Habeas Corpus Nº 87.503-3/pa

Sentença. Mutatio libelli. Inocorrência. Fatos descritos na denúncia iguais aos considerados na sentença, diferindo, apenas, a qualificação jurídica sobre eles. Hipótese que caracteriza emendatio libelli, sendo desnecessária abertura de prazo para a defesa.

Rel. Min. Carlos Ayres Britto


RELATÓRIO - O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO (Relator):
Cuida-se de habeas corpus, impetrado contra decisão do ilustrado Ministro Carlos Madeira, do Tribunal Superior Eleitoral. Decisão proferida nos autos do Agravo de Instrumento nº 5.897/TSE e que reformou acórdão do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Pará, restabelecendo a sentença criminal condenatória de primeira instância. 2. Pois bem, o ora paciente foi denunciado pelos crimes descritos no art. 299 do Código Eleitoral, “em decorrência de supostas fraudes ocorridas na consulta plebiscitária de Mojuí dos Campos, Distrito de Santarém“. Fraudes que culminaram com a anulação do pleito, voltado à emancipação de Mojuí dos Campos, localidade do município de Santarém. 3. Deu-se que o paciente, muito embora denunciado pelo delito inscrito no art. 299 do Código Eleitoral, veio a ser condenado a 7 anos, 4 meses e 12 dias de reclusão, pela prática dos crimes tipificados nos arts. 308, 309, 310, 339 e 348 do Código Eleitoral. Isto, a despeito da diversa capitulação constante da denúncia. 4. Irresignado com este decisum, o paciente recorreu ao Tribunal Regional Eleitoral, que acolheu a pretensão e anulou a sentença condenatória, por entender ocorrente hipótese de mutatio libelli. O que motivou a interposição de recurso do Ministério Público Eleitoral ao Tribunal Superior Eleitoral. E foi o provimento deste apelatório, com o conseqüente restabelecimento da original sentença condenatória, que ensejou a presente impetração. 5. Aqui, o que se postula em sede de liminar é a “concessão do providencial Alvará de Soltura, para fim de aguardar em liberdade o julgamento do (...) writ“ e, no mérito, o reconhecimento da “nulidade“ do decisum do TSE, “restabelecendo-se a decisão da Corte Eleitoral Paraense, declaratória da presença da mutatio libelli na sentença condenatória por si anulada“. 6. Prossigo neste relato para averbar que indeferi a medida liminar, ante a ausência de seus pressupostos. Ao que se seguiu remessa dos autos ao Ministério Público Federal, que opinou pela denegação da ordem, em parecer assim sintetizado: HABEAS CORPUS. CRIMES ELEITORAIS. MUTATIO LIBELLI. PROVIDÊNCIA EXPRESSAMENTE PERMITIDA PELO ART. 383 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. JURA NOVIT CURIA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL A SER SANADO. 1. O juiz sentenciante efetuou apenas novo enquadramento legal do fato narrado na denúncia, não havendo necessidade, por conseqüência, de abrir vista para que o paciente se defendesse, uma vez que considerou exatamente os mesmos fatos que deram ensejo à propositura da ação penal. Inteligência do art. 383 do Código de Processo Penal – emendatio libelli. 2. Parecer pela denegação. 7. Por se tratar de habeas corpus contra o Tribunal Superior Eleitoral, submeto o feito à apreciação deste egrégio Plenário, nos termos da alínea “a“ do inciso I do art. 6º do Regimento Interno da Corte. É o relatório.

 
VOTO - O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO (Relator):
Consoante relatado, a tese central do presente writ consiste em saber se a sentença de primeira instância, ao condenar o paciente por infrações diversas daquelas capituladas na denúncia, teria incorrido em mutatio libelli, com o fito de impor a observância do art. 384 do CPP. 10. Bem vistas as coisas, entendo que é de ser mantida a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, na mesma linha, por sinal, do parecer do Ministério Público Federal. 11. Com efeito, reza o diploma processual penal que, “Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se quiser, produza provas, podendo ser ouvidas até três testemunhas“. Trata-se, aí, da mutatio libelli, a ocorrer sempre que, durante a instrução criminal, restar evidenciada a prática de ilícito cujos dados elementares do tipo não foram descritos, nem sequer de modo implícito, na peça da denúncia. 12. Dito de outro modo, quando o caminhar do processo revelar a prática de condutas outras, distintas daquelas descritas na denúncia, é de se oportunizar aos acusados a impugnação também desses novos dados factuais, em homenagem à garantia constitucional da ampla defesa. Em poucas palavras, em se tratando de mutatio libelli, imperiosa a abertura de vista à defesa. 13. Assim não ocorre, contudo, quando se está diante de emendatio libelli. Esta se verifica sempre que os fatos descritos na denúncia são iguais aos considerados na sentença, diferindo, apenas, a qualificação jurídica sobre eles (fatos) incidente. Noutros termos, há emendatio libelli sempre que a sentença, presentes na denúncia todos os elementos do tipo, dê aos mesmos fatos descritos na peça acusatória capitulação diversa. Daí que, ocorrendo emendatio libelli, não há que se cogitar de nova abertura de vista à defesa, pois o réu deve se defender dos fatos que lhe são imputados, e não das respectivas definições jurídicas. 14. Se é assim, se na emendatio libelli não há inovação quanto aos fatos, não restam depauperadas as garantias da ampla defesa e do contraditório; razão por que não se deve pretender nova abertura de vista aos acusados. É neste mesmo sentido, aliás, a jurisprudência desta Casa da Justiça brasileira (HCs 73.366, Rel. Min. Marco Aurélio; 74.553, Rel. Min. Néri da Silveira; 80.204, Rel. Min. Mauricio Corrêa; 67.997, Rel. Min. Celso de Mello e RHC 82.589, Rel. Min. Nelson Jobim, os dois últimos com as seguintes ementas): “- A NOVA CLASSIFICAÇÃO JURÍDICA DADA AOS FATOS RELATADOS DE MODO EXPRESSO NA DENÚNCIA, INOBSTANTE A ERRÔNEA QUALIFICAÇÃO PENAL POR ELA ATRIBUÍDA AOS EVENTOS DELITUOSOS, NÃO TEM O CONDÃO DE PREJUDICAR A CONDUÇÃO DA DEFESA TÉCNICA DO RÉU, DESDE QUE PRESENTES, NAQUELA PEÇA PROCESSUAL, OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PRÓPRIO TIPO DESCRITO NOS PRECEITOS REFERIDOS NO ATO SENTENCIAL. DEFENDE-SE O RÉU DO FATO DELITUOSO NARRADO NA DENÚNCIA, E NÃO DA CLASSIFICAÇÃO JURÍDICO-PENAL DELA CONSTANTE. A REGRA DO ARTIGO 384 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL SÓ TERIA PERTINÊNCIA E APLICABILIDADE SE A NOVA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DADA AOS FATOS DESCRITOS NA PEÇA ACUSATÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DEPENDESSE, PARA SUA CONFIGURAÇÃO, DE CIRCUNSTÂNCIA ELEMENTAR NÃO CONTIDA, EXPLÍCITA OU IMPLICITAMENTE, NA DENÚNCIA“. (HC 67.997) “RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. EMENDATIO LIBELLI. FALTA DE JUSTA CAUSA. NULIDADE DA FUNDAMENTAÇÃO DA PENA BASE. MÉTODO TRIFÁSICO DE FIXAÇÃO DA PENA. Não há controvérsia que no processo penal o réu defende-se dos fatos descritos na denúncia e não da capitulação dada pelo Ministério Público. O Código Processual Penal contempla a possibilidade da emendatio libelli, que não se confunde com a mutatio libelli. A jurisprudência deste Tribunal é tranqüila quanto à possibilidade do juiz dar, na sentença, definição jurídica diversa da que consta na denúncia. Só não seria possível tal procedimento se, para caracterização do novo delito, faltasse alguma circunstância elementar que não estivesse descrita implícita ou explicitamente na denúncia. Hipótese em que ocorreria a mutatio libelli (CPP, art. 384). No caso, a sentença fez uma emendatio libelli. Analisou os fatos descritos na denúncia e os capitulou adequadamente (...)“(RHC 82589). 15. Presente esta ampla moldura, não vejo como enquadrar os autos em situação de mutatio libelli. É que os fatos narrados na denúncia (e contra os quais se defendeu o paciente) são exatamente os mesmos descritos na sentença condenatória. A divergência, portanto, limitou-se à subsunção daqueles elementos factuais às normas penais constantes do Código Eleitoral. 16. Ora bem, a peça acusatória assim descreveu a participação de Mário Bezerra Feitosa (ora paciente) nos eventos criminosos ocorridos durante consulta plebiscitária (fls. 86/87): “Depreende-se da leitura do supramencionado auto que, no dia 03.12.95, os presidentes das seções eleitorais 438 e 506, os Srs. Mário da Conceição Pereira Brasil e Pedro Alves Bezerra, respectivamente, efetuaram a votação em lugar dos eleitores faltosos, sendo que assim procederam em decorrência do pedido do Vereador Mário Bezerra Feitosa, orientando inclusive como proceder, utilizando-se da alegação de que deveriam ajudar o município de Mojuí dos Campos a se emancipar. Consta, ainda, que o presidente da Seção nº 506, o Sr. Pedro Alves Bezerra, chamou as mesárias da referida seção (...) para votarem pelos eleitores faltosos, tendo estas anuído ao seu convite e por volta das 12:00 horas iniciaram a votação pelos eleitores que sabiam não estar presentes na comunidade naquele dia, encerrando tais atos fraudulentos por volta das 17:00, lacrando a urna e lavrando a ata. Em relação ao presidente da Seção nº 436 (...), este não obteve a anuência das mesárias (...), e, seguindo a orientação de seu mentor, Mário Feitosa, procurou a Sra. Claudete Paula da Silva, levando a urna aberta para a residência da mesma, onde passaram a votar pelos eleitores que não compareceram, sendo a folha de votação assinada por várias pessoas que ali se encontravam, confirmado pelo exame grafotécnico...“. 16. De seu turno, a sentença condenatória assim narrou a conduta do paciente (fls. 11/12): MÁRIO BEZEERA FEITOSA (...). Diante do Comunicado de fls. 02/03, das declarações prestadas pelos outros acusados, fls. 04/06 e 09/24 (..); do Relatório de fls 57/62 dos autos do processo criminal, comprovou-se que a conduta do réu não se enquadra na figura típica do mencionado artigo, pois o mesmo não praticou nenhuma das ações previstas no art. 299 do CE, ou seja, ‘ Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir abstenção, ainda que a oferta não seja aceita’. O acusado, desta feita, entende este magistrado, não deve responder pela prática do art. 299, como pede o representante do Ministério Público, em sua peça acusatória de fls. 02/06. Porém, através de exaustivo estudo dos autos processuais, verifica-se que o mesmo foi o responsável principal pela realização do evento delituoso mediante fraude do Plebiscito eleitoral da Vila de Mojuí dos Campos. Evento este que ocasionou sua posterior anulação. Considerando-o como mentor intelectual das condutas praticadas pelos outros acusados, tipificadas nos arts. 308, 309, 310, 339 e 348 do CE (sic). Entendimento este que apresenta-se respaldado nos termos do art. 383 do Código de Processo Penal (emendatio libelli), que autoriza o juiz a dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia. Por esse motivo, não deve o acusado responder como incurso nas penas do art. 299 e, sim, como co-autor das figuras delituosas praticadas pelos demais acusados, ou seja, arts. 308, 309, 310, 339 e 348, todos do Código Eleitoral Brasileiro, haja vista que ficou perfeitamente configurado a co-autoria dos crimes em pauta, na qualidade de mentor intelectual...“ 17. De se ver, portanto, que a sentença condenatória nada mais fez que dar novo enquadramento jurídico aos mesmos fatos constantes da inicial acusatória. Tanto é assim que denúncia e sentença, ambas, descrevem o paciente como sendo o “mentor“ das fraudes eleitorais ocorridas. 18. Daí o acerto do parecer ministerial público, ao anotar que o “Juízo limitou-se a dar aos fatos narrados na denúncia outra definição legal, o que é plenamente autorizado pelo art. 383 do Código de Processo Penal, ainda que resulte em pena mais gravosa. Não há falar, portanto, em mutatio libelli, como quer fazer crer a defesa...“ (fls. 96). 19. Por tudo quanto posto, indefiro a ordem de habeas corpus. 20. É como voto.

 
EMENTA -
HABEAS CORPUS. TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. COMPETÊNCIA DO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (ALÍNEA “A“ DO INCISO I DO ART. 6º DO RI/STF). SENTENÇA QUE CONDENOU O PACIENTE POR CRIMES DIVERSOS DAQUELES CAPITULADOS NA DENÚNCIA. ALEGADA OCORRÊNCIA DE MUTATIO LIBELLI, A MOTIVAR A ABERTURA DE VISTA PARA DEFESA. Dá-se mutatio libelli sempre que, durante a instrução criminal, restar evidenciada a prática de ilícitos cujos dados elementares do tipo não foram descritos, nem sequer de modo implícito, na peça de denúncia. Em casos tais, é de se oportunizar aos acusados a impugnação também desses novos dados factuais, em homenagem à garantia constitucional da ampla defesa. Verifica-se emendatio libelli naqueles casos em que os fatos descritos na denúncia são iguais aos considerados na sentença, diferindo, apenas, a qualificação jurídica sobre eles (fatos) incidente. Ocorrendo emendatio libelli, não há que se cogitar de nova abertura de vista à defesa, pois o réu deve se defender dos fatos que lhe são imputados, e não das respectivas definições jurídicas. Sentença condenatória que nada mais fez que dar novo enquadramento jurídico aos mesmos fatos constantes da inicial acusatória, razão pela qual não há que se exigir abertura de vista à defesa. Ordem denegada.

 
ACÓRDÃO -
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por seu Tribunal Pleno, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em indeferir a ordem, nos termos do voto do Relator. Brasília, 29 de junho de 2006.

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