28/02/2012 PRIMEIRA TURMA
HABEAS CORPUS 111.081 RIO GRANDE DO SUL
V O T O
EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO
DE ENTORPECENTES (ART. 33 DA LEI N.
11.343/06). DETRAÇÃO NA PENA RELATIVA A
CRIME POSTERIOR DE PERÍODO DE PRISÃO
PROVISÓRIA POR CRIME ANTERIOR, DO QUAL
RESULTOU ABSOLVIÇÃO: INTERPRETAÇÃO DO
ART. 42 DO CÓDIGO PENAL.
1. A DETRAÇÃO PRESSUPÕE A CUSTÓDIA PENAL
PELO MESMO CRIME OU POR DELITO
POSTERIOR, POR ISSO QUE INADMISSÍVEL
EMPREENDER A OPERAÇÃO DO DESCONTO EM
RELAÇÃO A DELITOS ANTERIORES, COMO SE
LÍCITO FOSSE INSTAURAR UMA “CONTACORRENTE”
DELINQUENCIAL, VIABILIZANDO
AO IMPUTADO A PRÁTICA DE ILÍCITOS
IMPUNÍVEIS AMPARÁVEIS POR CRÉDITOS DE
NÃO PERSECUÇÃO.
2. O ARTIGO 42 DO CÓDIGO PENAL
DETERMINAVA, EM SEU PARÁGRAFO ÚNICO, O
DESCONTO DO TEMPO DE PRISÃO PROVISÓRIA
INDEVIDAMENTE CUMPRIDO, RELATIVO À
CONDENAÇÃO POR CRIME POSTERIOR,
INVALIDADA EM DECISÃO JUDICIAL
RECORRÍVEL.
3. A DETRAÇÃO, NESSE CASO, RESULTARIA EM
UMA ESPÉCIE DE BÔNUS EM FAVOR DO RÉU, OU
SEJA, EM UM CRÉDITO CONTRA O ESTADO, E
REPRESENTARIA A IMPUNIDADE DE
POSTERIORES INFRAÇÕES PENAIS.
4. A SUPRESSÃO DO PARÁGRAFO ÚNICO DO
ARTIGO 42, INAUGUROU EXEGESE QUE ADMITE
A DETRAÇÃO POR PRISÃO EM OUTRO PROCESSO
(EM QUE HOUVE ABSOLVIÇÃO OU EXTINÇÃO
DA PUNIBILIDADE), DESDE QUE A PRÁTICA DO
DELITO EM VIRTUDE DO QUAL O
CONDENADO CUMPRIRÁ PENA TENHA SIDO
ANTERIOR.
5. O ARTIGO 42 DO CÓDIGO PENAL, NO SEU
PARÁGRAFO ÚNICO, VEICULAVA NORMA
CONDIZENTE COM A REALIDADE DA ÉPOCA,
MAS INIMAGINÁVEL NOS DIAS ATUAIS,
PORQUANTO É, DATA VENIA, SURREALISTA
ADMITIR A POSSIBILIDADE DE O RÉU CREDITARSE
DE TEMPO DE PRISÃO PROVISÓRIA PARA
ABATER NA PENA RELATIVA A CRIME QUE
EVENTUALMENTE VENHA A COMETER.
6. A DETRAÇÃO NA PENA DE CRIME POSTERIOR
DO TEMPO DE PRISÃO PROVISÓRIA RELATIVA A
CRIME ANTERIOR, AINDA QUE HAJA
ABSOLVIÇÃO É TESE JÁ INTERDITADA PELA
JURISPRUDÊNCIA DA SUPREMA CORTE: RHC
61.195, REL. MIN. FRANCISCO REZEK, DJ DE
23/09/83 E HC 93.979, REL. MIN. CÁRMEN
LÚCIA, DJE DE 19/06/98.
7. IN CASU, O PACIENTE CUMPRE PENA DE 6
(SEIS) ANOS E 4 (QUATRO) MESES DE
RECLUSÃO, EM REGIME FECHADO, POR CRIME
DE TRÁFICO DE DROGAS PRATICADO EM
30/09/09, E REQUEREU A DETRAÇÃO DOS
PERÍODOS DE 02/02/06 A 15/02/06 E 18/03/08 A
28/04/08, RELATIVOS À PRISÃO PROVISÓRIA
CUMPRIDA EM OUTRO PROCESSO.
8. ORDEM DENEGADA.
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX (RELATOR): A detração da pena está
prevista no artigo 42 do Código Penal1.
Segundo Heleno Cláudio Fragoso, “Entende-se por detração penal o
abatimento na pena a ser cumprida do tempo de prisão já cumprido pelo
condenado”. E prossegue o eminente penalista: “... a jurisprudência se
orienta no sentido de admitir a detração sempre que se trate de outro crime
anteriormente cometido”2.
Anotando que em outros países exige-se a identidade entre o fato
delituoso em que incide a condenação e aquele que motivou a custódia
processual (conexão material), à exceção da legislação alemã, que exige
apenas a conexão formal para que se aplique a detração penal, José
Frederico Marques observou que o Código Penal pátrio foi omisso a
respeito do assunto e consignou que a legislação germânica é “mais
convinhável e acertada”, justificando e ilustrando a assertiva com o seguinte
exemplo3:
“Desde que os fatos puníveis foram objeto de um só processo, ou
porque conexos, ou por força da continência de causa, a detração deve
operar-se, mesmo que o réu tenha sido absolvido pelo crime a ele
atribuído e em que ocorreu a prisão cautelar. Suponha-se que um
indivíduo tenha atirado em outro, praticando assim crime de
homicídio. O juiz decreta sua prisão preventiva, de acordo com a regra
no artigo 312, do Código de Processo Penal. Logo após o crime, aquele
1 CP, art. 42. Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança,
o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de
internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior.
2 Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, ed., rev. por Fernandes Fragoso. -
Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 303.
3 Tratado de Direito Penal, volume III, 1ª edição atualizada, Milennium Editora,
Campinas – SP, ps. 186/18
homicida desfere violento soco em uma terceira pessoa que pretendia
detê-lo, causando-lhe lesões corporais de natureza leve. Se o Tribunal
do Júri reconhecer que o réu praticou o homicídio por erro de proibição
(legítima defesa putativa) e o condenar pelo crime de ferimentos levos
(ambos foram processados e julgados em simultaneos processus), na
pena imposta, quanto a este, deve ser computado o tempo de
prisão cautelar decorrente do delito de homicídio.”
Luiz Regis Prado4 observa que o artigo 42 do Código Penal possuía
parágrafo único dispondo: “computa-se, igualmente, o tempo indevidamente
cumprido, relativo à condenação por crime posterior, invalidado em
decisão judicial irrecorrível”, e conclui que “em se admitindo a detração
nesse caso, estaria se estabelecendo uma espécie de ‘conta corrente’, em favor
do réu, que, com um ‘crédito’ contra o Estado, a ser usado para a
impunidade de posteriores infrações penais” [grifei]. Com a supressão do
parágrafo único do artigo 42, instalou-se, segundo o citado autor “uma
tendência que admite a detração por prisão em outro processo (em que houve
absolvição ou extinção da punibilidade), desde que a prática do delito em virtude
do qual o condenado cumprirá pena tenha sido anterior à sua prisão”.
Destarte, o suprimido parágrafo único do artigo 42 do Código Penal
veiculava norma condizente com a realidade da época, mas inimaginável
nos dias atuais, porquanto é, data venia, surrealista a possibilidade de o
réu creditar-se de tempo de prisão provisória para abater na pena relativa
a crime que eventualmente venha a cometer.
Esta Primeira Turma, ao julgar o HC n. 93.979, Rel. Min. Cármen
Lúcia, j. em 22/04/2008, sem adentrar a questão envolvendo a conexão
material ou formal, fixou o entendimento de que não cabe descontar na
pena imposta pela prática de crime posterior o tempo de prisão
provisória pelo cometimento de crime anterior e do qual resultou
absolvição, sob pena de creditar-se um bônus para que o réu desconte na
pena resultante de condenação futura, consoante se vê da ementa do
julgado:
4 Luiz Regis Prado, Comentários ao Código Penal, 4ª edição revista, atualizada e
ampliada, Editora Revista dos Tribunais, p. 203.
“HABEAS CORPUS. DETRAÇÃO PENAL. CÔMPUTO
DO PERÍODO DE PRISÃO ANTERIOR À PRÁTICA DE NOVO
CRIME: IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. HABEAS
CORPUS INDEFERIDO.
1. Firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal
no sentido de que ‘não é possível creditar-se ao réu qualquer tempo
de encarceramento anterior à prática do crime que deu origem a
condenação atual’ (RHC 61.195, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ
23.9.1983).
2. Não pode o Paciente valer-se do período em que esteve
custodiado – e posteriormente absolvido – para fins de detração
da pena de crime cometido em período posterior.
3. Habeas Corpus indeferido.”
Rememoro o debate instaurado no referido julgamento:
“O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO
(PRESIDENTE) – Aquele que delinque não fica com crédito
para ver compensado, em termos de custódia, considerada nova
prática criminosa.
Evidentemente, a detração pressupõe período de custódia
após o cometimento do crime e ligado a este. Claro, não
confundo essa visão com a problemática alusiva ao tempo
máximo em que o cidadão pode ficar preso.
Não. Pretende-se a detração, levando-se em conta a pena
ligada a crime anterior. Evidentemente, não há o direito, a não
ser que se parta para o denominado ‘Direito Alternativo’.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA)
– Apena como curiosidade, interessou-me o assunto; anotei a
jurisprudência de aproximadamente onze tribunais: todos
seguem o Supremo Tribunal, menos o Tribunal do Rio Grande
do Sul.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO
(PRESIDENTE) – Custo até a perceber que se tenha feito
tamanha confusão entre o instituto da detração e o instituto da
permanência máxima da cadeia. Pode ser perquirido o período
máximo, levando em conta o tempo alusivo a crime anterior
praticado pelo condenado no processo subsequente, observado
o § 2º do artigo 75 do Código Penal.
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES
DIREITO.
Só para poder entender, porque a questão é até
interessante. Quer dizer, então vamos admitir que uma pessoa
mate outra e seja condenada a trinta anos de cadeia. Quer dizer,
se matar uma outra e já tiver trinta anos, ele não vai mais ser
condenado?
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO
(PRESIDENTE) – Ministro, não foi isso que disse. Por gentileza,
perceba o alcance do meu voto. Não junto períodos distintos,
intercalados pelo espaço de tempo em que a pessoa esteve em
liberdade. Assento que, de forma contínua, não se pode ficar
sob a custódia do Estado por mais de trinta anos. De forma
intercalada, pode-se, desde que tenha idade para cumprir a
pena e continue vivo.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA)
– A tese, no caso, é de que os artigos 42 do Código Penal e 111
da Lei de Execuções Penais não vedariam a possibilidade de
detração em processos distintos.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO
(PRESIDENTE) – Não cabe detração. É algo diverso. A detração
seria uma compensação. Quer dizer, alguém, após haver
cumprido pena, ficaria com um crédito a ser considerado,
posteriormente, no caso de um outro crime. O passo mostra-se
demasiadamente largo.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA)
– Compensação é a palavra certa. Imagine que alguém, depois
de haver cumprido um período de pena, seja absolvido e tenha
ficado preso um ou dois meses preventivamente. Ele teria,
então, um crédito com o Estado? Quer dizer, já sabe que pode
delinquir, porque, por dois meses, não ficará preso?
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO
(PRESIDENTE) – E, absolvido, pode ingressar contra o Estado,
visando a indenização.
A SENHOR MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) –
Encontrei apenas uma menção no Direito norte-americano, no
qual não se pode ser condenado pelo mesmo fato duas vezes.
Então, se uma pessoa for condenada por matar alguém, e
depois descobre que não foi ela, se viesse a matar efetivamente,
ela não seria mais julgada. Quer dizer, é um sistema
completamente diferente.”
O tema ora ventilado é idêntico ao analisado no julgamento acima
referido, no sentido de que não cabe descontar na pena do crime posterior
o tempo de prisão cautelar resultante da prática de crime anterior pelo
qual o réu restou absolvido.
In casu, o paciente cumpre pena de 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses de
reclusão, em regime fechado, por crime de tráfico de drogas praticado em
30/09/09, e requereu a detração dos períodos de 02/02/06 a 15/02/06 e
18/03/08 a 28/04/08, relativos à prisão provisória cumprida em outro
processo.
Ex positis, denego a ordem.
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