Processo fundado na Lei 11.343/06 (tráfico de entorpecentes). Prisão em flagrante (caso). Liberdade provisória (indeferimento). Fundamentação (falta).
Rel. Min. Nilson Naves
RELATÓRIO - O EXMO. SR. MINISTRO NILSON NAVES: Foi o paciente – e outros dois – preso em flagrante, por tráfico de entorpecentes e associação. Colho o seguinte trecho da denúncia: “Consta do incluso inquérito policial que, no dia 18 de janeiro de 2007, por volta das 18:00 horas, na rua Luiz Cláudio Gual, bairro Jardim Planalto Verde, nesta cidade, Alexandre de Carvalho, qualificado a fls. 07, John Kleber Laudelino Rovanhol, qualificado a fls. 08, e Matheus Rodrigues, qualificado a fls. 10, juntamente com o adolescente infrator Luciano Borelli Rodrigues, associaram-se para o fim de praticar quaisquer dos crimes previstos nos artigos 33, 'caput', e § 1º, e 34, da Lei n. 11.343/06, bem como traziam consigo, depois de adquirir e receber de maneira escusa, para fim de tráfico, com entrega a consumo de terceiros, 1.948g do entorpecente metil benzoil ecgonina, conhecido por 'cocaína', substância esta capaz de determinar dependência física e psíquica, sem autorização e em desacordo com determinação legal e regulamentar. Consta ainda que, no mesmo dia, horário e local, John Kleber Laudelino Rovanhol, qualificado a fls. 08, e Matheus Rodrigues, qualificado a fls. 10, juntamente com o adolescente infrator Luciano Borelli Rodrigues, colaboraram como informantes de grupo destinado à prática de qualquer dos crimes previstos nos artigos 33, 'caput', e § 1º, e 34, da Lei n. 11.343/06. Segundo se apurou, agentes da Polícia Federal estavam investigando há cerca de dois meses uma quadrilha de traficantes que atuavam na região do bairro Simione, liderada pelo indiciado Alexandre, sendo que constataram que o mesmo guardava a droga em sua residência e a vendia nas proximidades de um bar por ele freqüentado. Na data dos fatos os agentes permaneceram em observação próximo ao referido bar, oportunidade em que os 'olheiros' John Kleber, Matheus e o adolescente Luciano perceberam e passaram a se comunicar com todos os suspeitos do local, certamente alertando-os quanto à presença da polícia. Posteriormente, os agentes passaram a seguir o indiciado Alexandre, que trafegava com seu automóvel VW/Golf, certo que avistaram os contatos mantidos pelo mesmo com Walter Sebastião da Silva e José Odilon Diniz e decidiram abordá-lo. Durante a abordagem apreenderam no interior do automóvel uma porção de 'crack', além de dois cheques preenchidos no valor de R$ 1.600,00 cada, ocasião em que o prenderam em flagrante delito. Prosseguindo nas diligências os agentes se dirigiram até a residência de Alexandre, onde localizaram seis frascos de vidro contendo éter (substância utilizada no preparo da 'cocaína'), além de um laboratório de refino e preparo de drogas, onde havia 'cocaína', 'crack', uma balança de precisão e outros produtos químicos (apreendidos a fls. 18/19). Diante das evidências com relação ao tráfico de entorpecentes, os agentes prenderam também em flagrante delito os indiciados John Kleber e Matheus. A conduta dos indiciados, que se associaram para o tráfico de entorpecentes, a quantidade de entorpecentes apreendidos em poder de Alexandre, a forma como estavam acondicionados, o laboratório de preparo de drogas encontrado em sua residência, além de outros elementos circunstanciais e pessoais, evidenciam o comércio ilícito.“ Quando indeferiu a liberdade provisória, disse a Juíza de Direito da 3ª Vara Criminal de Ribeirão Preto: “1. Trata-se de apreciar requerimento de liberdade provisória formulado em favor de Alexandre de Carvalho, que contou com o parecer desfavorável do representante do Ministério Público. Em princípio de análise, impõe afirmar que inexiste qualquer vício aparente na lavratura da prisão em flagrante, que fica mantida. Não obstante os atributos pessoais do réu, cuidando-se de delito assemelhado a hediondo, a lei proíbe expressamente o benefício de o agente responder ao processo em liberdade (Lei nº 8.072/90 e art. 44 da Lei nº 11.343/2006), sobretudo face à externa gravidade da imputação. O mais diz respeito ao mérito e será analisado em momento procedimental oportuno. Ante o exposto, persistindo intactos os motivos da prisão cautelar, indefiro a pretensão, mantendo-se o encarceramento de Alexandre de Carvalho.“ No Tribunal de Justiça de São Paulo, foi a prisão cautelar mantida. Daí o presente habeas corpus, mediante o qual se renova o pleito de liberdade provisória. Opinou o Ministério Público Federal, nas palavras do Subprocurador-Geral Henrique Fagundes, pela concessão da ordem. Últimas informações dão conta de que o feito ainda se encontra na fase de instrução. É o relatório.
VOTO - O EXMO. SR. MINISTRO NILSON NAVES (RELATOR): O que apontou a autoridade judicial a fim de negar a liberdade provisória foi a vedação legal (art. 44 da Lei nº 11.343/06) e a gravidade do delito. Creio não ser isso suficiente. Ora, se a pessoa foi presa em flagrante delito, tem direito à liberdade provisória, e tem-no de acordo com as rezas do art. 310 e seu parágrafo único do Cód. de Pr. Penal. Tal decorre do sistema adotado pelo legislador pátrio, salvo no caso de decisão suficientemente fundamentada. É bom lembrar que a condição de culpado só resulta do trânsito em julgado, tanto assim que venho ementando – são inúmeros os casos – da seguinte maneira (HC-47.681, DJ de 17.4.06): “Prisão em flagrante. Liberdade provisória. Fundamentação (falta). 1. Toda medida cautelar que afete pessoa haverá de conter os seus motivos, por exemplo, a prisão preventiva haverá de ser sempre fundamentada, quando decretada e quando denegada (Cód. de Pr. Penal, art. 315). 2. Sendo lícito ao juiz, no caso de prisão em flagrante, conceder ao réu liberdade provisória (Cód. de Pr. Penal, art. 310, parágrafo único), o seu ato, seja ele qual for, não prescindirá de fundamentação. 3. Tratando-se de ato (negativo) sem suficiente fundamentação, é de se reconhecer, daí, que o paciente sofre a coação ensejadora do habeas corpus. 4. A simples capitulação legal do crime como hediondo não impede a concessão de liberdade provisória. 5. Habeas corpus deferido.“ Em suma, toda e qualquer prisão que tenha caráter de medida cautelar há de vir, sempre e sempre, efetivamente fundamentada. É o sistema – decorre das normas que informam o ordenamento jurídico brasileiro. Entre nós, o benefício de liberdade provisória começou a ganhar fôlego com a repetição dos julgados, a ponto de se alterar a Lei nº 8.072/90 segundo esta exposição de motivos: “3. A proposta de alteração do inciso II do artigo 2º busca estender o direito à liberdade provisória aos condenados por esses delitos, em consonância com o entendimento que já vem se tornando corrente nas instâncias superiores do Poder Judiciário. 4. Dessa forma, preserva-se o poder geral de cautela do juiz, que decidirá se os acusados dos crimes previstos na Lei nº 8.072, de 1990, poderão ou não responder ao processo em liberdade. Pretende-se, com isso, evitar os efeitos negativos da privação de liberdade quando, diante do exame das circunstâncias do caso concreto, a medida se mostrar eventualmente desnecessária.“ Sempre sustentei ser inadmissível prisão de natureza cautelar – seja lá qual for a espécie de crime – despida de real fundamentação. Há, contudo, entendimento que se apoia no inciso XLIII do art. 5º da Constituição para ter alguns crimes por insuscetíveis de liberdade provisória. O argumento nunca me convenceu: é que não se cuida de fiança, e sim de fundamentação. O próprio legislador voltou sobre os seus próprios passos, alterando a Lei nº 8.072/90 (“sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal“). Norma por norma constitucional, há tantas outras, e tantas noutro sentido. Se se lê, no inciso, XLIII, que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis, etc., de igual modo, lê-se, no mesmo texto constitucional, o seguinte: “LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seu bens sem o devido processo legal“ (art. 5º). “LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes“ (art. 5º).“LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória“ (art. 5º). “LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei“ (art. 5º). “LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança“ (art. 5º). “IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação“ (art. 93). E norma por norma infraconstitucional, também há outras, ei-las: “Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (arts. 311 e 312)“ (art. 310, parágrafo único, do Cód. de Pr. Penal). “O despacho que decretar ou denegar a prisão preventiva será sempre fundamentado“ (art. 315 do Cód. de Pr. Penal). É de Lauria Tucci o seguinte (“Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro“, 2ª ed., pág. 325): “Em epítome, perfeitamente conciliáveis os preceitos contidos, por um lado, nos incs. XLII, XLIII e XLIV, e, por outro, no inc. LXVI do art. 5º da CF, inarredável afigura-se o direito subjetivo do imputado à liberdade provisória, quando admissível, mesmo que a infração penal seja tida pela lei como inafiançável. Esta, na lapidar expressão de Santo Tomás de Aquino, deve sempre atentar para a ordem racional das coisas e para o bem comum: 'Est quaedam rationis ordinatio ad bonum commune ab eo qui curam habet communitatis promulgata '.“ Tão relevante é a fundamentação, que a não-fundamentação da decisão coloca-nos diante de situação estranhíssima. Imaginemos duas condutas: uma, a de alguém expondo à venda um grama de substância entorpecente; outra, a de alguém expondo à venda (tendo em depósito, etc.) cem quilos de substância entorpecente – são condutas diferentes, é claro. É lícito ao juiz dar a ambas as condutas igual tratamento, a saber, negar a tais acusados liberdade provisória (foram presos em flagrante) sem nenhum fundamento, salvo a referência à lei pertinente? Isso me soa estranho, estranhíssimo. Por fim – o último, mas não o menor dos motivos –, confiram o que, na ADI-3.112-1, disse o Ministro Lewandowski a propósito da Lei nº 10.826/03 (é sabido que o Supremo Tribunal proclamou a inconstitucionalidade do art. 21, segundo o qual “os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória“): “... penso que o texto constitucional não autoriza a prisão ex lege, em face do princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF), e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente (art. 5º, LXI, da CF). A prisão obrigatória, de resto, fere os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV), que abrigam um conjunto de direitos e faculdades, os quais podem ser exercidos em todas as instâncias jurisdicionais, até a sua exaustão. Esses argumentos, no entanto, não afastam a possibilidade de o juiz, presentes os motivos que recomendem a prisão ante tempus , decretar justificadamente a custódia cautelar. O que não se admite, repita-se é uma prisão ex lege, automática, sem motivação. Em outras palavras, o magistrado pode, fundamentadamente, decretar a prisão cautelar, antes do trânsito em julgado da condenação, se presentes os pressupostos autorizadores, que são basicamente aqueles da prisão preventiva, previstos no art. 312 do Código de Processo Penal. É dizer, cumpre que o juiz demonstre, como em toda cautelar, a presença do fumus boni iuris, e do periculum in mora, no caso, do periculum libertatis .“ Voto, pois, pela concessão da ordem a fim de deferir ao paciente liberdade provisória mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação. Estendo os efeitos da ordem aos co-réus, John Kleber Laudelino Rovanhol e Matheus Rodrigues.
VOTO - SR. MINISTRO CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO): Sr. Presidente, não sou digno de desatar-lhes as sandálias. Vou acompanhar o voto de V. Exa., mas com ressalva. Confesso que tenho algumas dúvidas. Tenho o apoio de três renomados magistrados em um sentido, e, ainda, do douto representante do Ministério Público, Dr. enrique Fagundes Filho. Trata-se de conhecido colega de magistério na Universidade. Jurista de grande valor intelectual e que merece meu respeito. Entretanto, não gostaria de tecer considerações que seriam despiciendas para isso. Porém, não sei se a variação da insignificância, da bagatela ou, coisa assim, seria aplicada a esta matéria com variação, todas contendo mesmo tema. Não estou fracionando a decisão. Acompanho o voto de V. Exa., concedendo a ordem de habeas corpus, porém com ressalva. PRESIDENTE O SR. MINISTRO NILSON NAVES RELATOR O SR. MINISTRO NILSON NAVES
EMENTA - Processo fundado na Lei nº 11.343/06 (tráfico de entorpecentes). Prisão em flagrante (caso). Liberdade provisória (indeferimento). Fundamentação (falta). 1. Toda medida cautelar que afete pessoa haverá de conter os seus motivos, por exemplo, a prisão preventiva haverá de ser sempre fundamentada, quando decretada e quando denegada (Cód. de Pr. Penal, art. 315). 2. Sendo lícito ao juiz, no caso de prisão em flagrante, conceder ao réu liberdade provisória (Cód. de Pr. Penal, art. 310, parágrafo único), o seu ato, seja ele qual for, não prescindirá de fundamentação. 3. Na hipótese, a manutenção da prisão decorreu apenas da gravidade abstrata do delito e da vedação contida no art. 44 da Lei nº 11.343/06; tais aspectos, entretanto, não são suficientes para justificar, a contento, a manutenção da prisão cautelar. 4. Caso no qual o ato judicial que indeferiu a liberdade provisória carece de suficiente motivação; falta-lhe, portanto, validade, decorrendo daí ilegal coação. 5. Ordem concedida com extensão aos co-réus.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEXTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conceder a ordem de habeas corpus com extensão aos co-réus, John Kleber Laudelino Rovanhol e Matheus Rodrigues, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo Gallotti, Maria Thereza de Assis Moura e Carlos Fernando Mathias (Juiz convocado do TRF 1ª Região) votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Hamilton Carvalhido. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nilson Naves. Brasília, 18 de setembro de 2007 (data do julgamento).
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