultantes da comprovação da autoria delitiva. O exame deste caso concreto, com suas particularidades, autoriza a conclusão de que as ações penais relativas ao delitos de formação de quadrilha e de lavagem de dinheiro podem tramitar separadamente, sob a relatoria de Desembargadores Federais distintos, sem prejuízo ao bom andamento da persecução penal. Em não se tratando de incompetência absoluta, mas apenas de reconhecimento de inexistência de conexão, não há que se afirmar nulos os atos decisórios praticados nos autos da ação penal. Pode o Desembargador a quem for livremente distribuída a ação penal decidir a respeito da ratificação dos atos já efetivados, em observância ao princípio da economia processual. Deve ser determinada a livre distribuição da ação penal instaurada contra o paciente pela prática, em tese, do crime de lavagem de dinheiro, cabendo ao Relator decidir a respeito da ratificação dos atos decisórios já procedidos. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator. (HC 59663/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 07.12.2006, DJ 05.02.2007 p. 279) A principal conclusão que se extrai dessa inestimável análise, de interesse na presente hipótese, é que a autonomia do processo e julgamento do crime de lavagem de dinheiro e do delito antecedente não é absoluta e, em princípio, não elimina a aplicação das regras de conexão do Código de Processo Penal, sendo que sua aplicação deve ser analisada no caso concreto. O Paciente está sendo acusado por crimes de lavagem de dinheiro em que há grande complexidade na apuração dos crimes antecedentes e envolvem vários réus, devendo, portanto, a decisão quanto à competência, ser temperada pela aplicação do artigo 80, última parte, do Código de Processo Penal, que prevê a separação facultativa dos processos se, por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação. Assim, por um lado, a Lei 9.613/98 poderia justificar, por si só, o trâmite em separado dos feitos relativos à lavagem de dinheiro e, por outro, as regras do Código de Processo Penal conduziriam à reunião daqueles autos com os antecedentes. Mas, como ambos os critérios não sobressaem um sobre o outro, posto que a conexão envolvendo crimes de branqueamento de capitais e afins deve ser visualizada como parte de um sistema maior em que se busca a prevalência dos princípios que regem o processo penal, no caso particular, julgo prudente manter a competência como estabelecida atualmente, o que não significa violação do princípio do juízo natural. Isso porque os elementos disponíveis nos autos sugerem a possível extensão transnacional dos múltiplos delitos praticados, em tese, pelos agentes envolvidos, fato este que exige a instrumentalização da Justiça com dispositivos modernos que garantam a mencionada pretensão punitiva estatal das práticas sofisticadas de dilapidação do patrimônio público, conforme, inclusive, recomendação internacional recepcionada por nosso País em acordos internacionais. A aplicação da lei penal garantida por meio dos mencionados instrumentos, dentre eles a Separação dos processos quanto aos delitos aqui analisados, não fere o princípio do juízo natural, repita-se. Em um primeiro momento, objetiva-se cumprir as finalidades da pena, quais sejam, a punição em si mesma e a prevenção geral, e, em um outro plano, mas não secundário, a reinserção ou inserção do condenado na sociedade. Além do mais, os crimes de lavagem de dinheiro possuem uma particular capacidade de lesar difusamente a sociedade, de tal sorte que demandam o acionamento de mecanismos semelhantes ao que aqui se privilegia, os quais possibilitam a plena eficácia de todos efeitos de uma possível condenação, nos termos do artigo 7o, da Lei 9.613/98: Art. 7º São efeitos da condenação, além dos previstos no Código Penal: I - a perda, em favor da União, dos bens, direitos e valores objeto de crime previsto nesta Lei, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé; II - a interdição do exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza e de diretor, de membro de conselho de administração ou de gerência das pessoas jurídicas referidas no art. 9º, pelo dobro do tempo da pena privativa de liberdade aplicada. A necessidade de repressão à alta criminalidade, como forma de assegurar a paz social, em confronto com as garantias constitucionais conferidas ao indivíduo, apresentam-se, no processo penal, particularmente quanto aos crimes de lavagem de dinheiro, como ponto central a nortear toda a atividade persecutória estatal, devendo a jurisdição desenvolver o seu desiderato reverenciando os limites traçados por aqueles interesses em disputa. Nessa ótica, não se demonstrou, nestes autos, qualquer violação ao princípio do devido processo legal, consagrado no artigo 5o, LIV, da Constituição da República, nem de um dos seus corolários, o do juiz natural, estando assegurados, ao Paciente, até o presente momento, o contraditório e a ampla defesa, e a certeza de que somente será privado de sua liberdade ou terá seus direitos cerceados por meio de um processo legal. Portanto, embora se reconheça a ligação aparente entre os diversos crimes pelos quais o Paciente está sendo acusado, não há que se aplicar as regras da conexão, no presente caso, devendo ser mantida a distribuição dos feitos tal como está, pois atende aos preceitos e peculiaridades da Lei 9.613/98. Quanto aos demais crimes, percebo que a Corte de origem agiu acertadamente ao não modificar a competência originária, proferindo sua decisão nos seguintes termos: Assim, não é possível a singela aplicação, como critério de fixação de competência, do disposto no art. 78, II, a e b, do Código de Processo Penal, bem como na Súmula n. 151, do Superior Tribunal de Justiça, dada a complexidade e o grande número de feitos que decorrem das Operações Lince e Plata. Portanto, não configura constrangimento ilegal a decisão da autoridade impetrada que, em face da ocorrência de prevenção (CPP, art. 78, II, c.c. o art. 83) rejeitou a Exceção de Incompetência n. 2006.61.02.000939-5. Ainda, que o resultado tenha sido correto, curiosamente, aquele Tribunal entendeu que o Magistrado singular havia rejeitado a exceção de incompetência por ter assumido, apenas, a prevenção. Porém, tal não foi a intenção do Juiz de Direito, que assim se manifestou, conforme o acórdão guerreado (f. 945/946): Portanto, a questão deve ser analisada de maneira bem mais ampla do que sugere a defesa, não sendo razoável, para aplicação do citado artigo 78, inciso II e alíneas, o confronto apenas dos autos n° 2005.61.02.013850-6 com aquele em curso perante a 1a Vara Federal em Pelotas. Para uma análise completa da sua situação perante este Juízo Federal deve-se examinar, de forma conjunta, todas as ações criminais já distribuídas, por ora, com relação ao excipiente, para, com base em tal somatório, examinar cada uma das hipóteses previstas no citado dispositivo legal. Feito isto, a conclusão não será outra senão a plena competência desta 4a Vara Federal para o processamento do feito em questão. Por outro lado, ainda que as regras processuais previstas nas alíneas 'a' e 'b' do inciso II, do art. 78, do Estatuto Processual Penal não dirimissem a questão, este Juízo Federal também seria prevento em relação ao r. Juízo Federal da 1a Vara de Pelotass-RS. Isto porque, conforme se lê às fls. 230/231 do Apenso de Busca e Apreensão dos Autos n° 2002.61.02.003194-2, cuja cópia ora determino a juntada, este Juízo antecedeu àquele na prática de medida relativa aos fatos em questão, ao proferir, em 18 de junho de 2004, decisão de Busca e Apreensão, por haver constatado, com fundamento nos registros interceptados, a prática dos delitos de descaminho, corrupção ativa e lavagem de dinheiro, por José Antônio Martins, ocasião em que já começava a ser delineado seu papel de grande contrabandista de material de informática no Estado de São Paulo. Portanto, também nos termos do art. 78, inciso II, alínea 'c', e do artigo 83, ambos do Código de Processo Penal, este Juízo Federal revela-se competente para o processamento e demais atos do Processo n° 2005.61.02.013850-6. (realcei) Vê-se que o Juiz de Direito tomou todo o quadro probatório e, considerando haver conexão entre os fatos apurados nos diversos procedimentos a ele distribuídos, e que na sua área de jurisdição foi cometida, em tese, infração cuja pena cominada era mais grave, entendeu por bem manter a sua competência. Além do mais, um simples cotejo entre os elementos presentes nos autos revela que até mesmo o delito invocado pelos Impetrantes como causa atrativa da competência do Juízo Federal de Pelotas/RS, qual seja, o de corrupção ativa, aparentemente também foi cometido no Estado de São Paulo, coerente com a linha de ação da organização criminosa supostamente integrada pelo ora Paciente. Devo dizer que não desconheço a tese esposada na Súmula 151 deste Superior Tribunal de Justiça, de que “a competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do juízo federal do lugar da apreensão dos bens“. Porém, o caso se reveste de peculiaridades impares que devem ser sopesadas adequadamente, em especial a sua enorme complexidade, em que outros delitos foram cometidos, em tese, o grande número de feitos, bem como há excessivo número de acusados, o que, até o momento, recomenda manter a atribuição dos feitos ao Juízo da 4a Vara Federal de Ribeirão Preto. Esta Corte Superior já enfrentou casos semelhantes: PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. DESCAMINHO. LAVAGEM DE DINHEIRO. CRIME FISCAL. CONEXÃO. CONFIGURAÇÃO. JURISDIÇÕES DA MESMA CATEGORIA. PREPONDERÂNCIA DO LOCAL DO CRIME MAIS GRAVE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 151 DESTE TRIBUNAL. 1. Encontrando-se as infrações entrelaçadas, bem como apresentando liame lógico, tem-se presente a conexão, nos termos do art. 76 do CPP. 2. No concurso entre jurisdições da mesma categoria, prepondera a do lugar do delito ao qual é cominada pena mais grave. 3. “A competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do Juízo Federal do lugar da apreensão dos bens“ (Súm. 151 deste Tribunal). 4. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da 2ª Vara da Subseção Judiciária de Juiz de Fora/MG, suscitado. (CC 41.432/RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14.02.2005, DJ 02.03.2005 p. 183) CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CONEXÃO. JURISDIÇÕES DA MESMA CATEGORIA. LOCAL DA INFRAÇÃO COM PENA MAIS GRAVE. I - Em se tratando de conexão de delitos, se o concurso se estabelece entre jurisdições da mesma categoria, prevalece a do local do crime cuja pena cominada é mais grave. II - Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da Comarca de Maracajú-MS, o Suscitado. (CC 21.546/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 16.12.1998, DJ 22.02.1999 p. 65) É de se notar, ainda, que a deflagração das operações de apreensão foi decidida dentro de uma ampla estrutura investigativa, conforme o Magistrado de Primeira Instância (f. 944): Não se pode ignorar que cada um dos feitos já distribuídos em virtude da deflagração da 'Operação Plata', pertencem a uma expressiva cadeia delitiva, e muito embora as denúncias tenham sido autuadas por dependência aos autos n° 2004.61.02.006584-5 – justamente para garantir o pleno exercício do direito de defesa – em verdade, poderiam estar agrupadas numa única exordial acusatória, abrangendo todos os delitos até aqui agrupados. Logo, o critério utilizado pelo Magistrado para afastar a exceção de incompetência, acertadamente, foi o mesmo que os Impetrantes agora invocam para sustentar sua pretensão de modo que os feitos em que são apurados os crimes de lavagem de dinheiro, de contrabando e descaminho e todos os demais imputados ao Paciente, devem permanecer, por hora, na 4a Vara Federal de Ribeirão Preto. Posto isto, conheço parcialmente do habeas corpus , somente quanto à alegada competência do Juízo Federal de Pelotas/RS para julgar os feitos atualmente na 4a Vara Federal de Ribeirão Preto/SP, e nesta parte, denego a ordem impetrada. É como voto.

 
EMENTA -
HABEAS CORPUS. OPERAÇÕES LINCE E “PLATA“. CONTRABANDO. DESCAMINHO. CORRUPÇÃO ATIVA. LAVAGEM DE DINHEIRO. QUESTÃO NÃO LEVADA AO CONHECIMENTO DO TRIBUNAL A QUO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. LEI ESPECIAL. CONEXÃO. REGRA DE COMPETÊNCIA. AUTONOMIA. CONCURSO DE JURISDIÇÕES. PENA COMINADA MAIS GRAVE. PREVALÊNCIA DO LOCAL. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E DENEGADA. 1. Hipótese em que a questão relativa à incompetência do Juízo Federal para julgar os feitos a ele atribuídos não foi submetida ao Tribunal Regional Federal. 2. Evidenciado que a questão relativa à incompetência do Juízo Federal para julgar os feitos a ele atribuídos não foi, ainda, apreciado pelo Tribunal a quo, deixa-se de apreciar o mérito do habeas corpus, nesta parte, sob pena de indevida supressão de instância. 3 . Embora se reconheça a ligação aparente entre os diversos crimes pelos quais o Paciente está sendo acusado, não há que se aplicar as regras da conexão, no presente caso, devendo ser mantida a distribuição dos feitos tal como está, pois atende aos preceitos e peculiaridades da Lei de Lavagem de Dinheiro. 4 . Havendo conexão de delitos, estabelecido o concurso entre jurisdições da mesma categoria, prevalece a do local do crime cuja pena cominada é a mais grave. Antecedentes. 5 . Conheceram parcialmente do habeas corpus, somente quanto à alegada competência do Juízo Federal de Pelotas/RS para julgar os feitos atualmente na 4a Vara Federal de Ribeirão Preto/SP, e nesta parte, denegaram a ordem impetrada.

 
ACÓRDÃO -
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer parcialmente do pedido e, nessa parte, denegar a ordem. Os Srs. Ministros Felix Fischer, Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e Napoleão Nunes Maia Filho votaram com a Sra. Ministra Relatora. Sustentou oralmente DR. EDUARDO DE VILHENA TOLEDO, pelo paciente. Brasília, 11 de dezembro de 2007.(Data do Julgamento)

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