Competência. Crime comum. Procuradora do Trabalho designada para atuar no TRT. Prerrogativa de foro. Denúncia recebida por juiz federal. Impossibilidade. Julgamento afeto ao STJ independentemente da data da prática do guerreado ato.
Rel. Min. Cezar Peluso
RELATÓRIO - O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (Relator): 1. Trata-se de recuso ordinário interposto por MARIA CRISTINA GOMES SANCHEZ FERREIRA contra decisão do Superior Tribunal de Justiça, que, por maioria de votos, lhe denegou o HC nº 24.703. A paciente, hoje Procuradora do Trabalho, responde, juntamente com co-réus, a ação penal perante o Juízo da 6a Vara Criminal Federal Especializa em Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e em Lavagem de Valores, da Seção Judiciária do Estado de São Paulo, sob acusação de que teria praticado, enquanto membro do Conselho de Administração da Cruzeiro do Sul Companhia Seguradora, os delitos previstos nos arts. 4º, caput e parágrafo único, 6º e 10, todos da Lei nº 7.492/86. A denúncia foi inicialmente proposta contra outros acusados (fls. 10-30). Recebida e processada (fls. 31-32), então perante a 5a. Vara Criminal da Justiça Federal, foi oposta exceção de suspeição, acolhida pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região (fls. 36- 38). Enquanto era processada a argüição, foi oferecido aditamento à denúncia, incluída entre os acusados a ora recorrente (fls. 40-56). A decisão de recebimento do aditamento foi igualmente proferida por juiz suspeito (fls. 57-63), daí ter sido declarada nula (fls. 64-71). Por fim, a inicial acusatória proposta contra a paciente (fls. 40-56) foi recebida, em 30 de agosto de 2002 (fls. 79-91), pelo juízo de 1° grau, que, todavia, é reputado absolutamente incompetente pela recorrente, a qual sustenta ter prerrogativa de foro perante o Superior Tribunal de Justiça, nos termos que estabelece a Constituição da República, no art. 105, I, a, porque, desde junho de 1996 (fls. 152), exerce o cargo de Procuradora do Trabalho e, em razão da Portaria nº 182, de 26 de junho de 1996, emitida pelo Procurador-Geral do Trabalho, foi designada para exercício das funções na Procuradoria Geral do Trabalho da 4a Região e atuação em sessões de julgamento perante o Tribunal Regional do Trabalho dessa Região. Daí, intentou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (fls. 02-17). Enquanto o writ era processado, o Juízo da 5a Vara Criminal da Justiça Federal da Seção Judiciária do Estado de São Paulo declinou da competência para processar e julgar a ora recorrente e determinou a remessa dos autos da ação penal para o Superior Tribunal de Justiça (fls. 157-158). Não obstante tal fato e, ainda, os pareceres da Procuradoria-Geral da República – o primeiro favorável à concessão da ordem (fls. 145-147), e o segundo, a considerar prejudicado o writ em razão da remessa dos autos da ação penal ao Superior Tribunal de Justiça (fls. 166-168) –, este, por maioria de votos, denegou o pedido (fls. 182- 196). Em suma, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que era incompetente para julgar a recorrente, porque a atuação desta no Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região decorreria de designações periódicas e, por isso, o exercício seria pro tempore (fls. 187). Eis o teor da ementa: “HABEAS CORPUS. COMPETÊNCIA. PROCURADOR DO TRABALHO. ATUAÇÃO PERANTE TRIBUNAL SEM CARÁTER DE PERMANÊNCIA. 1. Em matéria de competência não há presunção. A competência é sempre certa e determinada, não comportando o tema interpretação ampliativa ou restritiva, principalmente em se tratando de foro por prerrogativa de função. 2. O rol do art. 105, I, a da Lei Fundamental defere ao Superior Tribunal de Justiça a competência originária para o processo e julgamento, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, dos membros do Ministério Público da União “que oficiem perante tribunais“. 3. Neste contexto, sendo a atuação perante o Tribunal Regional do Trabalho, pro tempore, eventual, episódica, não há atração da competência do Superior Tribunal de Justiça para o processo e julgamento de ação penal, onde oferecida denúncia contra Procurador do Trabalho, classificado na letra do art. 85, VIII, da Lei Complementar 75, de 20 de maio de 1993. 4. A atuação no caso não se reveste do caráter de permanência. É temporária, por designação e, portanto, não se lhe defere a prerrogativa de foro perante o Superior Tribunal de Justiça. 5. Precedente do Supremo Tribunal Federal. 6. Ordem denegada“ (fls.195). Contra tal decisão foram opostos embargos de declaração (fls. 199-203), instruídos com documentos que atestavam, mais uma vez, que a atuação da recorrente no Tribunal era permanente (fls. 204-224). Os embargos foram, porém, rejeitados (fls. 227-232). Os autos da ação penal foram devolvidos à Justiça Federal de 1o grau, e o processo, redistribuído à Sexta Vara Federal Criminal, especializada em Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e em Lavagem de Valores, da Seção Judiciária do Estado de São Paulo. Interpôs-se este recurso (fls. 258-265). A Procuradoria-Geral da República contra-arrazoou-o (fls. 267-275) e, depois, opinou pelo improvimento (fls. 284-287). Requisitei informações ao Procurador-Geral do Trabalho acerca da situação funcional da recorrente (fls. 300). Reiterando o que já constava dos autos, vieram minuciosos subsídios, consolidados nos seguintes documentos: (i) declaração (fls. 312) e atestado subscritos pela Diretoria do Departamento de Recursos Humanos da Procuradoria Geral do Trabalho, de que a recorrente, aprovada em concurso de provas e títulos, tomou posse em 27 de junho de 1996 e “permanece em exercício do cargo até a presente data, com lotação na Procuradoria Regional do Trabalho da 4a Região/RS“ (fls. 311); (ii) histórico funcional que atesta suas últimas designações (fls. 313); (iii) também o Procurador-Regional Chefe da 4a Região atestou que a ora recorrente “foi designada, pela PORTARIA 153, de 16 de dezembro de 2005, para funcionar na coordenadoria interveniente, a saber, aquela que atua nos feitos em tramitação no TRT da Quarta Região (Segundo Grau de Jurisdição). A PORTARIA 153 previu efeitos a partir de 15/03/2006. Assim, desde aquela data a Procuradora em questão vem sendo designada para acompanhar as sessões do Tribunal, e exarar pareceres quanto aos recursos e feitos de competência originária. As últimas portarias que assim dispuseram foram as de número 042, de 25/04/2006, e 047, de 03/05/2005, ambas dispondo sobre as sessões de maio do corrente“ (fls. 315); (iv) vieram ainda cópia da própria Portaria nº 153/2005 e indicação exemplificativa de indicação da recorrente para atuação em determinada turma, o que é feito mês a mês (fls. 316-322). É o relatório.
VOTO - O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (Relator): 1. Como flui nítido ao relatório, o recurso envolve a questão de saber se Procuradora do Trabalho, que, por designação, oficia no Tribunal Regional do Trabalho, possui, ou não, prerrogativa de foro perante o Superior Tribunal de Justiça. Tenho que sim. 2. Os membros do Ministério Público da União que oficiam perante quaisquer tribunais – é o caso da recorrente – estão sujeitos à jurisdição penal do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, a, da Constituição da República), a que compete processá-los e julgá-los nos ilícitos penais comuns e de responsabilidade. Também a Lei Orgânica do Ministério Público – Lei Complementar nº 75/93 – prevê a mesma prerrogativa processual do membro do Ministério Público da União, que oficie perante tribunais, de ser processado e julgado, nos crimes comuns e de responsabilidade, pelo Superior Tribunal de Justiça. Os demais membros do Ministério Público da União – aqueles que atuam perante órgãos judiciários de primeira instância – submetem-se à competência penal originária dos Tribunais Regionais Federais, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral (art. 108, I, a, da Constituição da República, e art. 18, II, c, da Lei Complementar nº 75/93). Por essa só razão, o processo-crime movido contra a recorrente, em trâmite na Sexta Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Estado de São Paulo, já seria absolutamente nulo. 3. Há mais, porém. Os documentos juntados à impetração (fls. 92-94), bem como outros, que o foram com os embargos declaratórios no Superior Tribunal de Justiça (fls. 204-224), além dos que acompanharam o recurso (fls. 263-265) e os agora enviados pela Procuradora-Geral do Trabalho (fls. 310-322), provam todos que a recorrente, suposto ocupe o cargo inicial de carreira, de Procuradora do Trabalho (art. 85, VIII, da Lei Complementar nº 75/93), atua e exerce suas funções no Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região (fls. 315). Foi o que, aliás, atestou o Procurador-Regional Chefe da 4a Região, ao assentar que a ora recorrente “foi designada, pela PORTARIA 153, de 16 de dezembro de 2005, para funcionar na coordenadoria interveniente, a saber, aquela que atua nos feitos em tramitação no TRT da Quarta Região (Segundo Grau de Jurisdição). A PORTARIA 153 previu efeitos a partir de 15/03/2006. Assim, desde aquela data a Procuradora em questão vem sendo designada para acompanhar as sessões do Tribunal, e exarar pareceres quanto aos recursos e feitos de competência originária. As últimas portarias que assim dispuseram foram as de número 042, de 25/04/2006, e 047, de 03/05/2005, ambas dispondo sobre as sessões de maio do corrente“ (fls. 315). É o que basta para desencadear a competência do Superior Tribunal de Justiça, nos termos do art. 105, I, a, da Constituição da República. A objeção levantada pelo Superior Tribunal de Justiça, de que a atuação da recorrente seria temporária e, portanto, incapaz de atrair a competência dessa Corte, confunde designação para exercício da função junto ao Tribunal – o que vem sendo permanente, no caso – e indicação para atuar em determinada Turma, essa, sim, renovada mês a mês, como ocorre em qualquer tribunal. A competência prevista no art. 105 da Constituição Federal é estabelecida em razão das funções exercidas por aqueles membros do Ministério Público que oficiam perante tribunais, e não, propriamente, pelo degrau na carreira. Assim, pouco se dá seja Procuradora do Trabalho ou Procuradora-Regional do Trabalho: membro do Ministério Público da União, oficiante em tribunal, possui prerrogativa de foro. 4. Por fim, noto que a denúncia foi recebida pelo Juízo da 5a Vara Criminal da Justiça Federal do Estado de São Paulo, em 30 de agosto de 2002, quando a recorrente já exercia as atividades no Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região. Friso que é irrelevante, para definição do órgão judiciário constitucionalmente competente, o momento da suposta prática da infração penal, porque a competência por prerrogativa de foro, objeto do art. 105, I, a, da Constituição da República, é ditada em razão das funções exercidas à data da instauração do processo, como já o reconheceu esta Corte: “HABEAS CORPUS – CRIMES COMUNS – PRÁTICA ATRIBUÍDA A MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO QUE ATUA PERANTE TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL – COMPETÊNCIA PENAL ORIGINÁRIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – PEDIDO DEFERIDO. CRIMES COMUNS – MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO QUE ATUA PERANTE TRIBUNAL – PRERROGATIVA DE FORO – Os membros do Ministério Público da União, que atuam perante quaisquer Tribunais judiciários, estão sujeitos à jurisdição penal originária do Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 105, I, “a“, in fine), a quem compete processá-los e julgá-los nos ilícitos penais comuns, ressalvada a prerrogativa de foro do Procurador-Geral da República, que tem, no Supremo Tribunal Federal, o seu juiz natural (CF, art. 102, I, b). A superveniente investidura do membro do Ministério Público da União, em cargo ou em função por ele efetivamente exercido “perante tribunais“, tem a virtude de deslocar, ope constitutionis , para o Superior Tribunal de Justiça, a competência originária para o respectivo processo penal condenatório, ainda que a suposta prática delituosa tenha ocorrido quando o Procurador da República se achava no desempenho de suas atividades perante magistrado federal de primeira instância. PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO – A consagração constitucional do princípio do juiz natural (CF, art. 5º, LIII) tem o condão de reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com a construção das bases jurídicas necessárias à formulação do processo penal democrático. O princípio da naturalidade do juízo representa uma das matrizes político-ideológicas que conformam a própria atividade legislativa do Estado, condicionando, ainda, o desempenho, em juízo, das funções estatais de caráter penal persecutório. A lei não pode frustrar a garantia derivada do postulado do juiz natural. Assiste, a qualquer pessoa, quando eventualmente submetida a juízo penal, o direito de ser processada perante magistrado imparcial e independente, cuja competência é predeterminada, em abstrato, pelo próprio ordenamento constitucional“ (HC nº 73.801, rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 27.06.1997. Grifei). Ao sistema constitucional repugna processo instaurado perante juízo absolutamente incompetente, que furta a persecutio criminis ao juiz natural. 5. Do exposto, dou provimento ao recurso, para pronunciar a nulidade da decisão que recebeu a denúncia contra a recorrente e determinar ao Juízo Federal da Sexta Vara Criminal Federal, Especializada em Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e em Lavagem de Valores, da Seção Judiciária do Estado de São Paulo, que encaminhe ao Superior Tribunal de Justiça, foro competente, os autos da Ação Penal nº 95.101307-3.
O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO: Senhor Presidente, o voto do eminente Relator está rigorosamente conforme o sentido da Constituição no artigo 105, inciso I, alínea “a“. Em matéria de definição de competência do Superior Tribunal de Justiça, quanto a membros do Ministério Público, a Constituição exige um elemento subjetivo: ser membro do Ministério Público; e um elemento objetivo: oficiar perante tribunais. O eminente Relator demonstrou, à saciedade, que esses dois requisitos estão presentes no caso. Acompanho o voto de Sua Excelência.
EMENTA - COMPETÊNCIA CRIMINAL. Ministério Público da União. Procuradora do Trabalho. Designação para oficiar no Tribunal Regional do Trabalho. Ação penal por crime comum (art. 4º, caput e § único, 6º e 10 da Lei nº 7.492/86). Prerrogativa de foro. Feito da competência originária do Superior Tribunal de Justiça. Atuação temporária naqueloutro tribunal. Infrações que teriam sido praticadas antes da designação. Irrelevância. Nulidade da decisão do Juízo Federal que recebeu a denúncia. Recurso provido para pronunciá-la. Inteligência do art. 105, I, a, da CF. Precedentes. Independentemente da data da prática do ato que lhe é imputado, o membro do Ministério Público da União que oficie perante qualquer tribunal está, nos crimes comuns e de responsabilidade, sujeito à jurisdição penal originária do Superior Tribunal de Justiça.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso ordinário em habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Brasília, 06 de junho de 2006.
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