Crime contra a ordem tributária. Denúncia que não narrou com clareza qual o tipo penal imputado aos agentes. Questão não examinada pelo Tribunal a quo. Supressão de instância. Prescrição pela pena em perspectiva. Ausência de previsão legal. Violação aos princípios da obrigatoriedade da ação penal, da ampla defesa e da presunção de não-culpabilidade. Trancamento da ação penal. Ausência de dolo. Condutas atípicas em função dos procedimentos adotados pelos agentes. Necessidade de revolvimento do conjunto fático-probatório. Estreita via do Writ. Inviabilidade de exame. Processo tributário administrativo já findo. Existência de lançamento definitivo do tributo devido. Ação cível anulatória. Antecipação de tutela apenas para impedir a inscrição dos recorrentes em dívida ativa. Integridade do lançamento não afetada. Manutenção da ação penal. Independência entre instâncias. Precedentes. Recurso parcialmente conhecido e, nessa extensão, não-provido.
Rel. Min. Jane Silva
VOTO - A EXMA. SRA. MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG) (Relatora): Inicialmente, devo tecer algumas considerações acerca do conhecimento do presente recurso. Consoante afirmado nas próprias razões recursais, a decisão ora combatida deixou de examinar a alegada inépcia da denúncia ao não narrar qual das condutas descritas no inciso I do artigo 1º da Lei 8.137/1990 teria sido praticada pelos agentes. Portanto, o conhecimento dessa matéria no presente recurso configuraria manifesta e indevida supressão de instância, motivo pelo qual não deve ser apreciada por esta Turma julgadora. Desta forma, conheço parcialmente do recurso, apenas no que diz respeito à prescrição antecipada e ao trancamento da ação penal por falta de justa causa, pois constitucionalmente previsto, cabível, adequado e presentes o interesse recursal e os demais requisitos de processamento. Verifiquei cuidadosamente as razões apresentadas pelos recorrentes e, ao compará-las com a decisão ora impugnada, com as informações prestadas e com os documentos acostados aos autos, não vejo como acolher sua pretensão. No que concerne ao reconhecimento da prescrição pela pena em perspectiva, partindo do pressuposto de que eventual condenação resultaria na reprimenda mínima, sem razão os recorrentes. O ordenamento jurídico pátrio não contempla essa modalidade de prescrição. Ao levarmos em consideração referida tese, estaríamos entendendo, a priori, sem analisar a prova dos autos, que a sentença seria condenatória e com pena em seu mínimo legal, afastando por completo a possibilidade de absolvição ou, até mesmo, de uma condenação com pena superior ao limite mínimo estabelecido pelo legislador. Por outro lado, não há como deixar de definir a prescrição como a perda da pretensão punitiva ou executória pela inércia do próprio Estado. In casu, inexiste tal inércia e, logo, não podemos admiti-la. Nossa legislação só contempla a prescrição da pretensão punitiva ou executória. Na primeira pode-se levar em conta a pena em abstrato ou em concreto, podendo esta operar-se retroativamente. Já na prescrição da pretensão executória, embora se tome a pena em concreto, o que o Estado perde, na verdade, é apenas o direito de executá-la, já que imposta por sentença condenatória devidamente transitada em julgado. Não existe nenhuma previsão da prescrição da pena em perspectiva, mormente em se tratando de prescrição retroativa por antecipação da pena a ser concretizada em futura sentença, pois poderá, ainda, na futura decisão, ocorrer emendatio libelli ou mutatio libelli que altere substancialmente o quantum da punição. Alinham, ainda, os seus opositores que, no caso, haveria um desrespeito à presunção de inocência e ao princípio da ampla defesa, vez que todo acusado tem direito a que não se presuma sua culpabilidade até que a sentença transite em julgado em seu desfavor, após examinar o mérito da imputação que lhe é feita, quando, talvez, possa ser declarada sua inocência. Finalmente, não pode o Juiz arvorar-se em legislador, criando forma prescricional não prevista em lei, nem pode contribuir para que seja desobedecido o princípio da obrigatoriedade da propositura da ação penal, principalmente quando se tratar de ação penal pública. Esta Casa, na esteira dos precedentes do Supremo Tribunal Federal, tem constantemente repudiado tal tese, que não se justifica nem mesmo ao argumento de que ela agiliza a prestação jurisdicional, pois vários princípios constitucionais ou processuais são por ela feridos, nem se diga que tal reconhecimento favorecerá o acusado, visto que ele tem direito ao exame de sua pretensão absolutória ou desclassificatória. Agilizar a prestação jurisdicional é chegar ao final do processo rapidamente, dando uma satisfação à sociedade e evitando que ocorra a malsinada impunidade ou que o constrangimento do processo se prolongue ao longo dos anos. A jurisprudência é ampla em seu repúdio: I. Habeas corpus : prescrição inocorrente, no caso, repelida, ademais, pela jurisprudência do Tribunal, a denominada prescrição antecipada pela pena em perspectiva. Precedentes. (...). (STF – HC 88.087/RJ – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – Primeira Turma – Pub. no DJ em 15.12.2006, p. 95). RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS . PRESCRIÇÃO ANTECIPADA OU PRESCRIÇÃO EM PERSPECTIVA. FALTA DE PREVISÃO LEGAL. REJEIÇÃO. A tese dos autos já foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, cuja orientação é no sentido de refutar o instituto ante a falta de previsão legal. Precedentes. (...). Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento. (STF – RHC 86.950/MG – Rel. Min. Joaquim Barbosa – Segunda Turma – Pub. no DJ em 10.08.2006, p. 28). Inexiste no ordenamento jurídico pátrio a prescrição por antecipação. A extinção da punibilidade pela pena em concreto só poderá ser levada a exame caso ocorra condenação com trânsito em julgado para a acusação (artigo 110, §1º do Código Penal). A possível extinção da punibilidade pela prescrição, tendo em conta a pena a ser concretizada em eventual sentença condenatória, é tese inteiramente desprovida de juridicidade. Por fim, melhor sorte também não assiste aos recorrentes no que concerne ao pedido de trancamento da ação penal ajuizada para apurar a possível prática de crime contra a ordem tributária. O pedido não comporta embasamento na argüida ausência de dolo na conduta dos agentes ou nos procedimentos adotados pela empresa da qual eram responsáveis. Referidas questões demandam o profundo revolvimento do conjunto fático-probatório colhido nos autos do processo tributário administrativo, da ação anulatória cível e da ação penal ora impugnada. Como sabido, o habeas corpus é carente de dilação probatória, não se prestando, portanto, para examinar teses que necessitem do denso exame das provas existentes nos autos da ação penal cognitiva. Assim, inviável o reconhecimento da atipicidade da conduta em razão da falta do elemento volitivo e do procedimento adotado pelos recorrentes. Da mesma forma, a suspensão da exigibilidade do crédito tributário em razão do deferimento de tutela antecipada em ação ordinária anulatória cível também não é capaz de macular a ação penal. Consoante narrado pelos próprios recorrentes, o processo administrativo tributário instaurado para apurar a possível existência de crédito tributário contra eles já se encontra finalizado. Tanto é que o pedido de trancamento da ação penal não se funda na ausência de constituição do mencionado crédito, mas sim na suspensão de sua exigibilidade, buscada em ação anulatória cível, na qual obtiveram êxito em pleitear a antecipação de tutela, consoante decisão acostada à fl. 1.903, confirmada pelo Tribunal a quo em sede de agravo de instrumento (fl. 95/96). De fato, o Egrégio Supremo Tribunal Federal, nos autos do HC 81.611/DF, modificou, por meio de seu Pleno, sua anterior orientação jurisprudencial, passando a entender que o crime definido no artigo 1º da Lei 8.137/1990, por ser material, depende do prévio lançamento definitivo do tributo devido, seja por considerar esse fato uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo do tipo. Vejamos: Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo. 1. Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 - que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo. 2. Por outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia para questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal. 3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo. (STF – HC 81.611/DF – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – Plenário – Pub. no DJ em 13.05.2005, p. 66). Todavia, não é esse o caso dos autos, em que o aludido crédito se encontra definitivamente constituído no âmbito administrativo e, portanto, com lançamento definitivo. A decisão que deferiu a antecipação de tutela não desconstituiu o lançamento já efetivado e nem declarou sua nulidade, mas tão-somente impediu a inscrição dos recorrentes em dívida ativa, condição de procedibilidade da execução fiscal. Logo, impossível trancar a ação penal ora impugnada em função da dita decisão proferida na ação cível, nos termos do seguinte precedente: HABEAS CORPUS . CRIME TRIBUTÁRIO. ARTIGO 1º, INCISO II, C/C 11, AMBOS DA LEI 8.137/90, C/C 71 DO CÓDIGO PENAL. EXISTÊNCIA DE AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. PEDIDO DE SUSPENSÃO DA AÇÃO PENAL. INDEPENDÊNCIA DOS JUÍZOS CÍVEL E CRIMINAL. ORDEM DENEGADA. 1. Em que pese entendimento adotado por esta Corte, acompanhando jurisprudência firmada no Supremo Tribunal Federal sobre a ausência de justa causa para a ação penal, nos casos dos crimes de sonegação fiscal, enquanto não concluído o procedimento administrativo, consta nos autos que o paciente não obteve êxito no Tribunal Administrativo Tributário - TATE. Conseqüentemente, se o Fisco Estadual tem como definitivo o lançamento do débito, escorreita a decisão que recebeu a denúncia e determinou o prosseguimento do curso da ação penal instaurada. 2. A existência de ação cível anulatória de débito fiscal, a teor do artigo 93 do Código de Processo Penal que proclama a independência do juízo criminal em face de decisão proferida na área cível, não obsta o recebimento da denúncia e o curso da ação penal. 3. Ordem denegada. (STJ – HC 43.122/PE – Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa – Sexta Turma – Pub. no DJ em 15.05.2006, p. 292). Importante salientar, por oportuno, que a ação anulatória a que se refere o HC supracitado, também obtivera êxito no pedido de antecipação de tutela, conforme se infere do seguinte trecho da decisão: (...). O provimento do agravo de instrumento, suspendendo a exigibilidade do tributo (conforme informação obtida no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco), não significa a imediata suspensão da ação penal, a teor do artigo 93 do Código de Processo Penal que proclama a independência do juízo criminal em face de decisão proferida na área cível e a faculdade de suspensão do processo criminal, in verbis : (...). Portanto, inviável o pretendido trancamento da ação penal ajuizada contra os recorrentes. Não se olvide que eventual êxito da ação anulatória cível certamente fará com que o objeto da ação penal ora impugnada seja extinto. Todavia, não é esse o atual prognóstico, motivo pelo qual, em obediência à independência entre as esferas cível e criminal, a ação penal deve permanecer intocada. Ante tais fundamentos, conheço parcialmente do recurso e, nessa extensão, nego-lhe provimento. É como voto.
EMENTA - RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS – CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – DENÚNCIA QUE NÃO NARROU COM CLAREZA QUAL O TIPO PENAL IMPUTADO AOS AGENTES – QUESTÃO NÃO EXAMINADA PELO TRIBUNAL A QUO – SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA – PRESCRIÇÃO PELA PENA EM PERSPECTIVA – AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL – VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO PENAL, DA AMPLA DEFESA E DA PRESUNÇÃO DE NÃO-CULPABILIDADE – TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – AUSÊNCIA DE DOLO – CONDUTAS ATÍPICAS EM FUNÇÃO DOS PROCEDIMENTOS ADOTADOS PELOS AGENTES – NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO – ESTREITA VIA DO WRIT – INVIABILIDADE DE EXAME – PROCESSO TRIBUTÁRIO ADMINISTRATIVO JÁ FINDO – EXISTÊNCIA DE LANÇAMENTO DEFINITIVO DO TRIBUTO DEVIDO – AÇÃO CÍVEL ANULATÓRIA – ANTECIPAÇÃO DA TUTELA APENAS PARA IMPEDIR A INSCRIÇÃO DOS RECORRENTES EM DÍVIDA ATIVA – INTEGRIDADE DO LANÇAMENTO NÃO AFETADA – MANUTENÇÃO DA AÇÃO PENAL – INDEPENDÊNCIA ENTRE AS INSTÂNCIAS – PRECEDENTES – RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, NÃO-PROVIDO. 1. É vedado a esta Corte apreciar questão não debatida pelo Tribunal a quo, sob pena de indevida supressão de instância. 2 . Na esteira dos precedentes do Egrégio Supremo Tribunal Federal e deste Colendo Superior Tribunal de Justiça, a prescrição pela pena em perspectiva carece de previsão legal. 3. Viola os princípios da obrigatoriedade da ação penal, da ampla defesa e da presunção de não-culpabilidade a decisão que reconhece a prescrição da pretensão punitiva estatal pela pena em perspectiva, com base em prognóstico condenatório, pois tem o réu direito à manifestação do Estado sobre sua pretensão absolutória ou desclassificatória. 4. A estreita via do habeas corpus, carente de dilação probatória, não comporta o exame de matérias que dependam do profundo revolvimento do conjunto fático-probatório colhido nos autos da ação penal cognitiva ajuizada contra os recorrentes. 5. O trancamento de ação penal somente é viável ante a cabal e inequívoca demonstração da atipicidade do fato ou da completa inexistência de qualquer indício de autoria em relação aos recorrentes. 6. A conclusão do processo tributário administrativo instaurado contra os agentes, o qual culminou com o lançamento do tributo por eles devido, viabiliza o ajuizamento da ação penal por crime contra a ordem tributária, nos termos da recente orientação jurisprudencial adotada pelo Supremo Tribunal Federal. 7. A existência de ação cível anulatória do crédito tributário não impede a persecução penal dos agentes em juízo, em respeito à independência das esferas cível e criminal. Precedentes. 8. Ainda que obtido êxito no pedido de antecipação de tutela na seara cível, a fim de impedir a inscrição dos agentes em dívida ativa, condição de procedibilidade da execução fiscal, inadmissível o trancamento da ação penal, notadamente quando a decisão a eles favorável não afetou diretamente o lançamento do tributo devido, que, até decisão definitiva em contrário, não pode ser considerado nulo ou por qualquer outro modo maculado. Precedentes. 9 . Recurso parcialmente conhecido e, nessa extensão, não-provido.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer parcialmente do recurso e, nessa parte, negar-lhe provimento. Os Srs. Ministros Felix Fischer, Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e Napoleão Nunes Maia Filho votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília, 20 de novembro de 2007.(Data do Julgamento)