Veja a íntegra de relatório e voto do ministro Celso de Mello no julgamento do Habeas Corpus (HC) 86634, impetrado no Supremo Tribunal Federal (STF) em favor de Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-mar. O HC foi julgado pela Segunda Turma do STF em dezembro passado.
Relator do HC, o ministro divulga também a ementa e o acórdão referente à decisão que garantiu a Beira-mar o direito de estar presente em todos os atos processuais nos quais possa exercer seu direito de defesa.
HABEAS CORPUS 86.634-4 RIO DE JANEIRO
RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO
PACIENTE(S) : LUIZ FERNANDO DA COSTA
IMPETRANTE(S) : MARCO AURÉLIO TORRES SANTOS
COATOR(A/S)(ES) : RELATOR DO HABEAS CORPUS Nº 46.974 DO
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
R E L A T Ó R I O
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (Relator): Trata-se
de “habeas corpus“ contra decisão emanada do eminente Min. FELIX
FISCHER, Relator do HC 46.974/RJ, na qual esse ilustre Magistrado
denegou pedido de medida liminar, fazendo-o com apoio nos seguintes
fundamentos (fls. 133):
“Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar,
impetrado em favor de LUIZ FERNANDO DA COSTA, apontando
como autoridade coatora o Juiz Federal convocado em
substituição à Desembargadora Relatora do habeas
corpus nº 2002.02.01.007978-0, da Primeira Turma
Especializada do e. Tribunal Regional Federal da
2ª Região, que indeferiu liminar pleiteada em favor da
ora paciente.
Consta dos autos que o paciente foi denunciado pela
suposta prática dos crimes previstos nos arts. 18, I,
da Lei 6.368/76; 1º, I, § 1º, II, da Lei 9.613/98 e 22,
parágrafo único, da Lei 7.492/86. Alega o impetrante
que a audiência de instrução foi realizada sem a
presença do réu, que se encontrava preso, o que
configuraria cerceamento de defesa. Impetrado habeas
corpus com pedido de liminar perante o e. Tribunal a
quo, no qual o impetrante buscava a suspensão da
audiência designada para o dia 18/08/2005, esta restou
indeferida, consoante se extrai do documento de fl. 19.
Daí o presente mandamus por meio do qual se busca
liminarmente, a suspensão da audiência designada para o
dia 14/09/2005. No mérito, requer ‘concessão de ordem
para sobrestar o andamento do processo até o julgamento
final do habeas corpus impetrado no TRF’ (fl. 12).
É o breve relatório.
Esta Corte tem entendido que descabe o instrumento
heróico em situação como a presente, sob pena de
ensejar supressão de instância. Assim o entendimento do
Pretório Excelso: HCPR 80.288/RJ, Rel. Min. Carlos
Velloso, DJU de 02/08/2000; HCQO 76.347/MS, 1ª Turma,
Rel. Min. Moreira Alves, DJU de 08/05/98; STF,
HC 79.748/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU
de 23/06/2000.
Ressalte-se, por sinal, que tal orientação veio a
ser, inclusive, objeto da Súmula 691/STF, verbis:
‘Não compete ao Supremo Tribunal Federal
conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão
do Relator que, em habeas corpus requerido a
Tribunal Superior, indefere a liminar.’
Da mesma forma, nesta Corte: AGRHC 12.340/RR,
5ª Turma, Rel. Min. Edson Vidigal, DJU de 02/05/2000;
HC 8.326/SP, 5ª Turma, DJU de 16/08/99; HC 8.744/SP,
6ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU de
07/06/99.
Feitas essas considerações, denego a liminar.“
(grifei)
Ao analisar a pretensão cautelar deduzida na presente
sede, deferi o pedido liminar formulado pela parte impetrante,
considerada a excepcionalidade de que se reveste o caso ora em
exame, (fls. 137/142). Proferi, então, decisão consubstanciada na
seguinte ementa (fls. 137):
“A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA PLENITUDE DE DEFESA:
UMA DAS PROJEÇÕES CONCRETIZADORAS DA CLÁUSULA DO ‘DUE
PROCESS OF LAW’. CARÁTER GLOBAL E ABRANGENTE DA FUNÇÃO
DEFENSIVA: DEFESA TÉCNICA E AUTODEFESA (DIREITO DE
HC 86.634 / RJ
AUDIÊNCIA E DIREITO DE PRESENÇA). PACTO INTERNACIONAL
SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS/ONU (ART. 14, N. 3,
‘D’) E CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS/OEA
(ART. 8º, § 2º, ‘D’ E ‘F’). DEVER DO ESTADO DE
ASSEGURAR, AO RÉU PRESO, O EXERCÍCIO DESSA PRERROGATIVA
ESSENCIAL, ESPECIALMENTE A DE COMPARECER À AUDIÊNCIA DE
INQUIRIÇÃO DAS TESTEMUNHAS, AINDA MAIS QUANDO ARROLADAS
PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. RAZÕES DE CONVENIÊNCIA
ADMINISTRATIVA OU GOVERNAMENTAL NÃO PODEM LEGITIMAR O
DESRESPEITO NEM COMPROMETER A EFICÁCIA E A OBSERVÂNCIA
DESSA FRANQUIA CONSTITUCIONAL. DOUTRINA. PRECEDENTES.
MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.“
A douta Procuradoria-Geral da República, em parecer da
lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. CLÁUDIO LEMOS
FONTELES, manifestou-se pelo não-conhecimento do presente “writ“
constitucional (fls. 197/199).
Cumpre registrar, neste ponto, que o E. Tribunal
Regional Federal da 2ª Região, ao apreciar, em caráter definitivo, a
ação de “habeas corpus“ ajuizada em favor do ora paciente, denegou a
ordem, em julgamento consubstanciado em acórdão assim ementado
(fls. 187):
“HABEAS CORPUS. ALEGAÇÃO DE NULIDADE ABSOLUTA DOS
ATOS PROCESSUAIS, DESDE A COLHEITA DA PROVA ORAL, EM
VIRTUDE DA AUSÊNCIA DO PACIENTE NAS AUDIÊNCIAS DO
SUMÁRIO DE ACUSAÇÃO. CERCEAMENTO DE DEFESA.
INOCORRÊNCIA.
I - Se ao juiz é concedida a prerrogativa de
retirar o acusado da audiência de oitiva de testemunhas
quando a presença do mesmo comprometer o teor do
depoimento (art. 217, do CPP), da mesma maneira pode o
juiz, por motivo justo e proporcional, assegurando a
presença do advogado do acusado, impedir que o mesmo
compareça à audiência.
II – Considerando a periculosidade do paciente,
transferido para fora do Estado por questão de
segurança pública, e não demonstrado o prejuízo para a
sua defesa, não há se falar em nulidade absoluta dos
atos processuais ocorridos até o presente momento.
III – Ordem que se denega.“ (grifei)
O E. Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, ao
julgar o pedido de “habeas corpus“ impetrado contra a denegação da
medida liminar pelo E. TRF/2ª Região, proferiu decisão na qual
considerou prejudicado o “writ“ constitucional em questão
(fls. 200):
“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. INSTRUÇÃO
PROCESSUAL. OITIVA DE TESTEMUNHAS DA ACUSAÇÃO. WRIT
CONTRA LIMINAR. ACÓRDÃO PROLATADO. CONHECIMENTO.
JULGAMENTO DA ORDEM PELO TRIBUNAL DE ORIGEM.
PREJUDICADO.
I - Tratando-se de habeas corpus contra decisão que
indeferiu liminar em writ anteriormente impetrado, e
evidenciado o julgamento pelo Tribunal a quo, a
impetração deve ser conhecida como substitutiva de
recurso ordinário.
II - Com o julgamento da ordem pelo e. Tribunal a
quo, denegando o habeas corpus originário, resta sem
objeto o presente mandamus impetrado com o mesmo fim.
Writ prejudicado.“
(HC 46.974/RJ, Rel. Min. FELIX FISCHER - grifei)
É o relatório.
V O T O
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (Relator):
Preliminarmente, entendo inaplicável, ao caso ora em exame, a
Súmula 691/STF, pois a decisão proferida por eminente Ministro do
E. Superior Tribunal de Justiça - que não suspendeu a eficácia de
ato decisório emanado do E. Tribunal Regional Federal/2ª Região –
importou em frontal desrespeito à garantia constitucional de defesa,
que assiste, em nosso sistema de direito positivo, a qualquer pessoa
que sofra persecução penal instaurada pelo Estado, notadamente se se
tratar, como sucede na espécie, de pessoa presa e posta sob a
imediata custódia do Estado.
O indiscutível relevo jurídico do tema suscitado na
presente sede – que envolve discussão em torno do direito de
presença do réu, especialmente quando preso, na audiência de
instrução penal – permite superar, a meu juízo, embora em caráter
excepcional, o obstáculo representado pelo enunciado constante da
Súmula 691/STF.
Como se sabe, esta Suprema Corte tem excepcionalmente
afastado a incidência da referida formulação sumular, sempre que a
matéria em exame revelar-se impregnada de alta significação jurídica
(como sucede na espécie), ou, então, nos casos em que o ato
impugnado caracterizar-se por sua evidente ilegalidade ou
abusividade, ou, ainda, quando a decisão questionada em sede de
“habeas corpus“ divergir, frontalmente, da jurisprudência
prevalecente no Supremo Tribunal Federal.
A não-aplicação da Súmula 691/STF tem ocorrido na
prática processual desta Corte, como o evidenciam diversas decisões
proferidas quer em sede monocrática (HC 90.112-MC/PR, Rel. Min.
CEZAR PELUSO - HC 89.113-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO –
HC 87.353-MC/ES, Rel. Min. GILMAR MENDES – HC 88.050-MC/SP, Rel.
Min. GILMAR MENDES - HC 88.569-MC/PE, Rel. Min. MARCO AURÉLIO –
HC 88.129-AgR/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – HC 89.132-MC/RS, Rel.
Min. MARCO AURÉLIO - HC 89.414-MC/RS, Rel. Min. CEZAR PELUSO,
HC 86.634-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.) quer em sede
colegiada (HC 84.014-AgR/MG, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - HC 85.185/SP,
Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO):
“1. COMPETÊNCIA CRIMINAL. Habeas corpus. Impetração
contra decisão de ministro relator do Superior Tribunal
de Justiça. Indeferimento de liminar em habeas corpus,
sem fundamentação. Súmula 691 do Supremo Tribunal
Federal. Conhecimento admitido no caso, com atenuação
do alcance do enunciado da súmula. Precedentes. O
enunciado da súmula 691 do Supremo não o impede de, tal
seja a hipótese, conhecer de habeas corpus contra
decisão do relator que, em habeas corpus requerido ao
Superior Tribunal de Justiça, indefere pedido de
liminar.“
(HC 87.468/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO)
Cumpre registrar, neste ponto, que a colenda Segunda
Turma desta Corte reafirmou esse entendimento e, em conseqüência -
considerada a excepcionalidade da questão jurídico-constitucional
suscitada no processo de “habeas corpus“ -, afastou a incidência da
Súmula 691/STF (HC 89.025-AgR/SP, Rel. p/ o acórdão Min. EROS GRAU).
Sendo assim, e por entender que a impetração suscita
tema impregnado do mais alto relevo jurídico–constitucional - que
envolve discussão em torno do reconhecimento, ou não, do direito de
presença do acusado nas audiências de instrução realizadas no processo
penal contra ele instaurado -, afasto a incidência, no caso, da
Súmula 691/STF.
Cabe assinalar, desde logo, que os fundamentos que dão
suporte a esta impetração revestem-se de inquestionável importância
jurídica, pois o caso ora em exame põe em evidência controvérsia
consistente no reconhecimento de que assiste, ao réu preso, sob pena
de nulidade absoluta, o direito de comparecer, mediante requisição
do Poder Judiciário, à audiência de instrução processual em que
serão inquiridas testemunhas em geral, notadamente aquelas arroladas
pelo Ministério Público.
Tenho sustentado, nesta Suprema Corte, com apoio em
autorizado magistério doutrinário (FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO,
“Processo Penal“, vol. 3/136, 10ª ed., 1987, Saraiva; FERNANDO DE
ALMEIDA PEDROSO, “Processo Penal – O Direito de Defesa“, p. 240,
1986, Forense; JAQUES DE CAMARGO PENTEADO, “Acusação, Defesa e
Julgamento“, p. 261/262, item n. 17, e p. 276, item n. 18.3, 2001,
Millennium; ADA PELLEGRINI GRINOVER, “Novas Tendências do Direito
Processual“, p. 10, item n. 7, 1990, Forense Universitária; ANTONIO
SCARANCE FERNANDES, “Processo Penal Constitucional“, p. 280/281,
item n. 26.10, 3ª ed., 2003, RT; ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Direitos e
Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro“, p. 189,
item n. 7.2, 2ª ed., 2004, RT; ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO,
“Direito à Prova no Processo Penal“, p. 154/155, item n. 9, 1997,
RT; VICENTE GRECO FILHO, “Tutela Constitucional das Liberdades“,
p. 110, item n. 5, 1989, Saraiva; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Direito
Processual Penal“, vol. 1/431-432, item n. 3, 1974, Coimbra Editora,
v.g.), que o acusado, embora preso, tem o direito de comparecer, de
assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos
processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de
instrução do processo penal, que se realiza, sempre, sob a égide do
contraditório, sendo irrelevantes, para esse efeito, “(...) as
alegações do Poder Público concernentes à dificuldade ou
inconveniência de proceder à remoção de acusados presos a outros
pontos do Estado ou do País“, eis que “(...) alegações de mera
conveniência administrativa não têm - nem podem ter - precedência
sobre as inafastáveis exigências de cumprimento e respeito ao que
determina a Constituição“ (RTJ 142/477-478, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Esse entendimento tem por suporte o reconhecimento –
fundado na natureza dialógica do processo penal acusatório,
impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente
democrático (JOSÉ FREDERICO MARQUES, “O Processo Penal na
Atualidade“, “in“ “Processo Penal e Constituição Federal“, p. 13/20,
1993, APAMAGIS/Ed. Acadêmica) - de que o direito de audiência, de um
lado, e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou
não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da
garantia constitucional do “due process of law“ e que asseguram, por
isso mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais
a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado
este em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu.
Vale referir, neste ponto, ante a extrema pertinência
de suas observações, o douto magistério de ROGÉRIO SCHIETTI MACHADO
CRUZ (“Garantias Processuais nos Recursos Criminais“, p. 132/133,
item n. 5.1, 2002, Atlas):
“A possibilidade de que o próprio acusado
intervenha, direta e pessoalmente, na realização dos
atos processuais, constitui, assim, a autodefesa
(...).
Saliente-se que a autodefesa não se resume à
participação do acusado no interrogatório judicial,
mas há de estender-se a todos os atos de que o
imputado participe. (...).
Na verdade, desdobra-se a autodefesa em ‘direito de
audiência’ e em ‘direito de presença’, é dizer, tem o
acusado o direito de ser ouvido e falar durante os atos
processuais (...), bem assim o direito de assistir à
realização dos atos processuais, sendo dever do Estado
facilitar seu exercício, máxime quando o imputado se
encontre preso, impossibilitado de livremente deslocar-se
ao fórum.“ (grifei)
Incensurável, por isso mesmo, sob tal perspectiva, o
julgamento desta Suprema Corte, de que foi Relator o eminente
Ministro LEITÃO DE ABREU, consubstanciado em acórdão que está assim
ementado (RTJ 79/110):
“Habeas Corpus. Nulidade processual. O direito de
estar presente à instrução criminal, conferido ao réu,
assenta na cláusula constitucional que garante ao
acusado ampla defesa. A violação desse direito importa
nulidade absoluta, e não simplesmente relativa, do
processo.
...................................................
Nulidade do processo a partir dessa audiência.
Pedido deferido.“ (grifei)
Cumpre destacar, nesse mesmo sentido, inúmeras outras
decisões emanadas deste Supremo Tribunal Federal que consagraram esse
entendimento (RTJ 64/332 – RTJ 66/72 - RTJ 70/69 - RTJ 80/37 –
RTJ 80/703), cabendo registrar, por relevante, julgamento em que esta
Suprema Corte reconheceu essencial a presença do réu preso na
audiência de inquirição de testemunhas arroladas pelo órgão da
acusação estatal, sob pena de ofensa à garantia constitucional da
plenitude de defesa:
“‘Habeas corpus’. Nulidade processual. O direito de
estar presente à instrução criminal, conferido ao réu e
seu defensor, assenta no princípio do contraditório. Ao
lado da defesa técnica, confiada a profissional
habilitado, existe a denominada autodefesa, através da
presença do acusado aos atos processuais. (...).“
(RTJ 46/653, Rel. Min. DJACI FALCÃO – grifei)
Essa percepção do tema em exame – que reconhece a
ocorrência de nulidade absoluta na preterição de formalidade tão
essencial ao exercício do direito de defesa - reflete-se no
magistério jurisprudencial de outros Tribunais (RT 522/369 –
RT 537/337 - RT 562/346 - RT 568/287 - RT 569/309 – RT 718/415):
“O direito conferido ao réu de estar presente à
instrução criminal assenta-se na cláusula
constitucional que garante ao acusado ampla defesa. A
violação desse direito importa nulidade absoluta, e não
apenas relativa, do processo.“
(RT 607/306, Rel. Des. BAPTISTA GARCIA - grifei)
Não constitui demasia assinalar, neste ponto, analisada
a função defensiva sob uma perspectiva global, que o direito de
presença do réu na audiência de instrução penal, especialmente
quando preso, além de traduzir expressão concreta do direito de
defesa (mais especificamente da prerrogativa de autodefesa), também
encontra suporte legitimador em convenções internacionais que
proclamam a essencialidade dessa franquia processual, que compõe o
próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto
complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em
sede de persecução criminal, mesmo que se trate de réu processado
por suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes
equiparados.
A justa preocupação da comunidade internacional com a
preservação da integridade das garantias processuais básicas
reconhecidas às pessoas meramente acusadas de práticas delituosas
tem representado, em tema de proteção aos direitos humanos, um dos
tópicos mais sensíveis e delicados da agenda dos organismos
internacionais, seja em âmbito regional, como o Pacto de São José da
Costa Rica (Artigo 8º, § 2º, “d“ e “f“), aplicável ao sistema
interamericano, seja em âmbito universal, como o Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 14, n. 3, “d“), celebrado
sob a égide da Organização das Nações Unidas, e que representam
instrumentos que reconhecem, a qualquer réu, dentre outras
prerrogativas eminentes, o direito de comparecer e de estar presente
à instrução processual, independentemente de achar-se sujeito, ou
não, à custódia do Estado.
Devo reconhecer, lealmente, no entanto, que esse
entendimento já não tem mais prevalecido na jurisprudência desta
Corte (RTJ 137/720 – RTJ 139/161 – RTJ 139/519 – RTJ 152/533 -
RTJ 175/1065, v.g.), consoante evidencia recente decisão proferida
pelo Supremo Tribunal Federal, na qual - fiel à minha pessoal
convicção - restei vencido como Relator originário da causa, pois
entendia revelar-se essencial e imprescindível, tratando-se de réu
preso, a sua requisição para comparecer e assistir à instrução
processual, sob pena de nulidade absoluta:
“Recurso ordinário em habeas corpus. 2. Oitiva de
testemunhas por precatória. 3. Prescindibilidade da
requisição do réu preso, sendo bastante a intimação do
defensor da expedição da carta precatória. 4.
Desnecessidade de intimação do advogado da data da
inquirição da testemunha. 5. Precedentes. 6. Recurso
desprovido.“
(RHC 81.322/SP, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES -
grifei)
A despeito dessa diretriz consagrada pela
jurisprudência desta Suprema Corte, em relação à qual guardo
respeitosa divergência, tenho para mim que a magnitude do tema
constitucional versado na presente impetração impõe que se conceda a
presente ordem de “habeas corpus“, seja para impedir que se
desrespeite uma garantia instituída pela Constituição da República
em favor de qualquer réu, seja para evitar eventual declaração de
nulidade do processo penal instaurado contra o ora paciente e em
curso perante a Justiça Federal da Seção Judiciária do Estado do Rio
de Janeiro.
Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas,
concedo, excepcionalmente, “ex officio“, a presente ordem de “habeas
corpus“, para assegurar, ao ora paciente, o direito de presença em
todos os atos de instrução a serem realizados no âmbito do Processo-
-crime nº 2004.5101508953-0, ora em tramitação perante a 5ª Vara
Federal Criminal da cidade do Rio de Janeiro, Seção Judiciária do
Estado do Rio de Janeiro, sob pena de nulidade absoluta daqueles aos
quais se negar o comparecimento pessoal do paciente em questão,
restando invalidada, ainda, por ser absolutamente nula, qualquer
audiência de instrução que já tenha sido realizada sem a presença
pessoal do ora paciente.
É o meu voto.
ACÓRDÃO
E M E N T A: “HABEAS CORPUS“ – INSTRUÇÃO PROCESSUAL – RÉU
PRESO – PRETENDIDO COMPARECIMENTO À AUDIÊNCIA PENAL – PLEITO
RECUSADO – REQUISIÇÃO JUDICIAL NEGADA SOB FUNDAMENTO DA
PERICULOSIDADE DO ACUSADO – INADMISSIBILIDADE - A GARANTIA
CONSTITUCIONAL DA PLENITUDE DE DEFESA: UMA DAS PROJEÇÕES
CONCRETIZADORAS DA CLÁUSULA DO “DUE PROCESS OF LAW“ - CARÁTER GLOBAL E
ABRANGENTE DA FUNÇÃO DEFENSIVA: DEFESA TÉCNICA E AUTODEFESA (DIREITO
DE AUDIÊNCIA E DIREITO DE PRESENÇA) - PACTO INTERNACIONAL SOBRE
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS/ONU (ARTIGO 14, N. 3, “D“) E CONVENÇÃO
AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS/OEA (ARTIGO 8º, § 2º, “D“ E “F“) -
DEVER DO ESTADO DE ASSEGURAR, AO RÉU PRESO, O EXERCÍCIO DESSA
PRERROGATIVA ESSENCIAL, ESPECIALMENTE A DE COMPARECER À AUDIÊNCIA DE
INQUIRIÇÃO DAS TESTEMUNHAS, AINDA MAIS QUANDO ARROLADAS PELO
MINISTÉRIO PÚBLICO - RAZÕES DE CONVENIÊNCIA ADMINISTRATIVA OU
GOVERNAMENTAL NÃO PODEM LEGITIMAR O DESRESPEITO NEM COMPROMETER A
EFICÁCIA E A OBSERVÂNCIA DESSA FRANQUIA CONSTITUCIONAL – NULIDADE
PROCESSUAL ABSOLUTA – AFASTAMENTO, EM CARÁTER EXCEPCIONAL, NO CASO
CONCRETO, DA INCIDÊNCIA DA SÚMULA 691/STF – “HABEAS CORPUS“ CONCEDIDO DE
OFÍCIO.
- O acusado, embora preso, tem o direito de comparecer, de
assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos
processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de
instrução do processo penal, que se realiza, sempre, sob a égide do
contraditório. São irrelevantes, para esse efeito, as alegações do
Poder Público concernentes à dificuldade ou inconveniência de
proceder à remoção de acusados presos a outros pontos do Estado ou
do País, eis que razões de mera conveniência administrativa não têm -
nem podem ter - precedência sobre as inafastáveis exigências de
cumprimento e respeito ao que determina a Constituição. Doutrina.
Jurisprudência.
- O direito de audiência, de um lado, e o direito de
presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem
prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia
constitucional do “due process of law“ e que asseguram, por isso
mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais a
serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este
em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu. Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/ONU (Artigo 14, n. 3,
“d“) e Convenção Americana de Direitos Humanos/OEA (Artigo 8º, § 2º,
“d“ e “f“).
- Essa prerrogativa processual reveste-se de caráter
fundamental, pois compõe o próprio estatuto constitucional do direito de
defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam
qualquer acusado em sede de persecução criminal, mesmo que se trate
de réu processado por suposta prática de crimes hediondos ou de
delitos a estes equiparados. Precedentes.
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os
Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, na
conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas,
preliminarmente, por votação unânime, em afastar a incidência da
Súmula 691 e, também por unanimidade, em deferir, “ex officio“, o
pedido de “habeas corpus“, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 18 de dezembro de 2006.
CELSO DE MELLO - PRESIDENTE E RELATOR
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