Crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Inobservância do rito procedimental estabelecido pela Lei 10.409/02. Ausência de defesa preliminar. Nulidade absoluta. Lei 11.343/06. Revogação expressa da Lei 10.409/02. Regra de direito processual. Aplicação imediata.
Rel. Min. Laurita Vaz
RELATÓRIO - EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ: Trata-se de habeas corpus , com pedido de liminar, impetrado em favor de GILBERTO DO NASCIMENTO GARDIL, em face de acórdão, proferido em sede de apelação, pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Narra a Impetrante que o ora Paciente foi condenado, em primeiro grau, como incurso no art. 12, caput, da Lei n.º 6.368/76, às penas de 04 anos, 04 meses e 15 dias de reclusão, em regime integralmente fechado, e 72 dias-multa. Em sede de apelação da defesa, a pena foi reduzida, em virtude do afastamento dos maus antecedentes, para 03 anos e 06 meses de reclusão e 66 dias-multa, além, ainda, de ter sido fixado o regime inicial fechado para o cumprimento da pena. Alega o Impetrante, em suma a nulidade do feito por inobservância do rito previsto na Lei n.º 10.409/02, vigente à época dos fatos e do processo. Requer, assim, a concessão de liminar, a fim de que seja expedido alvará de soltura em favor do Paciente, e no mérito, a concessão da ordem “para que se declare a nulidade do processo-crime em questão, nos termos do art. 648 VI do CPP, cancelando-se o recebimento da denúncia inclusive , a fim de que seja obedecida a fase da defesa preliminar, instituída pela Lei 10.409/2002, renovando-se toda a instrução“ (fl. 08). O pedido de liminar foi deferido nos termos da decisão de fls. 38/40. O Ministério Público Federal manifestou-se às fls. 47/50, opinando pela concessão da ordem. É o relatório.
VOTO - EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ (RELATORA): De início, como bem observado pelo órgão ministerial, e conforme se pode depreender do teor do acórdão impugnado (fls. 30/35), não foi seguido o rito procedimental previsto no art. 38, § 3.º, da Lei n.º 10.409/2002, já que não oportunizado ao réu o oferecimento de defesa preliminar, antes do recebimento da denúncia. Nessa vertente, cabe esclarecer que o Tribunal de origem, ao referendar a ilegalidade por ocasião do julgamento da apelação interposta, tornou-se autoridade coatora. É certo que a parte de direito material, concernente à tipificação dos delitos de tráfico e de associação eventual para o tráfico ilícito de entorpecentes, prevista na Lei n.º 10.409/2002, foi vetada. No entanto, as normas processuais especiais dispostas na referida lei, passaram a vigorar, já que a Lei n.º 6.368/1976 foi revogada, apenas, parcialmente. Sendo assim, a instrução criminal dos crimes previstos na Lei de Tóxicos de 1976 passou a ser regulada pela novel legislação especial, restando consagrado o princípio do garantismo penal, ao instituir a resposta escrita à acusação, antes do recebimento da denúncia. Nesse diapasão: “HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. LEIS Nºs 6.368/76 E 10.409/02. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. APLICAÇÃO DO ART. 2º, § 1º, DA LEI DE INTRODUÇÃO DO CÓDIGO CIVIL. INOBSERVÂNCIA DO NOVO RITO. FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DO EFETIVO PREJUÍZO CAUSADO À DEFESA. NULIDADE INEXISTENTE. 1. A Lei n.º 6.368/76 permanece em vigor naquilo em que não confronta com a Lei n.º 10.409/02, não podendo o magistrado deixar de aplicar o novo rito procedimental, que não foi vetado, produzindo efeitos desde a sua edição. 2. A melhor solução para esse conflito aparente de normas encontra-se no art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução do Código Civil, segundo o qual 'a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando com ela seja incompatível ou quando regule inteiramente toda a matéria de que tratava a anterior'. 3. A alegação de nulidade pela não observância do novo rito há de ser avaliada em cada caso, sempre tendo em conta o prejuízo que possa ter advindo para o acusado, a ser objetivamente demonstrado. 4. Habeas corpus denegado.“ (HC 24.779/MS, 6.ª Turma, Rel. Min. PAULO GALLOTTI, DJ de 20/09/2004.) Ressalte-se que a inobservância do rito procedimental disposto na Lei n.º 10.409/02 enseja a declaração da nulidade do processo-crime, por descumprimento ao princípio da ampla defesa e do contraditório, conforme já pacificado pelo Supremo Tribunal Federal. É, aliás, o que se extrai do informativo de jurisprudência n.º 436 do Pretório Excelso que, ao julgar o HC 87.346/MT, declarou a nulidade da instrução criminal por inobservância do rito previsto, in verbis : “A Turma, por maioria, deferiu habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ que denegara idêntica medida ao fundamento de falta de demonstração de prejuízo pela inobservância do art. 38 da Lei 10.409/2002. No caso, o paciente fora inicialmente denunciado pela suposta prática, em concurso material, de crimes contra a ordem tributária e de lavagem de dinheiro (Lei 8.137/90, art. 1º, I e Lei 9.613/98, art. 1º, § 1º, II), vindo a denúncia a ser aditada para incluir os delitos de tráfico de entorpecentes e de associação para o tráfico (Lei 6.368/76, artigos 12 e 14). Após o recebimento desse aditamento, decretara-se a prisão preventiva do paciente e de co-réu. Entendeu-se não assegurado o exercício do contraditório prévio determinado pelo aludido art. 38 da Lei 10.409/2002, em afronta ao seu direito de defesa. Em conseqüência, tendo em conta a imbricação da custódia preventiva com o mencionado aditamento, asseverou-se que aquela não poderia subsistir. O Min. Sepúlveda Pertence, por sua vez, em face da ausência de fundamentação idônea, deferiu o writ por considerar que o decreto de prisão preventiva embasou-se em presunções quanto à periculosidade do paciente e a sua influência na instrução criminal. Vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski, relator, e Carlos Britto que deferiam parcialmente o habeas corpus, mantendo a prisão do paciente, por reputar que os seus fundamentos não abrangiam apenas os crimes tipificados na Lei de Tóxicos. HC 87346/MT, rel. orig. Min. Ricardo Lewandowski, rel. p/ o acórdão Min. Carmen Lúcia,15.8.2006. (HC-87346)“ Por derradeiro, cumpre ainda salientar que a Lei n.º 10.409/02 foi recentemente revogada pela Lei n.º 11.343/06, razão pela qual, à luz do princípio do 'tempus regit actum', que confere à lei processual aplicação imediata, a instrução criminal ora examinada deverá ser ab initio anulada, devendo o juízo processante adotar e observar o rito procedimental previsto na Lei n.º 11.343/06, que também estabelece, em seu art. 55, a defesa preliminar, antes estatuída na Lei n.º 10.409/02. Nesse sentido, os seguintes precedentes: “HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. INOBSERVÂNCIA DO RITO PROCEDIMENTAL DA LEI 10.409/02. AUSÊNCIA DE NOMEAÇÃO DE DEFENSOR DATIVO PARA A APRESENTAÇÃO DE DEFESA PRELIMINAR. NULIDADE ABSOLUTA. ORDEM CONCEDIDA. 1. A inobservância do rito procedimental da Lei 10.409/02 para o processamento dos crimes previstos na Lei 6.368/76 é causa de nulidade absoluta, por violação dos princípios da ampla defesa e do devido processo legal. Precedentes desta Corte e do STF. 2. Na hipótese, não obstante o paciente tenha sido notificado para a apresentação da defesa preliminar ao recebimento da denúncia, o magistrado singular não observou o disposto no § 3º do art. 38 da lei 10.409/02, segundo o qual “Se a resposta não for apresentada no prazo, o juiz nomeará defensor para oferecê-la em 10 (dez) dias, concedendo-lhe vista dos autos no ato de nomeação“. 3. Com a anulação do processo desde o recebimento da denúncia, em consonância com o art. 2º do CPP, o rito que deverá ser seguido é o da Lei 11.343, de 23/8/06, que revogou as Leis 6.368/76 e 10.409/02, mas manteve, em seu art. 55, a regra da notificação do acusado, antes do recebimento da denúncia, para o oferecimento de defesa preliminar. 4. Ordem concedida para anular o processo a que responde o paciente, a partir do recebimento da denúncia, a fim de que seja processado segundo o rito procedimental da Lei 11.343/06, com a conseqüente expedição de alvará de soltura, se por outro motivo não estiver preso.“ (HC 60.339/SP, 5.ª Turma, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJ de 12/03/2007.) “PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 12, CAPUT, DA LEI Nº 6.368/76 (ANTIGA LEI DE TÓXICOS). INOBSERVÂNCIA DO RITO PROCEDIMENTAL PREVISTO NA LEI Nº 10.409/02. NULIDADE DO PROCESSO. LEI Nº 11.343/06. IGUAL PREVISÃO DE DEFESA PRELIMINAR. Na linha de precedentes, a inobservância do rito procedimental estabelecido na Lei nº 10.409/02, constitui nulidade processual absoluta, sendo prescindível a demonstração de prejuízo (Precedentes do STJ e Pretório Excelso). Writ concedido.“ (HC 64.389/SP, 5.ª Turma, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ de 26/02/2007.) Por outro lado, como o Paciente está preso há quase 04 anos, anulado o processo desde o recebimento da denúncia, torna-se evidente o excesso de prazo, uma vez que a instrução terá que ser renovada. Ante o exposto, CONCEDO a ordem para declarar a nulidade ab initio do processo instaurado em desfavor do Paciente, desde o despacho de recebimento da denúncia, impondo-se ao juízo processante observar o rito da Lei n.º 11.343/06, com a expedição de alvará de soltura, se por outro motivo não estiver preso. É como voto.
EMENTA - HABEAS CORPUS . PROCESSUAL PENAL. CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. INOBSERVÂNCIA DO RITO PROCEDIMENTAL ESTABELECIDO PELA LEI N.º 10.409/02. AUSÊNCIA DE DEFESA PRELIMINAR. NULIDADE ABSOLUTA. LEI N.º 11.343/06. REVOGAÇÃO EXPRESSA DA LEI N.º 10.409/02. REGRA DE DIREITO PROCESSUAL. APLICAÇÃO IMEDIATA. PRECEDENTES. 1. A inobservância do rito procedimental, estabelecido pela Lei n.º 10.409/02, constitui nulidade absoluta, pois a ausência de apresentação de defesa preliminar desrespeita o princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, encerrando inegável prejuízo ao acusado. 2. Em se considerando que a Lei n.º 10.409/02 foi recentemente revogada pela Lei n.º 11.343/06, a instrução criminal ora examinada deverá ser ab initio anulada, devendo o juízo processante adotar e observar o rito procedimental previsto na Lei n.º 11.343/06, que também estabelece, em seu art. 55, a defesa preliminar, antes estatuída na Lei n.º 10.409/02, à luz do princípio do 'tempus regit actum', que confere à lei processual aplicação imediata. Precedentes. 3. Ordem concedida para declarar a nulidade ab initio do processo instaurado em desfavor do Paciente, desde o despacho de recebimento da denúncia, impondo-se ao juízo processante observar o rito da Lei n.º 11.343/06, com a expedição de alvará de soltura, se por outro motivo não estiver preso.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Arnaldo Esteves Lima, Napoleão Nunes Maia Filho, Jorge Mussi e Felix Fischer votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 21 de fevereiro de 2008 (Data do Julgamento)