Por Rafael De Piro -
O trecho inicial da frase que dá nome ao presente artigo invariavelmente compõe minha resposta àqueles, não raro com alguma formação jurídica, que insistem em não ver nada de anormal nas conversas mantidas entre o ex-juiz Sergio Moro e integrantes do Ministério Público Federal (MPF) de Curitiba sobre processos que tramitavam no juízo da 13ª Vara Federal daquela capital.
Evidentemente, a anomalia não reside no fato de eles se falarem amiúde acerca de casos em curso, mas sobretudo no teor dos diálogos, a revelar um julgador mais cuidadoso em tornar a acusação digna de êxito do que os próprios procuradores, estes, sim, encarregados constitucionalmente da persecução penal.
Magistrado e Ministério Público formaram um único bloco — ou time Moro, assim denominado pelos procuradores, atuando conjunta e coordenadamente em busca de condenações. E o que é mais grave: o time tinha no juiz o seu maestro, camisa dez e articulador das grandes jogadas —, que no final seriam concluídas por ele.
Isso não é normal, muito menos legal. Como o árbitro numa partida de futebol, o juiz no processo penal deve ser espectador, intervindo apenas para fazer valer as regras do jogo.
Em boa hora, pois, o STF, a funcionar como VAR (verdadeiro amigo da República), invalidou os tentos anotados pelo time Moro por entende-los resultado de uma conjugação de forças entre juiz e acusador, algo tipicamente inquisitório e, portanto, não tolerável em pleno século 21.
Não é demais lembrar, revivendo os ensinamentos sempre atuais de Pontes de Miranda [1], que o processo penal reflete, mais do que qualquer outra parte do Direito, a civilização de um povo. "Onde o processo é inquisitorial, a civilização está estagnada ou rola em decadência. Onde o processo é acusatório, com defesa fácil, a civilização está a crescer ou a aperfeiçoar-se".
Definitivamente, precisamos crescer e nos livrar dos juízes inquisidores, a quem tudo era permitido; desde a instauração ex officio do processo até a procura ilimitada de todas e quaisquer provas conducentes à descoberta da verdade real, promovendo buscas, apreensões, audição de testemunhas, realização de perícias, vistorias etc [2].
Em meados do século 15, por exemplo, as pessoas na Espanha valiam-se do aparato inquisitório para acertar velhas contas, exercer vinditas pessoais de vizinhos ou parentes e eliminar rivais nos negócios ou no comércio. Qualquer um podia figurar como denunciante, e o ônus da justificação ficava com o denunciado. Cada vez temia-se mais os parceiros, concorrentes profissionais ou qualquer outro com quem se pudesse ter atrito.
E não param aí as coincidências com o que vivenciamos há pouco: a fim de antecipar-se a uma denúncia anônima, as pessoas muitas vezes prestavam falsos testemunhos contra si mesmas. Não raro, partes inteiras de uma comunidade confessavam em massa, prendendo-se com grilhões de paranoia e medo ao controle dos métodos inquisitórios. As denúncias mesquinhas eram mais a regra do que a exceção e as testemunhas tinham seus depoimentos concertados para a eliminação de quaisquer pontos que traíssem sua identidade.
Nesse período, as prisões viviam abarrotadas de pessoas, muitas sem acusação. Os encarceramentos podiam se arrastar por anos, sem o suspeito ao menos saber a transgressão de que se dizia culpado [3]. Enquanto isso, o preso e sua família eram espoliados de todos os bens, desde a casa até os pratos e panelas. Os custos de sua manutenção no cárcere eram arcados com os recursos provenientes da venda de suas próprias posses. De vez em quando, o imputado acabava libertado só para se ver falido ou na miséria. Houve casos de filhos de prisioneiros ricos morrendo de fome em consequência do sequestro de sua propriedade.
Para a inquisição espanhola [4], uma confissão extraída nas vascas da tortura não era em si considerada válida. Os inquisidores reconheciam que o indivíduo submetido à dor extrema podia ser convencido a dizer qualquer coisa. Em consequência, o acusado era obrigado a confirmar e ratificar sua confissão um dia depois, para que ela fosse rotulada de espontânea e voluntária, apresentada sem coação.
Esperava-se que o acusado não apenas confessasse suas próprias transgressões, mas também apresentasse provas, por mais tênues que fossem, com as quais incriminar outros. Não surpreendia que, nessas condições, fossem apresentados quaisquer nomes, ou aqueles que seus atormentadores quisessem ouvir.
Em suma, o processo de tipo inquisitório representava uma luta judicial entre o imputado e o juiz, este, empenhado e sem limites na busca das provas que incriminassem o réu, inevitavelmente se convertia em seu inimigo [5].
Durante cinco séculos, aproximadamente, as práticas inquisitórias dominaram o continente europeu, a fazer do processo penal uma espécie de ciência dos horrores [6]. Muito disso deve-se, conforme preciosa lembrança de Manuel Valente [7], ao excesso de poder conferido ao juiz, que funcionava simultaneamente como "investigador, acusador e julgador — que se apresentava como o juiz salvador", protagonizando muitos abusos, "contra os quais os suspeitos não tinham quaisquer direitos e garantias processuais".
Toda vez que o juiz se coloca à frente da função persecutória, há violação frontal do mais relevante princípio da jurisdição: a imparcialidade. Isso porque, se o juiz empreende comportamento ativo diante de partes que deduzem pretensões opostas em juízo, há flagrante quebra do princípio da inércia da jurisdição, sem o qual igualmente violado o postulado da imparcialidade, haja vista que "el sustantivo imparcial refiere, directamente, por su origen etimológico (in-partial), a aquel que no es parte en un asunto que debe decidir, esto es, que lo ataca sin interés personal alguno" [8].
Imparcialidade e jurisdição são termos tão intimamente ligados que, de acordo com Zaffaroni [9], não se trata "de que a jurisdição possa ou não ser imparcial e se não o for não cumpra eficazmente sua função, mas que, sem imparcialidade, não há jurisdição".
Aquele a julgar com a vontade, já dizia Padre António Vieira, nunca julgará bem. A razão é muito simples: quem julga com o entendimento, se entende mal, julga mal, se entende bem, julga bem. Porém, quem julga com a vontade, ou queira mal, ou queira bem, sempre julga mal: se quer mal, julga como apaixonado, se quer bem, julga como cego [10].
O ato de julgar reclama profunda circunspeção e humildade por parte de quem está a fazê-lo, de sorte a elevar e dignificar, efetivamente engrandecendo o mais difícil e sublime dos ofícios humanos — a verdadeira humildade que consiste em rever e confessar os próprios erros —, virtude cuja prática sincera será motivo de orgulho do juiz, pois que o aproxima da perfeição humana.
Sobre a necessidade de o magistrado conhecer suas limitações e, dessa forma, julgar um semelhante com ânimo absolutamente sereno e espírito desprevenido, indispensáveis as palavras de Carnelutti:
"Como pode fazer o juiz ser melhor daquilo que é? A única via que lhe é aberta a tal fim é aquela de sentir a sua miséria: precisa sentirem-se pequenos para serem grandes. Precisa forjar-se uma alma de criança para poder entrar no reino dos céus. Precisa a cada dia mais recuperar o dom da maravilha. Precisa, cada manhã, assistir com a mais profunda emoção ao surgir do sol e, cada tarde, ao seu ocaso. Precisa, cada noite, sentir-se humilhado ante a infinita beleza do céu estrelado. Precisa permanecer atônito ao perfume de um jasmim ou ao canto de um rouxinol. Precisa cair de joelhos frente a cada manifestação desse indecifrável prodígio, que é a vida" [11].
A história já se encarregou de expor os efeitos nefastos de ideologias repressoras enraizadas na figura do juiz herói. Mais do que nunca é chegada a hora de o Brasil valorizar a conquista de um Estado de base democrática, conferindo validade e eficácia ao modelo acusatório de processo penal escolhido por sua Constituição, com o que estará a assegurar jurisdição verdadeiramente revestida de imparcialidade.