Art. 20 da Lei 4947/66. Crime instantâneo. Prescrição ocorrida. Art. 48 da Lei 9605/98. Crime permanente. Inépcia da denúncia. Ausência de justa causa. Inocorrência.
Rel. Min. Félix Fischer
RELATÓRIO - O EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus, impetrado em favor de MANOEL JOAQUIM CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE FILHO, em face de acórdão proferido pelo e. Tribunal de Justiça do Distrito Federal que denegou o writ. Sustenta o impetrante, em suma, a) a inépcia da denúncia em razão da ausência de preenchimentos dos requisitos do art. 41 do CPP; b) a atipicidade da conduta do paciente, em razão de que a área ocupada não pertence à União, Estados ou Municípios e não é área de preservação ambiental; c) a atipicidade da conduta, pois o fato ocorreu antes de 1997, e portanto é anterior Decreto 2667/61, que criou o Parque Ecológico e de Uso Múltiplo Canjerana; d) a ocorrência de prescrição da pretensão punitiva; e) a atipicidade dos crimes em razão da aplicação do princípio da insignificância. A douta Subprocuradoria-Geral da República, às fls. 301/305, manifestou-se pelo improvimento do recurso, em parecer assim ementado: “Recurso em HABEAS CORPUS . Ocupação de área pública. Espaço verde público pertencente à área de Proteção Ambiental do Lago Paranoá, localizado no interior do Parque Ecológico Canjerana. Alegação de princípio da insignificância. Pedido de trancamento da ação penal por falta de justa causa. Parecer pelo improvimento do recurso“ (fl. 301). É o relatório.
VOTO - O EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: Sustenta o impetrante, em suma, a) a inépcia da denúncia em razão da ausência de preenchimentos dos requisitos do art. 41 do CPP; b) a atipicidade da conduta do paciente, em razão de que a área ocupada não pertence à União, Estados ou Municípios e não é área de preservação ambiental; c) a atipicidade da conduta, pois o fato ocorreu antes de 1997, e portanto é anterior Decreto 2667/01, que criou o Parque Ecológico e de Uso Múltiplo Canjerana; d) a ocorrência de prescrição da pretensão punitiva; e) a atipicidade dos crimes em razão da aplicação do princípio da insignificância. Em primeiro lugar, analiso as alegações do impetrante quanto à ocorrência de prescrição da pretensão punitiva em relação aos dois crimes. O Tribunal a quo se manifestou sobre a questão da seguinte forma: “Não releva a anterioridade da ocupação, em relação à própria criação do Parque Ecológico Canjerana. É que se trata de crimes permanentes. Evidente que, ao ocupar, anteriormente, a área pública, não há falar em invasão da área do Parque e dano ambiental ao mesmo, mas, ao permanecer na mesma área pública, recusando-se a retirar as edificações, pode o paciente, em tese, ter cometido as condutas afirmadas. Frise-se admitir a impetração que, em 05/06/2001, compareceu ao local a fiscalização do IEMA/DF, lavrando auto de constatação da ocupação considerada irregular. A partir daí, em tese, possível a configuração das imputações. Quanto ao artigo 48 da Lei nº 9.605/98, expressa o seguinte crime: “Impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação. Pena - detenção, de 6 (seis) meses a I (um) ano, e multa“. Em tese, a conduta de manter, após a ação da fiscalização, a ocupação considerada irregular é apta a “impedir“ ou “dificultar a regeneração natural“ das “demais formas de vegetação“, em maior ou menor dimensão, o que se deve verificar no devido processo legal, com produção de prova. No que pertine ao artigo 20 da Lei n° 4.947/66, que considera crime “invadir, com intenção de ocupá-las, terras da União, dos Estados e dos Municípios“, é verdade estar inserido em diploma legal que “fixa normas de Direito Agrário“, dispondo sobre o “sistema de organização e funcionamento do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária“, mas a mesma lei “dá outras providências“. Entre estas define o crime de que trata seu artigo 20. Nenhuma ilegalidade ou nulidade nisso, fato, aliás, não inusitado na rica proliferação legislativa do país, que nem sempre obedece à boa técnica, mas nem por isso deixa de ter validade. Desacolho a argüição de prescrição, porquanto a acusação é da prática de crimes permanentes, não havendo, por isto, como sustentar qualquer prazo prescricional“ (fls. 201/202). Quanto ao crime do art. 48 da Lei nº 9.605/98, não assiste razão ao impetrante, visto que se a conduta do paciente de impedir ou dificultar a regeneração natural da vegetação indicada na denúncia é atual, e desta forma não há o que se falar em ocorrência de prescrição. Contudo, em relação ao crime do art. 20 da Lei nº 4.947/66, verifico que a súplica do impetrante merece acolhimento. É que o crime de “invadir, com intenção de ocupá-las, terras da União, dos Estados e dos Municípios“ se consuma através da invasão das terras, e não através da ocupação, sendo, portanto, crime instantâneo. A conduta de se recusar a desocupar terras da União, dos Estados ou Municípios é atípica. Desta forma, e tendo em vista que, conforme informação contida na inicial acusatória, a suposta invasão ocorreu antes de 1997, e o recebimento da denúncia se deu em 24/10/06, sendo 3 (três) anos a pena máxima cominada para o delito do art. 20 da Lei 4947/66, verifico que transcorreu lapso temporal maior que 8 anos entre o fato e o recebimento da denúncia. Portanto, está extinta a punibilidade do paciente em razão da prescrição da pretensão punitiva. As demais alegações do impetrante em relação ao crime do art. 20 da Lei 4.947/66 estão prejudicadas. Em relação à alegada inépcia da exordial acusatória, para melhor delimitar a quaestio confira-se o seu teor: “O denunciado, segundo consta o incluso inquérito policial, invadiu terras públicas com a intenção deliberada de ocupá-las, como de fato ainda ocupa, irregularmente, a área verde pública localizada nos fundos do lote de sua propriedade, o Lote 9, do Conjunto 1, da QL 24, do Lago Sul/DF, ali mantendo um canil (3,5m2.), um poço, uma edificação em alvenaria (12m2), e uma mureta para delimitação (65m), conforme atesta o laudo pericial de fls. 12/15. O referido espaço verde público pertence à Área de Proteção Ambiental (art. 15 da Lei Federal nº 9.985/2000) do Lago Paranoá, criada pelo Decreto nº 12.055/89. Localiza-se, ainda, no interior do Parque Ecológico e Vivencial Canjerana (Lei Distrital nº 1.262/96), publicada no Diário Oficial do Distrito federal. O patrimônio público ambiental lesionado pelo denunciado tem como objetivos preservar o Córrego Canjerana, o ecossistema natural remanescente da região da Bacia do Lago Paranoá com seus recursos bióticos e abióticos, possibilitar o reflorestamento da área com espécies nativas, a recuperação das áreas degredadas, o desenvolvimento da educação ambiental, bem como, desde que compatível com o plano de manejo da área, atividades de lazer em contato harmônico com a natureza. Embora, conforme ressalta o Laudo do Instituto de Criminalística às fls. 14/15, as ocupações remontem a época anterior a 1997, e apesar do costume difundido do Distrito Federal de ocupar áreas verdes, é fato que a conduta do denunciado consiste em recusar-se a desocupar a área pública em questão impede ou dificulta a regeneração natural da vegetação, o que prejudica os interesses públicos ambientais concernentes à APA do Paranoá e à implantação do Parque Canjarana, bem como revela sua intenção de perpetrar a ocupação de terras públicas. Com semelhante conduta, portanto, incorre o denunciado, em concurso material, mas penas cominadas pelo art. 20 da Lei Federal nº 4.947/66 e pelo art. 48 da Lei nº 9.605/98. Por fim, requer o Parquet seja instaurado processo crime, citando-se o denunciado para todos os seus termos, sob pena de revelia, bem como intimando-se as testemunhas abaixo arroladas a deporem sobre os fatos“ (fls. 31/32). Antes de tudo, convém lembrar que o réu – em nosso sistema processual penal – se defende de uma imputação concreta (e nunca em tese, ex vi art. 41 do CPP), imputação esta que permita uma adequação típica seja de subordinação imediata ou, então, mediata (v.g. tentativa e concurso de pessoas). E, isto é pacífico. De fato, a peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Essa narração impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura ao réu o pleno exercício do direito de defesa (HC 73.271/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 04/09/1996). Denúncias que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito. Violação ao princípio da dignidade da pessoa humana (HC 86.000/PE, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 02/02/2007). A inépcia da denúncia caracteriza situação configuradora de desrespeito estatal ao postulado do devido processo legal. É que a imputação penal contida na peça acusatória não pode ser o resultado da vontade pessoal e arbitrária do órgão acusador. Este, para validamente formular a denúncia, deve ter por suporte necessário uma base empírica idônea, a fim de que a acusação penal não se converta em expressão ilegítima da vontade arbitrária do Estado. Incumbe ao Ministério Público apresentar denúncia que veicule, de modo claro e objetivo, com todos os elementos estruturais, essenciais e circunstancias que lhe são inerentes, a descrição do fato delituoso, em ordem a viabilizar o exercício legítimo da ação penal e a ensejar, a partir da estrita observância dos pressupostos estipulados no art. 41 do CPP, a possibilidade de efetiva atuação, em favor daquele que é acusado, da cláusula constitucional da plenitude de defesa (HC 72.506/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 18/09/1998). A denúncia é uma proposta da demonstração de prática de um fato típico e antijurídico imputado a determinada pessoa, sujeita à efetiva comprovação e à contradita, e apenas deve ser repelida quando não houver indícios da existência de crime ou, de início, seja possível reconhecer, indubitavelmente, a inocência do acusado ou, ainda, quando não houver, pelo menos, indícios de sua participação (HC 90.201/RO, Primeira Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia, DJU de 31/08/2007). Pois bem, na hipótese, segundo consta na peça inicial da ação penal, a partir de inquérito policial instaurado verificou-se que o denunciado, ao ocupar o espaço verde que constitui patrimônio público ambiental, está impedindo a regeneração natural da vegetação. A denúncia está baseada em laudo pericial. Ora, percebe-se, claramente que a exordial acusatória apresenta uma narração congruente dos fatos (HC 88.359/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Cezar Peluso, DJU de 09/03/2007), de modo a permitir o pleno exercício da ampla defesa (HC 88.310/PA, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJU de 06/11/2006), descrevendo conduta que, ao menos em tese, configura crime (HC 86.622/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJU de 22/09/2006), ou seja, não é inepta a denúncia que, atenta aos ditames do art. 41 do Código de Processo Penal, qualifica os acusados, descreve o fato criminoso e suas circunstâncias e apresenta o rol de testemunhas (HC 87.293/PE, Primeira Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJU de 03/03/2006). Além disso, havendo descrição do liame entre a conduta do paciente e o fato tido por delituoso, evidenciado nas assertivas constantes na denúncia, não há que se falar em inépcia da denúncia por falta de individualização da conduta. Assim, tratando-se de denúncia que, amparada nos elementos que sobressaem do inquérito policial, expõe fatos teoricamente constitutivos de delito, imperioso o prosseguimento do processo-crime (RHC 87.935/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 01/06/2007). Quanto às alegações de ausência de justa causa para persecução penal em razão da atipicidade da conduta, não tem razão o impetrante. O trancamento da ação penal por meio do habeas corpus se situa no campo da excepcionalidade (HC 901.320/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 25/05/2007), sendo medida que somente deve ser adotada quando houver comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito (HC 87.324/SP, Primeira Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia, DJU de 18/05/2007). Ainda, a liquidez dos fatos constitui requisito inafastável na apreciação da justa causa (HC 91.634/GO, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 05/10/2007), pois o exame de provas é inadmissível no espectro processual do habeas corpus, ação constitucional que pressupõe para seu manejo uma ilegalidade ou abuso de poder tão flagrante que pode ser demonstrada de plano (RHC 88.139/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 17/11/2006). In casu, não se vislumbra qualquer das hipóteses mencionadas. Com efeito, como já mencionado, a denúncia atende aos requisitos do art. 41 do CPP e está embasada em lastro probatório suficiente para ensejar a persecução penal. As alegações do impetrante quanto indefinição dos limites do Parque Ecológico Vivencial Canjerana e quanto à pequena lesão à vegetação local, para serem apreciadas, requerem ampla investigação no conteúdo probatório dos autos, inclusive profunda análise dos laudos periciais, o que não é possível no limite da cognição da via eleita. Logo, seria demasiadamente precipitado o trancamento da ação penal. Ante ao exposto, concedo a ordem tão-somente para reconhecer a extinção da punibilidade em relação ao crime do art. 20 da Lei 4967/66. É o voto.
EMENTA - PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 20 da LEI 4.947/66. CRIME INSTANTÂNEO. PRESCRIÇÃO OCORRIDA. ART. 48 DA LEI 9.605/98. CRIME PERMANENTE. INÉPCIA DA DENÚNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. INOCORRÊNCIA. I - Sendo instantâneo o crime do art. 20 da Lei 4.947/66 (“Invadir, com intenção de ocupá-las, terras da União, dos Estados e dos Municípios“), e tendo se passado mais de 8 anos entre a data do fato e do recebimento da denúncia, há que se reconhecer a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva. II - A peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. (HC 73.271/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 04/09/1996). Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito. (HC 86.000/PE, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 02/02/2007). A inépcia da denúncia caracteriza situação configuradora de desrespeito estatal ao postulado do devido processo legal. III - A exordial acusatória, na hipótese, contudo, apresenta uma narração congruente dos fatos (HC 88.359/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Cezar Peluso, DJU de 09/03/2007), de modo a permitir o pleno exercício da ampla defesa (HC 88.310/PA, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJU de 06/11/2006), descrevendo conduta que, ao menos em tese, configura crime (HC 86.622/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJU de 22/09/2006), ou seja, não é inepta a denúncia que, atende aos ditames do art. 41 do Código de Processo Penal (HC 87.293/PE, Primeira Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJU de 03/03/2006). IV - Assim, tratando-se de denúncia que, amparada nos elementos que sobressaem do inquérito policial, expõe fatos teoricamente constitutivos de delito, imperioso o prosseguimento do processo-crime (RHC 87.935/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 01/06/2007). V - O trancamento da ação penal por meio do habeas corpus se situa no campo da excepcionalidade (HC 901.320/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 25/05/2007), sendo medida que somente deve ser adotada quando houver comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito (HC 87.324/SP, Primeira Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia, DJU de 18/05/2007). Ainda, a liquidez dos fatos constitui requisito inafastável na apreciação da justa causa (HC 91.634/GO, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 05/10/2007), pois o exame de provas é inadmissível no espectro processual do habeas corpus, ação constitucional que pressupõe para seu manejo uma ilegalidade ou abuso de poder tão flagrante que pode ser demonstrada de plano (RHC 88.139/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 17/11/2006). Na hipótese, os fatos narrados na denúncia, respaldados em indícios de autoria e materialidade, levam, em tese, a indicativos de eventual crime do art. 48 da Lei. 9.605/98. Ordem concedida tão-somente para reconhecer a extinção da punibilidade em relação ao crime do art. 20 da Lei 4.947/66.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima, Napoleão Nunes Maia Filho e Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG) votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 13 de dezembro de 2007 (Data do Julgamento).
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