Por seis votos a quatro, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, nesta quinta-feira (29), receber denúncia contra o deputado federal João José Pereira de Lyra (PSD-AL) e contra Antônio José Pereira de Lyra, acusados pelo Ministério Público Federal (MPF) em Alagoas de submeter à condição análoga à de escravo 56 dos 3.300 trabalhadores de uma empresa de sua propriedade que trabalhavam em lavoura de cana-de-açúcar no município de União dos Palmares, naquele estado. O crime está previsto no artigo 149 do Código Penal (CP).
A decisão, que dá início à ação penal contra os acusados pela Suprema Corte, foi tomada no julgamento do Inquérito (INQ) 3412, relatado pelo ministro Marco Aurélio. O MPF os denunciou por supostamente sujeitarem os trabalhadores, com frequência, a jornada de trabalho superior a 12 horas por dia, inclusive em período noturno, sem respeitar o direito de descanso aos domingos. Denunciou-os, ainda, por não oferecer a eles equipamentos de segurança do trabalho contra os cortadores de cana-de-açúcar.
Da acusação consta também, entre outros, que os operários em questão – conforme relato e autos de infração lavradas pela fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego - seriam mantidos em condições desumanas, com alojamentos precários, sem a devida ventilação. Ademais, as condições sanitárias do local de trabalho não teriam banheiros. Também estariam sujeitos ao consumo de água não filtrada e, no campo, matavam a sede com gelo sem qualquer cuidado de higiene.
PGR
Ao pedir o recebimento da denúncia, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, disse que o fato de a empresa já ter regularizado a situação desses empregados, conforme alegou a defesa, não os isenta de culpa em relação às condições em que foram encontrados os 56 trabalhadores. Até mesmo porque o grupo empresarial controlado por João Lyra emprega, somente naquela fazenda, 3.300 trabalhadores, 17 mil no Estado de Alagoas e um total de 26 mil, somando seus empregados em Minas Gerais.
Portanto, segundo o procurador-geral, o grupo empresarial tem suporte econômico-financeiro e conhecimento da legislação trabalhista, até em função de seu porte e, por conseguinte, ambos os denunciados tinham plena noção do crime que estavam cometendo e devem ser por ele responsabilizados.
Rejeição
O ministro Marco Aurélio, relator do inquérito, votou pela rejeição da denúncia. Ele entendeu que o crime narrado pela acusação é diverso do tipificado pelo artigo 149 do Código Penal, cujo bem jurídico tutelado é a liberdade do ser humano, sob o aspecto ético-social. No mesmo sentido votaram os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello. O primeiro deles disse entender que não houve cerceamento da liberdade dos trabalhadores em virtude de dívida para com seus patrões, conforme previsto na norma em que se fundamenta a denúncia.
Também o ministro Gilmar Mendes sustentou que “o bem jurídico protegido pelo artigo 149 do CP é o da liberdade individual” e que os fatos narrados na denúncia não compreendem a esse tipo penal.
O ministro Celso de Mello também rejeitou a denúncia. Ele disse ter dificuldades em uma imputação a ser demonstrada apenas com a posterior individualização da conduta de ambos. Segundo ele, “não existe causalidade subjetiva a demonstrar liame entre os fatos narrados na denúncia e o comportamento individual de cada um dos acusados”. Mas, segundo ele, o MPF poderá formular nova denúncia, agora individualizando o comportamento dos dois dirigentes da empresa.
Divergência
A ministra Rosa Weber abriu a divergência, votando pelo recebimento da denúncia, no que foi acompanhada pelos ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ayres Britto, Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso. A ministra disse entender que os fatos apontados na denúncia afrontam a dignidade da pessoa humana e correspondem ao tipo penal descrito no artigo 149 do CP.
Ao se manifestar no mesmo sentido, o ministro Luiz Fux apoiou-se no princípio da constitucionalidade dos direitos humanos, já que a Constituição Federal é permeada do conceito protetor de tais direitos. Ele entende que os fatos descritos afrontam a dignidade da pessoa humana e colocavam, realmente, os 56 trabalhadores em situação equivalente à de escravos.
Seguindo a mesma linha, a ministra Cármen Lúcia disse que submeter à condição equivalente à de escravo envolve “tudo o que pode ser subsumido ao tipo do artigo 149”. “Considero a denúncia perfeita, cumpridora das exigências legais”, concluiu.
No mesmo sentido se manifestaram os ministros Ricardo Lewandowski, Carlos Ayres Britto e Cezar Peluso.