Violação ao art. 279, III, do CPP. Vítima surda-muda e analfabeta. Filha menor indicada como intérprete. Nulidade. Comprometimento emocional.
Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura
RELATÓRIO - MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora): Cuida-se de recurso especial aviado por AGNALDO DA SILVA e ALEXANDRE DA SILVA, com patrocínio da Procuradoria Geral do Estado, nos termos do art. 105, III, “a“, da Constituição Federal, tendo em vista acórdão da Décima Segunda Câmara do extinto Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo. Segundo se extrai do caderno processual, os Recorrente foram condenados à pena, o primeiro, de 6 (seis) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias e, o segundo, de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses, ambos de reclusão, por incursos no art. 157, § 2º, I e II, do Código Penal. Inconformados, apelaram à extinta Corte de Justiça paulista (Apelação n.º 1.108.141-7), porém, tiveram o recurso desprovido por votação majoritária, o que resultou na oposição de embargos infringentes. Novamente em votação por maioria, a Corte de Justiça rejeitou os embargos, motivo da interposição do presente recurso especial. Nele os recorrentes apontam negativa de vigência dos arts. 279, III, e 281, ambos do Código de Processo Penal, especificamente no fato de que a prova da condenação, advinda de forma ilícita, já que o juiz nomeou como intérprete da vítima, surda-muda e analfabeta, a sua própria filha menor de doze anos. Contra-arrazoado o recurso às fls. 246/248, foi admitido por força da decisão de fl. 250, subindo a esta Superior Instância. Aqui, deu-se vista ao M. P. Federal, que opinou pelo não provimento do recurso, em parecer da lavra do Ilustre Subprocurador-Geral Samir-Haddad, assim sumariado (fl. 261): “Penal. – Processual Penal. – Recurso Especial. Alegação de nulidade de prova colhida consistente na utilização de menor de 21 anos como intérprete, in casu, filha da vítima e depoente. Art. 279, III c/c 281, do CPP. Inexistência de violação. Presunção juris tantum de incapacidade cabalmente afastada pelas circunstâncias do caso concreto. Parecer pelo não provimento do Recurso.“ Solicitei informações sobre a situação atual dos recorrentes, já que foram presos em flagrante, embora posteriormente transformada em preventiva, vindo somente em relação a Aguinaldo da Silva. É o relatório.
VOTO - MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora): Esclareço em primeira linha, que o recurso foi distribuído nesta Corte ao Ministro Fontes de Alencar, no dia 27 de junho de 2000, passando posteriormente pela relatoria do Ilustre Ministro Hélio Quaglia Barbosa e vindo a esta Relatora em 15 de agosto de 2006. Sinto não poder ter tido tempo, à época da atribuição do feito, para tê-lo desde logo decidido, mesmo envidando todos os esforços no sentido de priorizar os processos mais antigos. Bom, de início verifico estar amplamente debatido no acórdão hostilizado o tema objeto da atenção do procedimento do recurso especial. A questão remete-nos à sede dos fatos, ocorridos em 30 de novembro de 1997 e descritos sucintamente na denúncia, à fl. 2, da seguinte forma (fl. 02): “Segundo apurado, os denunciados ingressaram na residência da ofendida e em seu interior ameaçaram-na de morte com as facas que portavam, subtraindo os bens supra descritos. Também no interior da residência ameaçaram de morte a filha da vítima, de nome Tália. As coisas e valores subtraídos não foram localizados, até o momento. (Um relógio, um toca-fita e R$ 50,00) A vítima reconheceu os meliantes, na seqüência dos fatos (fl. 03).“ Ao receber a denúncia, o Juiz deferiu pedido do Ministério Público e convocou a presença, no dia da oitiva da vítima surda-muda, de duas professoras especializadas em linguagem de sinal, para que pudessem acompanhar a audiência. Aceitou, também, a manifestação do parquet no sentido de relaxar o flagrante e decretar a prisão preventiva. Na audiência ocorrida em 9 de janeiro de 1998, presentes duas intérpretes, constatou-se por elas a inviabilidade de comunicação com a vítima, Ana Maria Pereira, determinando o juiz, após consentimento das partes, a oitiva por intermédio da filha de 12 anos, única pessoa com quem se comunicava. A oitiva transcorreu com a participação da menor, que, inclusive, veio a ser dispensada da oitiva pelas partes, sendo ouvidos dois dos policiais que realizaram a prisão dos acusados e mais a mãe dos mesmos, na condição de informante. Na fase do art. 499 do CPP, o Ministério Público requereu a avaliação indireta dos bens subtraídos, que somente vieram aos autos depois das alegações finais da defesa, estas postulando a nulidade da oitiva da vítima. Em nova vista, pugnou igualmente pela nulidade da avaliação ante a assinatura do laudo por um único perito. Na sentença, às fls. 81/86, o Juiz afastou a nulidade quanto à oitiva da vítima, já que o procedimento teve a anuência da defesa e em relação ao laudo de avaliação firmou a existência da assinatura do segundo perito, condenando, ao final, os réus por incursos no art. 157, § 2º, incisos I e II, c/c o art. 29, ambos do Código Penal. Com isso, sobreveio o recurso de apelação, cujo julgamento, num primeiro momento, foi convertido em diligência para que o juízo singular esclarecesse, em nova oitiva, se a vítima sabia ler e escrever. Anote-se que nos autos existe certidão de julgamento, à fl. 132, dando conta da absolvição dos réus por falta de prova. Como a questão não restou esclarecida, penso ter sido confeccionada por equívoco, até mesmo porque a data da decisão nela constante coincide com a data em que a Câmara julgadora determinou a diligência, isto é, 24/8/98. Confirmada a situação da vítima, foi a apelação julgada, sendo, por maioria, improvida. Em seguida, opôs-se os embargos infringentes e, depois, o especial. A questão se afigura um tanto quanto esdrúxula. Não é todo dia que nós julgadores deparamo-nos com tamanha singularidade no trâmite processual. E quanto à discussão, com a devida vênia, a solução deveria ser outra. A principal razão para tanto está contida na norma do art. 279, III, do Código de Processo Penal, tida por violada, que reza, textualmente, sobre a impossibilidade de indicação como perito de pessoa menor de vinte e um anos, previsão extensiva aos intérpretes por força do disposto no art. 281 do mesmo Diploma. Afira-se, por outro lado, que as particularidades do caso conferem um plus ao entendimento da nulidade da questionada oitiva. No tocante ao aspecto da previsão legal, a doutrina tende a justificar a proibição com a idéia de que o menor não teria amadurecimento suficiente para entender e expressar, na condição de intérprete, os fatos objetos da imputação. Dessa maneira, a sua atuação poderia comprometer o resultado da oitiva, o que contraria as bases da verdade real. No caso vertente, tal se afigura ainda mais comprometedor, porquanto não bastasse a tenra idade da intérprete, apenas 12 anos, ela mantinha estreito vínculo afetivo, por ser filha da vítima. Além do que, os autos demonstram que a jovem, se não presenciou os fatos, sendo deles também vítima, atuou ativamente na seqüência dos mesmos, chamando os agentes policiais e, juntamente com eles, indagando do seu paradeiro. Ora, por tais circunstâncias, não podia a menor ser intérprete da própria mãe, sendo aqui comprovado, mesmo que se considere relativa a não observância do dispositivo legal, o efetivo prejuízo aos réus, independentemente do consentimento do defensor público no momento da audiência. A propósito, bem ressaltou o voto-dissidente da apelação, verbis (fl. 173): “Consignar que a vítima não freqüentou escolas especializadas em ensino de surdos-mudos, e portanto não aprendeu os sinais tradicionalmente utilizados por este segmento da população não autorizava o MM. Juiz a quo a tomar seu depoimento em frontal violação à norma processual penal.“ Por essa razão, mostra-se equivocada, a meu ver, o voto-condutor do acórdão da apelação, seguido no julgamento dos Embargos Infringentes, que assim abordou o tema (fl. 213): “É certo que a teor do art. 279,III, c.c. arts, “254, I, 280 e 281, todos do Código de Processo Penal, quer em razão da “idade, quer na condição de descendente, a menor Tânia estaria impedida de “servir como intérprete da própria genitora. “ “Não menos verdade, porém, é que, “somente após ter convocado para tal mister professoras especializadas na “linguagem padronizada para surdos-mudos e constatado que a “comunicação da vitima com o mundo exterior se fazia exclusivamente por “meio de sinais inteligíveis tão apenas pela filha Tânia, é que o MM. Juiz de “Direito 'a quo', frente ao inusitado da situação, à mingua de outro meio, até “porque dita vítima é analfabeta e se limita a 'desenhar' o próprio nome, se “decidiu a, acertadamente, valer-se da menor, dispensando-a de depor como “testemunha, o que, de resto, fez com plena anuência da defensoria. “ “Assim não o fizesse, estaria cerceando a “acusação e desprezando a finalidade teleológica do processo, como “instrumento de busca da verdade real.“ “Aliás, é lição de Fernando Costa Tourinho “Filho, citando Florian, que 'no processo penal se investiga a verdade de fato “no interesse público, que vence todo o obstáculo' (Processo Penal, Ed. “Saraiva, 6ª edição, 1º vol., p. 37), deixando evidenciado que, em hipóteses “excepcionais, como a surgida nos autos, o princípio da busca da verdade “real, antepondo-se até mesmo aos obstáculos legais, autoriza o juiz a valer- “se de meios também excepcionais para alcançá-la“ Indiscutivelmente, a interpretação assumida pela Corte a quo contraria o sentido do devido processo penal, que abomina a existência de prova obtida sem as devidas cautelas porque sujeitas às licenciosidades do julgamento tendencioso. É por isso que não se justifica a oitiva realizada com tal nefasta infestação passional, ainda mais sabendo que outras provas poderiam ser produzidas, uma vez que a suposta subtração perpetrada pelos réus se deu com o arrombamento de janela e com a invasão do domicílio da vítima. Ante o exposto, conheço do recurso e lhe dou provimento, de modo a anular o processo desde a oitiva da vítima em primeiro grau de jurisdição. É o voto.
EMENTA - RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 279, III, DO CPP. VÍTIMA SURDA-MUDA E ANALFABETA. FILHA MENOR INDICADA COMO INTÉRPRETE. NULIDADE. COMPROMETIMENTO EMOCIONAL. A norma do art. 279, III, do CPP, ao regular a proibição da escolha de perito menor de 21 anos visa evitar que eventual ausência de amadurecimento do jovem possa contaminar a busca da verdade real. No caso a agressão ao sentido da norma se mostra ainda mais flagrante, pois o múnus da interpretação recaiu sobre menor de 12 anos que era filha da vítima, portanto, estava comprometida emocionalmente com os fatos da instrução. Recurso provido e nulidade reconhecida para se anular o processo desde a oitiva da vítima.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.“ A Sra. Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG) e os Srs. Ministros Hamilton Carvalhido e Paulo Gallotti votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Nilson Naves. Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Brasília, 18 de dezembro de 2007 (Data do Julgamento)